Capitulo 28 - Eutimia
Carmen Griffin usava o seu habitual avental florido enquanto cozinhava o famoso Guacamole¹ para ser servido como entrada junto com as Tortillas². E pelo cheiro, Claire Griffin constatou que o prato principal seria o Chilli com carne³.
- Humm… Que cheiro delicioso, mamá!
A morena inalava o aroma enquanto destampava as panelas, o chilli com carne da senhora Carmen era sua comida favorita dos encontros familiares. Todos os domingos, os Griffins se reuniam na casa de classe média alta em um bairro nobre de Hilton. Esses encontros eram exigidos pela matriarca Carmen, e estava fora de questão não comparecer.
- Cariño, tire as mãos daí! - a mãe advertiu enquanto enxugava os dedos no avental.
- Estou morrendo de fome, mamá!
- Então me ajude a colocar a mesa, assim serviremos mais rápido!
A mulher que quase não aparentava a idade que tinha voltou sua atenção para a panela que borbulhava. Claire deu um muxoxo e se prontificou a capturar alguns pratos que estavam nas prateleiras polidamente brancas.
Era uma cozinha americana enorme, bem decorada com mármore e cores de tons de beje e branco, finalizando com uma ilha bem centralizada e muito maior da que tinham na Georgia. A família Griffin não podia negar, suas condições financeiras se elevaram bastante desde a mudança, e estava tudo estampado na casa que refletia o sonho americano.
- Onde está o papai? - Claire questionou ao mesmo tempo em que depositava alguns pratos em uma grande mesa de madeira retangular que estava harmonizada com a cozinha aberta.
- Seu pai? - a mulher mexia a panela de forma frenética. - Eu não sei por onde ele anda… Depois de quase trinta anos casados diante da glória do Senhor, o seu pai resolve sair quase todos os dias escondido!
- Ele não disse para onde ia?
- Oh, Claire! - a mulher se remexia agitada enquanto não tirava a colher de pau da panela. - Me passe o chilli, cariño.
A morena se apressou em buscar a pimenta, mas sua procura foi frustrante. Ela jurava que tinha verificado em cada ponta de armário, e de que olhou várias vezes atentamente pelas prateleiras, mas não encontrou o tempero.
- Não encontrei! - respondeu já cansada.
- Dios mio! Venha, venha! - Carmen puxou a filha pelo braço. - Fique de olho aqui na panela que eu vou buscar! Esse tempero é essencial, tenho certeza que você não olhou direito, Clairita.
A filha revirou os olhos ao ouvir o apelido antigo que sua mãe lhe entregou nos primeiros dias de vida. Clairita era uma mistura mexicana do nome Claire. Houve muitas discussões em torno do nome da filha, Carmen queria que a pequena menina se chamasse Adelina, em homenagem a sua própria mãe e avó da pequena.
Mas o senhor Quinn interveio, na verdade, ele gostaria que Claire fosse um menino, e se chamasse Paul Jr. em homenagem ao seu próprio bisavô que lutou na guerra contra o Viatnã. No fim, surgiu o nome Claire, que vem do latim Clarus, e fazia uma alusão a uma pessoa brilhante. Clairita era a forma da Carmen ‘mexicanizar’ o nome da filha.
- Achei! - a mulher gritou e voltou ao seu posto no fogão, aproveitando para despejar o tempero na panela e voltar a mexer.
- E então, mãe… Como estão as coisas? - Claire começou enquanto se encostava na ilha e observava Carmen cozinhar.
O cheiro que tomava toda a cozinha era delicioso e fez o estômago da Claire roncar. Ela não tinha herdado os dons culinários da mãe, na maior parte do tempo, ela se virava entre macarrão instantâneo e cafés, então todos os domingos, ela aproveitava para comer bem.
- Apesar dessa nova moda do seu pai de sair escondido, tudo está caminhando no propósito de Deus, mi hija. - ela provou um pouco do molho e fechou os olhos se deliciando. - Venha, Claire, venha provar!
A menina sorriu e voltou a se aproximar da mãe que lhe oferecia uma colher repleta de molho esfumaçando. Claire assoprou e levou o conteúdo até os seus próprios lábios para degustar o chilli com carne.
Seus olhos se fecharam quando sua boca foi invadida pela explosão de sabor apimentado do cozido, para depois saborear o gosto do feijão, carne, tomate, cebola numa mistura tão quente como o México.
- Hummmm… - foi a única coisa que saiu dos lábios da morena.
Ela até tentou se servir de mais uma colher, porém foi afastada por Carmen que resmungava.
- Eu sinto tanta falta da sua comida, mãe!
- Então volte para casa, Claire! - a mãe respondeu enquanto levava a comida para a mesa.
- Óbvio que não!
Carmen a olhou de lado e conferiu o relógio de parede que marcava meio dia e trinta minutos.
- Eu não sei o que fazer com você e com seu pai, Claire! Vocês são dois sem juízo! - ela levava as mãos até os cabelos.
Claire apenas se sentou em uma das cadeiras e aguardou o monologo da mãe.
- Vocês precisam ser mais tementes a Deus, minha filha! - ela começou. - Seu pai agora só vive na rua, trabalha demais e esquece de servir ao Senhor aqui em casa. Semana passada eu fui para a missa sozinha!
- Mãe, o papai nunca foi muito crente, né? Você que o forçava a ir na igreja e ele ficava o tempo todo com aquela cara de tédio. - Claire tentava não rir. - Você lembra do dia que ele quase brigou com o reverendo?
- Minha filha! Não fale uma coisa dessa que o ouvido de Deus é poderoso! - Carmen retirou uma medalhinha em formato de santa do pescoço e a beijou. - Nossa senhora de Guadalupe nos perdoe!
- Mas é sério, mãe, você deveria pegar mais leve com o papai.
- Eu não vou “pegar leve” com o seu pai, Claire! - ela enfatizou a expressão. - Seu pai precisa de um caminho, e você também!
Claire revirou os olhos e resolveu prender o cabelo em um rabo de cavalo alto. A comida esfriava na mesa e era tentador ficar ali só observando e recebendo sermão.
- Você passa o dia naquela lanchonete!
- Cafeteria, mãe. - ela roubou uma tortilha e foi repreendida pelo olhar da mãe.
- Temos que esperar o seu pai e você sabe que nessa casa ninguém come antes de rezar bastante!
A mulher se abençoava pedindo perdão em um espanhol arrastado. Claire iria até contestar ao se lembrar de um dia em que eles tinham se servido sem agradecer ao Senhor, mas foi impedida pela voz do senhor Quinn que adentrava na sala de jantar.
- Claire! - ele disse animado e a menina correu para se jogar em seus braços.
Quinn era um homem relativamente baixo para as estaturas normais masculinas e não tinha muito cabelo na cabeça, era um semi-careca. Sua barriga era avantajada e ele quase não tinha nada a ver com a filha, se não fosse alguns sinais e pintinhas que só os dois tinham.
- Oh… Eu estava morrendo de saudades de você, minha princesa.
- Eu também, papai!
- Eu duvido muito, você não me ligou um dia sequer nessa semana! - o homem não a largava do abraço.
- Foi uma semana muito corrida na escola de dança e no Joe’s, sinto muito! - Claire encolheu os ombros.
O homem apenas beijou carinhosamente o topo da sua cabeça e os dois seguiram abraçados até a mesa de jantar.
- Até que enfim você encontrou o caminho de casa, Quinn. - Carmen disse se sentando.
- Carmen, não vamos começar logo agora… Não com a Claire aqui. - ele a repreendia em um tom de voz baixo.
Claire lançava olhares sucessivos para os dois, algo estava estranho. Era habitual as brigas entre os dois, porém agora existia uma energia diferente.
- Então… - Quinn começou voltando o seu bom humor. - Como estão as coisas no trabalho, minha filha?
- Aquilo ali está mais para passatempo, né Claire? - A senhora Griffin se intrometeu.
Quinn pigarreou e olhou para a filha. Os dois trocaram olhares cúmplices que se pudessem falar, diriam: calma.
- Está bem… - Claire começou calmamente. - O Joe me deu até um aumento!
- Oh! Isso merece uma comemoração!
O pai levantou uma taça e foi seguido por Claire, mas os dois desanimaram ao receber o olhar reprovador da mãe.
- Vamos fazer um brinde a essa boa nova!
- Não, não… Nada disso! - Carmen se intrometeu autoritária. - Vamos rezar antes de começar com as palhaçadas!
Quinn parecia mais impaciente do que nas últimas vezes. Claire sabia o quanto era difícil conviver com sua mãe e as exigências religiosas, mas o seu pai sempre tivera paciência para suportar as loucuras da Carmen. Entretanto, a eutimia que antes era virtude no homem, agora não existia mais.
Claire percebeu quando Quinn bufou irritado e passou as mãos pela careca. Carmen parecia alheia a qualquer coisa que não fosse ela.
- Senhor! - A mulher começou. - Que a tua graça recaia sobre essa família de pecadores!
Claire abriu os olhos e voltou a fechar.
- E que o senhor coloque juízo na cabeça de todos aqui presentes para que possamos enxergar o teu poder e glória, amém!
- Amém! - Disseram Claire e Quinn juntos.
Todos começaram a se servir silenciosamente, o único barulho que se ouvia era o cintilar de pratos e talheres. Claire olhava para os pais incrédula, eles estavam diferentes como um casal. Estavam frios e distantes um do outro, e ela no fundo sabia que sua mãe tinha grande parte da culpa.
- E então, pai… Como estão as coisas no banco? - Claire resolveu quebrar aquele silêncio.
- Oh… Que bom que perguntou, filha. - ele respondeu entre uma garfada e outra. - Tudo vai bem, dentro das normalidades… Você sabe, Hilton não é como a Georgia, aqui é quase sempre a mesma coisa.
- E desde quando você gosta de coisas novas, Quinn? - a mãe se intrometeu para depois colocar uma tortilha na boca.
Os dois se olharam e faíscas voavam pela mesa. Claire pigarreou sentindo o clima ficar tenso, e bebeu um gole do seu suco.
- Mas isso é bom, pai, assim o trabalho acaba não sendo tão estressante quanto na Georgia. - a morena disse por fim, tentando amenizar o clima.
- Oh, sim. Mas isso não significa que não seja estressante também. Veja bem, ontem mesmo eu recebi uma ligação do meu superior para analisar os dados de uma futura cliente.
Ele falva pausadamente e Claire sorriu por finalmente o ar ficar mais leve.
- Analisar dados de possível cliente no sábado, papai? Não era seu dia de folga?
- Essa futura cliente é especial para o banco, filha…. - ele explicava enquanto limpava os lábios com o guardanapo de tecido. - Esse tipo de cliente passa na frente até dos nossos dias de descanso porque sua conta vai engordar ainda mais os nossos bolsos.
Claire riu e comeu um pouco da salada ao mesmo tempo em que olhava de canto de olho para a mexicana que comia silenciosamente.
- Uau… E quem é esse ser ilustre que atrapalhou a folga do meu paizinho?
- Charlotte Sanders. - ele disse simplesmente.
A morena largou os talheres na mesa e Carmen levantou os olhos com o barulho. A filha estava pálida e séria.
- O que foi, Claire, parece que viu um fantasma. - A mãe constatou voltando a comer. - Você por acaso conhece essa mulher?
- Não! - respondeu rapidamente com medo de que seu nervosismo lhe entregasse.
- Claro que conhece, Claire… É a neta do falecido Will, lembra?
- Ah… uh… Acho que não, pai. - Ela se embolava.
- Você até ficou de ir para o enterro do Will… - Quinn afirmava alheio a confusão interna da filha. - Porque você não compareceu?
Carmen olhou para a filha fazendo com que Claire prendesse a respiração por um instante. Parecia que estava escrito “lésbica” na sua testa e ela já podia imaginar o escândalo da mãe.
- E-eu… E-eu… - gaguejava nervosa. - A Maggie ficou de me levar de carro, só que ela não apareceu e eu desistir de ir andando no frio.
- Pensei que você estivesse com o seu namorado, o Bob. Como é mesmo o nome dele? - Carmen perguntou.
- Ele não é meu namorado, mãe.
- Mas pode ser, Claire. Ele é um rapaz muito bem apresentado e de ótima família. Ele só precisa mudar esse apelido estranho, qual é mesmo o nome dele?
- Robert. - A morena revirou os olhos.
- Robert é um belo nome. - Carmen pontuou. - Você pode trazê-lo para o próximo almoço em família.
- Mãe! Nós não temos nada! - ela disse irritada. - Nem pretendo ter!
- Já está na hora de você tomar um caminho na vida, Claire. Talvez essa união seja o que falta para você virar a mulher que Deus quer que você seja.
A morena olhou para a mãe com uma expressão confusa. Desde quando Carmen tinha se tornado fã do Bob? Os dois tinham se visto algumas vezes na igreja, mas nada demais. E agora ela sai com essa ideia maluca de namoro. Se a mexicana soubesse que só de Claire pensar em namorar o Bob seu corpo reagia de forma negativa, não era ele quem a morena desejava, era uma forasteira misteriosa de olhos verdes.
Mas Carmen não poderia saber. Como ela explicaria para a mãe que estava apaixonada por uma mulher, e logo Charlie que estava sendo acusada de assassinato. A menina virou o suco todo de uma vez, desejando que fosse algo com um alto teor alcoólico.
- Deixa a menina, Carmen. - Quinn se intrometeu.
- Uma hora ela vai ter que se encontrar com o destino de Deus. - a mulher deu de ombros. - Ou se não vai virar burburinho na cidade, assim como essa Charlotte Sanders.
Pai e filha olharam de sobrancelhas arqueadas para a mulher. Claire voltou a se servir de suco e virar ele completamente na sua boca.
- A cidade inteira vem falando sobre essa moça, dizem que ela é sapatão. - Carmen disse secamente. - E que matou a namorada hétero… Provavelmente estava possuída por alguma coisa ruim, eu sempre disse que essa coisa de ser lésbica era pecado!
Claire encolheu os ombros e sentiu vontade de sumir, desaparecer e evaporar. As palavras da sua mãe lhe cortavam a carne, porque não era mais só sobre a Charlie, era sobre si mesma.
- A moça me parece ser alguém bem centrada e educada. E não há nenhuma prova que a incrimine além do preconceito das pessoas! - Quinn interferiu.
- Você adora viver no pecado, Quinn, sua opinião não conta.
- E a sua opinião preconceituosa e desumana conta, Carmen?
- Você acha normal duas mulheres juntas dessa forma? Invertendo as coisas de Deus?!
- Eu não acho nada, Carmen! - o homem gritou. - Não é da nossa conta!
A mulher limpou os lábios e sorriu com arrogância, Claire viu o quanto sua mãe desprezava Charlie e aquilo fez seu estômago revirar.
- Eu só quero que essa pecadora volte para o buraco da perdição que saiu e nunca mais pise os pés aqui!
Quinn riu com ironia. Achava desprezível o jeito como sua mulher tratava as pessoas que eram diferentes dela, e foi assim a vida toda. Mas agora sua paciência tinha chegado no limite e ele já não queria mais ouvir tantas barbaridades.
- Azar o seu, Carmen… Você vai ter que aturar essa “pecadora”, porque Charlotte Sanders acabou de receber uma bolada do avô e vai usar todo o dinheiro para investir em educação e tecnologia aqui em Hilton.
Carmen virou o rosto em desapreço as palavras do marido e ele continuou.
- Ela voltou para ficar e você vai ter que engolir isso. - completou.
O coração da morena se agitou com aquela frase, quer dizer que Charlie estava de volta a Hilton de vez e não havia lhe informado ainda.
Tudo bem que tem três dias depois da nossa última conversa que eu venho a ignorando, mas ela tinha que me informar sobre essa decisão!
Claire estava agitada, a notícia da permanência da Sanders fez suas pernas ficarem fracas e os arrepios dominarem o seu corpo com as lembranças do contato próximo das duas. Seu coração gritava de felicidade, mas sua mente lhe dizia que haveria uma grande luta a ser enfrentada. Não era o conto de fadas dos seus sonhos, nunca seria. E um dos maiores problemas estava bem a sua frente, lhe olhando com a íris de chocolate que se assemelhava bastante com as que tinham no seu próprio rosto.
O que Carmen Griffin acharia quando descobrisse que Claire estava apaixonada por Charlie?
Apaixonada? Não… Deve ser uma atração… Eu não sei.
Definitivamente não pode ser paixão, é desejo carnal.
Isso me configura como lésbica? Preciso pesquisar no google!
E preciso urgentemente falar com a Sanders, ela vai me explicar essa história de
permanecer em Hilton e virar altruísta! Alguém deveria a impedí-la de ser tão sexy e humana.
Alheia a tudo que acontecia na mesa, Claire se levantou e Quinn fez o mesmo.
- Eu vou subir um pouco para o meu quarto, preciso descansar.
- Já filha? Fique mais um pouco...
- Sim, pai, estou exausta dessa semana.
- Venha descansar um pouco com o seu pai... - Ele abraçou a filha de lado. - Eu ainda tenho uns contratos para realizar.
- Ainda vai trabalhar, senhor Quinn?
Os dois seguiram para a sala de estar, deixando a Carmen sozinha na mesa.
- Sim… Preciso finalizar uns contratos burocráticos que serão assinados ainda hoje.
- Você a vai pro banco hoje, papai? - a morena perguntou com certo pesar.
- Não, não, filha…
Os dois se sentaram no sofá abraçados, Claire amava ficar assim com o pai, ela se sentia protegida, acolhida, coisa que nunca havia provado nos braços da mãe.
- A Charlotte vem assinar os contratos aqui em casa.
Claire deu um pulo do sofá e se pôs de pé.
- O que?!
Ding Dong.
A campainha tocou junto com o coração de Claire que disparou.
- Oh, não sabia que ela iria chegar tão cedo! - disse o Quinn animado.
***
* Eutimia: Perfeita tranquilidade, serenidade.
*1- Guacamole: Iguaria típica da culinária mexicana, pure de abacate temperado.
*2- Tortilla: Pão de folha de farinha de milho ou de trigo.
* 3- Chilli com carne: Cozido quente composto de chilli, carne e feijão.
Fim do capítulo
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