Capitulo 6
Saí do banho descalça com a toalha enrolada nos cabelos. Vesti o robe que estava dependurado detrás da porta, fui para cozinha, abri a porta da geladeira e enchi um copo com pedras de gelo. Parei olhando ao redor. Queria mudar algumas coisas ali. Talvez a cor da parede ou remodelar toda a dinâmica dos móveis. Aquela padronagem de combinações já não mais me agradava.
Peguei o copo e fui para a sala me posicionando em um dos quatro cantos. Pela primeira vez notei a ausência de cores vibrantes, de vida! Toda casa é projetada de acordo com a personalidade e gosto do cliente. Eu me via naquele lugar: vazio, escuro e solitário. Sorvi uma pedra de gelo e mastiguei. Entreabri as cortinas e olhei para o céu. Estava tomado de estrelas e as luzes das casas e prédios pareciam vaga-lumes bordando o horizonte.
Passava das 04h30min e eu não conseguia mais dormir. Fui para o escritório e acendi a luz do abajur. Sentei na escrivaninha e liguei o notebook. Acessei pastas e subpastas. Apaguei fotos e encontrei um arquivo que há muito tempo não ousava abrir. Era de um antigo projeto. Algo grandioso e que por enquanto não queria revelar a ninguém. Estava concluído, mas eu não tinha a segurança que eu precisava para colocá-lo em prática. Deveria ser apresentado em uma noite única e especial. Tenho certeza que esse dia haveria de chegar.
Lembro-me de quando era pequena, brincava com tijolinhos de madeira e fazia as minhas próprias construções. Depois de tudo pronto corria atrás do meu pai e o puxava pela manga do terno muito bem passado só para ouvi-lo dizer que se orgulhava de mim e que um dia eu seria uma grande profissional, assim como ele. Não houve momento algum que não tivesse me apoiado. Cresci muito rápido para a minha idade. Tinha uma desenvoltura que fazia os adultos sorrirem. Era inteligente e sagaz.
Não tinha recordação alguma de minha mãe e evitavam me contar, não sei por qual motivo. Estaria viva? De alguma forma sempre tive medo de saber. Sinto que não poderia suportar a verdade mesmo sem saber qual era. Sentia algo ruim pairando no ar. Acredito em destinos e esse era o meu, eu precisava aceitar.
Adormeci na mesa do computador e acordei assustada. Eram 9 h da manhã. Abri todas as cortinas, tomei um banho e fui para a cozinha. Mordi uma maçã e sai completamente atrasada para visitar um cliente. Era o único compromisso que eu teria para esse dia e estaria livre o restante da tarde. Queria espairecer um pouco dar umas voltas. Tirar algumas fotos. Queria dar início a novos projetos. O dia estava ensolarado sem nenhum sinal de nuvens. Como eu amava a primavera! Estacionei o carro e peguei a minha bolsa no banco de trás. Arrumei o meu cabelo no retrovisor e ajeitei os óculos de sol no nariz.
Desci com cuidado e fechei a porta em seguida. Olhei para o alto e sorri ao constatar que eu estava no lugar certo. Era justamente o que eu procurava. O antigo e o contemporâneo juntos.
Duas horas depois deixava a residência do meu cliente. Estava faminta. Eu precisava comer alguma coisa. Retirei a câmera de dentro da bolsa e atravessei a rua, correndo.
Parei diante de um casarão de tijolos a vista, era sensacional! Seria uma boate, um bar talvez? Fotografei em diversos ângulos e fiz algumas anotações na agenda. Na esquina, do mesmo lado serviam lanches naturais. Apressei os passos e entrei pela pequena porta de madeira. Penso que apenas uma pessoa de cada vez passava por ali de tão estreita. O interior era todo recoberto com papel de parede. Os motivos eram tão minúsculos que precisei aproximar para saber o que eram. Milhares de flores coloridas! Parecia um canteiro imenso de miosótis. A bancada era de madeira e oito banquetas eram confeccionadas com o mesmo material. Era tudo muito antigo. Como nunca tinha reparado nesses lugares? Eram verdadeiros achados!
Pedi um sanduíche de atum com água de coco e fui me sentar do lado de fora em uma das mesinhas com duas banquetas, sendo disposta uma de cada lado. Comi o lanche sem ver, de tanta fome que estava. Verti um fio da água de coco na palma da mão e passei na testa e na nuca. Minutos depois voltei e fiz outro pedido.
- Por favor, outra água de coco? Com bastante gelo? Obrigada!
E desta vez olhei para o teto e fiquei estarrecida com a delicadeza dos lustres feitos com gotas de cristal.
- Senhorita aqui está! – e colocou dois copos sobre o tampo de madeira, um deles transbordando de gelo. Sorri e perguntei:
- Você saberia me dizer a que horas esse pub aqui ao lado abre? – e apontei naquela direção. - De tijolos a vista? – completei.
O rapaz olhou no relógio e depois para mim.
- Às 19 h senhorita. Deseja mais alguma coisa?
- Não obrigado. - disse seguindo para o caixa e olhando para o relógio.
Ainda era cedo, precisava passar no mercado e mais tarde voltaria.
Observei que do lado oposto havia outra portinhola de madeira, mas dava para a outra rua. No mesmo momento me veio algo: o incidente da noite passada. Fiz o pagamento e sai com os dois copos na mão. De boca aberta, estremeci ao reconhecer aquele lugar.
- Eu quase bati naquele carro bem aqui - disse baixinho.
Tudo aquilo voltou na minha lembrança. Recordava-me de poucas coisas. De sentir as mãos tremerem, dos pensamentos distantes e de uma garota...
- Eu apaguei mesmo! - e dei dois passos para trás procurando por algum sinal de pneus, deixado pela freada brusca que havia dado. E realmente estava lá a marca dos dois pneus traseiros.
Imaginei o trajeto do meu carro vindo naquela direção e de como ele ficou bem de frente para o poste, bem ali. Eu não vi o outro carro. Eu estava errada! Eu não parei no vermelho!
Bebi a água de coco de uma só vez e caminhei de volta para o carro. Quando puxei o cinto o celular tocou.
- Atender. – disse ao dar partida ao olhar no retrovisor.
- E ai loca!
- Mô o que você está fazendo, está em casa?
- Sim, vem pra cá, já almoçou?
- Fiz um lanche.
- Te esperando.
E ela desligou.
Olhei para o relógio para tentar afastar a vontade de chorar que eu estava. Monize morava a uns vinte minutos dali, queria chegar logo e quem sabe poderia conversar, contar tudo de uma vez, mas tinha medo do que ela pensaria, tinha medo de me julgar. Guardei o meu relacionamento com a Mel por tanto tempo, que pensei que poderia guardar para o resto da vida, mas não era tão simples assim. Pisei no acelerador, estava a duas quadras de lá.
Monize estava sentada nas escadas quando estacionei e ela acenou.
- Estava no trampo?
- Sim – e dei um abraço nela.
- Você está bem?
Não respondi.
- Tem algo forte para beber? – fui para cozinha sem olhar para ela.
- Leite.
- Besta! – sorri.
- Viu isso sempre funciona quando você está emburrada.
- Não estou.
- Está sim, eu não nasci ontem.
- Ando a ter sonhos que mechem comigo.
Coloquei gelo no copo e me servi de vodka.
- Quer?
- Bebo do seu copo, não quer almoçar?
- Daqui a pouco.
- Vamos lá para fora.
- Você não vai?
- Pra onde?
- Almoçar!
- Depois, relaxa.
E ela passou a mão pela minha cintura e eu pelo pescoço dela.
Sentamos em um sofá velho que ficava nos fundos da casa. Ela dizia que Tom Cruise havia sentado nele e que ela não se desfazeria dele nem a reza brava.
- Deita aqui. – pegou meu copo e colocou no chão.
- Eu não sei nem por onde começar. – e deitei no colo dela.
- Não tenha pressa. – ela mexia no meu cabelo.
- Eu dormi com uma garota...
- O que? – e ela pegou o meu copo com vodka e bebeu.
- Você talvez vá me odiar por não ter contado antes.
- Nunca é tarde para se contar algo. – sorriu.
- Tem uns dois anos isso.
- Dois?
- Desculpa Mô isso está me matando, porque tenho sentido falta dela. Tenho me sentido muito sozinha.
- Loca, por essa eu não esperava, mas de boa. – Conta tudo! Ela é gostosa?
Soltei uma gargalhada.
- Era um tesão.
- Era? Tô de cara. – ela riu. – O Rui sabe?
Fiz o sinal da cruz e ela sorriu novamente, bebendo outro gole de vodka.
- Você se lembra de eu aparecer com um robe?
- Credo isso tem muito tempo! Lembro sim aquilo não era seu, sabia que tinha uma coisa errada nessa história. – Já sei! Era dela e você foi devolver? Mas, se você estava com ele, você tinha chegado da casa dela?
- Isso... Sim, mas ela me deu para se lembrar dela.
- Não acredito! Deixa seu pai saber.
- Não penso nele, mas no louco do Rui.
- Vocês não se vêem mais?
- Não. Pedi para ela se afastar.
- Santo Deus... Eu teria te ajudado a lhe dar com eles e vocês ainda estariam juntas!
- Não dava, chegamos a uma altura que não dava mais para esconder. Seria um escândalo.
- Como saber? - Enquanto a mim fica tranqüila, isso não muda em nada, eu te amo e quero acima de tudo que seja feliz.
- Obrigada... Sobrou vodka?
- Não. Espera, vou pegar a garrafa.
E ela correu na cozinha e eu não consegui conter o choro.
- Ei não chora...
E nos abraçamos.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]