Capitulo 15
Estava sentada na sacada do apartamento naquela manhã. Ainda chovia desde o dia anterior, fazia também um pouco de frio. Eu estava com o telefone nos ouvidos, tinha discado o número de minha irmã.
Não chamou nem duas vezes, ela atendeu.
- Ana?
Ela pareceu surpresa ao ouvir minha voz.
- Leah? É você mesma?
- Sim, sou eu. - Eu sorri. Não ouvia a voz de minha irmã há muito tempo. Eu tentava ajeitar a barra da minha camiseta dos Sex Pistols. Estava um pouco sem graça de ligar pra ela. Afinal, fui eu quem cortou o contato.
- Como você está? E a Mariana? O Guilherme? – Perguntei.
- Estamos bem. A Mari tá com quase dois anos, tá uma gracinha. O Gui ta bem, a empresa colocou ele de home office agora.
Agora era "home office". Quando eu dizia que trabalhava em casa ninguém dava valor. Aposto que minha mãe deve ter aplaudido de pé o genro perfeito da filha perfeita dela. Respirei fundo.
Eu tinha muita mágoa de minha família.
Mas não foi pra isso que você ligou, Leah.
Acendi um cigarro.
- E você? - Ela devolveu a pergunta.
- Estou bem. - Fiquei em silêncio, soltando a fumaça. - Na verdade estou um pouco assustada com tudo isso que está acontecendo, por isso liguei.
- Eu também estou com medo. - Ela abaixou o tom de voz. - Tenho chorado todos os dias escondida. Eu não sei o que vai acontecer, nunca vi tanta gente morrendo.
- Vai ficar tudo bem, Ana. Em breve tudo isso vai passar, vamos manter a esperança. – Eu disse. Não sabendo de fato se ficaria tudo bem, mas senti que precisava reconfortá-la. Talvez eu quem precisasse ouvir aquilo. De que tudo ficaria bem.
- Estamos fazendo compras pra mamãe e pro papai, pra eles não saírem de casa. No grupo do whatsapp da família nossos primos estão se organizando também. – Ela fez uma pausa. – Aliás, a mamãe me disse que você está morando com uma prima nossa.
- Sim, a Elisheva.
- Eu não me lembro dela.
- Ela é... fantástica.
Ouvi então um choro de bebê.
- Leah, a Mari acordou, eu preciso ir.
- Ah, sim, ok. – Ajeitei-me na cadeira.
- Ligue mais vezes. Eu senti sua falta.
Senti então aquele nó na garganta que estava sendo minha companhia nos últimos dias.
- Vou ligar. – Limpei a garganta - Se cuida.
E desligamos.
Droga.
Terminei meu cigarro pensativa.
Levantei-me e fui até a geladeira, fiz um misto frio pra mim e outro para Elis. Coloquei algumas bolachas que ela gostava no prato. Peguei café pra nós duas. Coloquei tudo numa bandeja e levei pro quarto. Eu não me lembrava de ter feito isso antes, de levar café pra alguém. Mas pra tudo se tinha uma primeira vez, não?
Estaquei no beiral da porta ao vê-la de pé, próxima a minha estante, com meu moletom preto do Justiceiro junto ao seu nariz. Estava com os olhos fechados. Meu coração começou a bater rápido. Percebendo minha presença, olhou em minha direção. Vi seu rosto corar no mesmo estante. Ela não estava esperando por aquilo.
- Coloque, está frio. - Eu disse abaixando os olhos, não conseguindo conter o sorriso. - E vem tomar café comigo. - Sentei-me na cama.
Ela então olhando pra mim, vestiu o moletom preto de capuz com a caveira branca na frente, ainda envergonhada. Ficou largo pra ela, mas uma graça. Ficava no meio de suas coxas, estava apenas com um short por baixo. Ela enfiou as mãos no bolso canguru e veio até mim. Se sentou na cama ao meu lado sem dizer absolutamente nada. Ela entrelaçou seu braço com o meu.
- Quer terminar de ver o filme? - Perguntei.
- Quero.
Tomamos nosso café e terminamos o filme. Ela permaneceu em silêncio o filme inteiro até a cena em que as duas meninas se beijaram novamente no fim. Elas eram personagens secundárias.
- Só isso? - Ela perguntou. - Esse beijinho sem graça?
Eu ri, fechei a tampa do notebook e a envolvi pela cintura.
- Por que? Estava esperando algo mais...quente?
- Talvez.
Corri uma das mãos por dentro da blusa, nas costas, tocando sua pele.
- É um filme adolescente. Não ia ter muita coisa mesmo.
- Não faz assim.
- Assim como? - Passava os dedos suavemente por sua pele.
- Isso que está fazendo.
- Desculpa. - Recolhi minhas mãos. - É difícil ficar sem querer te tocar...
- Eu só estou um pouco confusa com tudo isso.
- O que te deixa confusa?
- Andres, você, Carla... Não sei como você lida com isso, acho que melhor que eu, por sua forma de lidar com relacionamentos... mas na minha cabeça isso é muito errado. Quer dizer, o Andres nesse momento tá lá arriscando a vida dele no hospital pra salvar as pessoas com Covid. E eu tô aqui com você.
- Uma coisa não tem a ver com a outra. Ele está fazendo o trabalho dele, que é sim respeitável. Mas o trabalho dele não tem a ver com o relacionamento de vocês. E você mesma disse que ele não era muito presente na sua vida...
- Isso não justifica eu estar... traindo dele...
Eu tirei meus braços de volta de sua cintura delicadamente, beijei sua testa e me levantei. Ela me olhava com uma dor muito grande no olhar. Saí do quarto e a deixei sozinha. Fui pra sacada e acendi outro cigarro. Salem veio comigo. Ele me lembrou que eu precisava comprar mais comida pra ele. O pacote já tinha ido embora. Ele era praticamente uma draga.
Terminei o cigarro e sentei no computador e tentei trabalhar, mas não consegui. Tinha Carla em minha cabeça, tinha Elis em minha cabeça. Tinha minha irmã, minha família. Eu precisava contar pra Carla o que tinha acontecido. Ela ia ficar arrasada. Até porque estava levando a sério essa nova fase de ser monogâmica comigo.
Algumas horas se passaram e Elis não tinha saído do quarto ainda, não fui atrás dela. Eu resolvi fazer o almoço. Fiz uma macarronada com molho branco e como se ela tivesse sido atraída pelo cheiro, a porta do quarto se abriu.
- Eu peguei no sono. - Ela disse. Seus olhos estavam inchados. Ela devia ter chorado. - Nossa, você já fez o almoço?
- Senta, eu te sirvo. - Eu disse.
Sentamos na nossa mesa nova e servi seu prato. Em seguida peguei uma porção pra mim e levei o refrigerante à mesa com duas canecas. A do Batman e a do Groot.
- Você cozinha bem. - Ela disse.
Eu sorri.
- Acha que sirvo?
- Pra casar? – Ela riu. - Acho que precisa colocar mais pimenta no seu molho, ai pode casar.
Eu abaixei os olhos e comemos em silêncio.
- Eu vou precisar ir à farmácia.- Ela disse. - Preciso de mais absorventes e remédio pra cólica.
- Vou precisar comprar ração pro Salem também. Será que tem que comprar mais alguma coisa?
- Não, já compramos tudo semana passada. É bom não ficarmos saindo.
- Sim.
Eu pousei o talher no prato e olhei para Elis.
- Elis. – Ela me olhou. - Você o ama?
Ela pareceu surpresa com a pergunta. Tomou um gole de seu refrigerante.
Ela abriu a boca e a fechou. Deu de ombros.
- Que diferença isso faz?
Eu também dei de ombros, não sabia o que falar pra ela.
Muita. Ao menos na minha cabeça, fazia muita diferença.
Continuei comendo em silêncio de cabeça baixa. Ela foi tomar banho e lavei a louça com uma vontade muito grande de chorar. Aqueles dias estavam sendo bem desafiadores emocionalmente pra mim. Eu me sentia esgotada. Eu também fui tomar banho após arrumar a cozinha e lavei os cabelos. Já precisava passar a máquina novamente no cabelo, pensei, correndo os dedos do lado direito. Conforme a água quente escorria, permiti que as lágrimas caíssem de forma abundante. Parecia uma comporta de uma represa que tinha sido aberta. Quanto mais elas caíam, mais queriam cair. Por um momento eu não sabia se tinha sido uma boa ideia ter deixado fluir, pois tentava encerrar o banho e não conseguia. Com muito custo fechei o chuveiro, comecei a pensar em coisas boas.
Vamos, Leah, seja forte. Você já passou por coisas piores em sua vida.
Coloquei uma roupa e estava pronta.
- Eu já vou sair. - Disse na porta do quarto. Ela estava encolhida na cama com o celular nas mãos. Ela continuava com meu moletom e uma calça jeans.
- Quero ir com você. - Ela disse. Me aproximei da cama. - Está com muita cólica?
- Um pouco.
- Não acha melhor ficar? O tempo ta meio feio.
- Não quero ficar sozinha aqui.
Ela se levantou.
- Ok, vamos de carro. Quer ir dirigindo?
- Você tá louca? – Consegui arrancar um sorriso de seus lábios.
Eu ri.
- Posso ir assim? – Ela perguntou se referindo ao moletom.
- Claro. Você ficou linda nele.
Ela sorriu e abaixou os olhos.
Calçamos nossos sapatos e pegamos o elevador. Apertei o botão do primeiro subsolo e olhei meu rosto no espelho. Eu estava com uma cara péssima, apesar do banho. Elis também já esteve melhor. No caminho até o carro, senti ela buscando minhas mãos, entrelaçando nossos dedos e meu coração se aqueceu com aquele gesto. Coloquei o torso da outra mão em seu rosto.
- Está com febre?
- Não, é só cólica mesmo. Fico meio chatinha quando estou assim.
Abri a porta para que ela entrasse. Entrei em seguida do outro lado. Ela ligou o som.
- Posso conectar meu celular? - Ela pediu.
- Claro.
Ela conectou pelo Bluetooth do rádio.
Saímos do prédio.
E então uma música começou a tocar. Tinha um dedilhado no violão, um homem cantando em espanhol.
- Essa é minha banda preferida. - Ela disse. - Se chama El Cuarteto de Nos.
Ele cantava rápido, como não tinha muita proximidade com o idioma, entendia algumas palavras soltas. Uma guitarra com distorção entrou no refrão.
- Gostei.
- Ya no sé qué hacer conmigo.
- Como?
- É o nome da música.
- Já foi em algum show deles?
- Já, em dois.
- Eles são de lá?
- São, de Montevideo.
- Legal. Nunca fui pra lá.
- É bom morar lá, mas eu não sei. Eu gosto do Brasil. Tem gente que fala tanto mal do Brasil, mas eu gosto daqui.
Ela deixou as músicas do álbum rolando e fomos até a casa de ração. Pedi que ela ficasse no carro. Eles tinham fechado a entrada da loja e atendiam os clientes do lado de fora. Não havia ninguém quando cheguei. Peguei um pacote de 10kg para não ter que sair mais durante um tempo. Um rapaz o trouxe para mim e colocou no porta malas. Havia dois cachorrinhos do lado de fora, um marrom e um bege. Comprei um pouco de ração a granel, coloquei para eles no chão, num cantinho. Eles começaram a comer e voltei para o carro.
Ela colocou álcool gel na minha mão e eu espalhei entre os dedos, passei no antebraço, até o cotovelo.
- Meu pai ia ter gostado de você. - Ela disse, séria.
Me surpreendi.
- Por que acha?
- Só ia.
Fiquei parada olhando para ela.
- Dirija. – Ela disse, mais como uma ordem. Dei partida.
Ela mudou de música. Não tinha nada a ver com rock, nem guitarras, nem distorção, nem nada do que eu estava acostumada a ouvir.
- O que é isso? – Perguntei.
- É The Weeknd.
- É sexy. – Eu disse baixo, aquela música me dava muita vontade de beijá-la.
- Se chama The Hills. – Ela respondeu me olhando de canto de olho. – Gostou?
- Gostei.
Tirei a mão do câmbio num impulso, levantei-a, querendo tocá-la, mas me contive... Voltei para o câmbio, respirei fundo.
Chegamos até a farmácia que ficava bem próxima já ao prédio onde eu morava. Nós duas descemos. Ela pegou as coisas que ela precisava. Eu dei sorte por encontrar máscara cirúrgica, mas estava custando um absurdo de caro. Peguei duas, uma pra mim, outra pra ela.
Pagamos e voltamos pro carro. Abri a porta pra ela entrar, ela pegou o álcool que estava no suporte de copos da porta e limpou nossas mãos. Colocou a sacola no carro. Eu ia atravessar para ir para o lado do motorista, mas ela me puxou pra perto dela num movimento brusco. Senti meu corpo pressionando o dela contra a lataria do carro, seus lábios buscaram os meus com urgência. Suas mãos me envolveram a cintura não deixando com que eu me afastasse. Senti sua língua invadindo minha boca, suas mãos subiram então até minha nuca. Já estava completamente molhada, toda molinha em suas mãos, ela me tinha fácil, fácil. Ela beijou meu ouvido e sussurrou, fazendo minhas pernas bambearem no mesmo instante:
- Teu beijo é uma delicia...
Gemi, apertando-a ainda mais próxima a mim.
- Leah?! - Ouvi uma voz conhecida. Nós nos afastamos delicadamente. Eu olhei pra trás e nesse momento meu corpo inteiro gelou. Era Carla. Estava segurando um ramalhete de flores. Flores?
- Carla...
Fim do capítulo
E aí meninas, o que estão achando? Queria muito saber a opinião de vocês! Vejo muitas visualizações, mas quase nenhnum comentário. Manifestem-se, por favor!
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Sandra Bruna
Em: 02/05/2020
Estou gostando muito da história. Sei que não vai ser fácil para Leah quando a prima for embora... Será que Elis vai ter coragem de largar a vida no Uruguai para ficar com a Leah? Estou torcendo muito que isso aconteça.
Continua autora
Resposta do autor:
Oi Sandra! Fico muito feliz que esteja gostando e acompanhando a história! ^.^ A Leah está numa situação muito complicada, não é mesmo? Ainda mais agora que Carla acabou de descobrir. Vamos ver como as coisas irão se desenrolar a partir de agora! Bem em breve volto com um próximo capítulo!
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Jubileu
Em: 02/05/2020
Oi!
Estou torcendo tanto, mas tanto para essas duas... que a Carla até chega! Kkkk
Flores para você!
Resposta do autor:
Eu fico com dó da Carla, ela é apaixonada pela Leah, mas a Leah não sente o mesmo por ela. Acabou descobrindo da pior forma possível. Vamos ver como as coisas vão se desenrolar a partir de agora. Agradeço pelas flores <3
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thays_ Em: 17/04/2023 Autora da história
Não! Acho que elas nunca imaginaram que algo assim pudesse acontecer! Da Carla as pegar juntas!