Capitulo 11
A porta do meu quarto estava entreaberta. Ouvi Elis bater.
- Pode entrar.
- Leah, você tem uma tesoura pra me emprestar?
- Tem na gaveta da cozinha.
- Você está bem? Está um calor enorme lá fora e você ai coberta. Está com febre?
- O que? Não. - Eu tirei o lençol que cobria minha cara, olhando para ela.
Ela se aproximou de mim e colocou a mão na minha testa.
- Você está quente.
- Não estou com coronavírus se é o que está pensando. Não estou nem com sintomas de gripe. – Revirei os olhos.
- Você tem termômetro?
- Tenho, mas não é febre. Pode ficar tranquila.
- Aonde está?
Estava deitada do lado direito. Ela estava de pé ao meu lado. Sentei-me na cama e comecei a abrir as gavetas do móvel, na primeira não estava. Havia alguns papéis, carregadores de celular. Quando abri a segunda, eu quase morri no lugar, queria que surgisse um buraco no chão no qual pudesse me engolir. Meu pau de borracha com cinta estava lá. Eu fechei a gaveta na mesma hora num movimento brusco, mas tenho certeza que ela o viu.
Senti meu rosto corar.
- Gaveta errada.
Ela riu, também sem graça.
- Acontece.
Abri a terceira e lá estava o termômetro. Tirei-o da embalagem de plástico e o coloquei ainda sem graça debaixo do meu braço, sem conseguir encará-la. Eu só fazia merd*.
- É da Carla? – Ela perguntou, de cabeça baixa.
- O termômetro?
- Não...
Mordi os lábios. Ainda estava de cabeça baixa, sentindo meu rosto pegando fogo. Limpei a garganta.
- Não, é meu. - Não sei o que ela deve ter pensado daquilo. - Eu não estou com febre. – Mudei de assunto, aquele assunto estava muito perigoso.
- Sim, mas é melhor conferir.
Ela então começou a se entreter com um quadro na parede do quarto. Era uma pintura que eu tinha comprado desses artistas amadores que ficam na Av. Paulista de domingo. Era de um barco pesqueiro no mar. O termômetro apitou.
- Olha só: 36,7°. Não estou com febre nenhuma.
- Ótimo.
Ela foi então até a minha estante de livros.
- Posso?
- Pode.
Correu os dedos pelos títulos. Parou e puxou um livro de capa dura, antigo.
- Amor de Perdição? Sério? – Ela estava admirada. Era um romance de época do Camilo Castelo Branco.
- Não comece com suas suposições.
Ela riu e o guardou. Pegou outro.
- As Brumas de Avalon? Deixa eu adivinhar, foi daí que começaram seus sonhos premonitórios? – Ela brincou.
Eu ri e neguei, ela também o guardou.
- Amor nos Tempos do Cólera. – E ela fez um barulho engraçado - Esse também foi pra escola, é?
- Chega, Elis. Já deu. Deixa meus livros em paz.
Elis então me olhou pensativa e perguntou.
- Você esperaria 50 anos por uma mulher?
Ela se referia a história do livro.
- Acho que eram outros tempos.
- Mas você esperaria, se você a amasse?
- Imagina, esperar até o marido dela morrer pra finalmente casar? Do jeito que eu sou sortuda, capaz que eu morresse antes. Com 75 eu nem ia ter tempo de curtir o amor da minha vida. Ce ta louca. – Fiquei em silêncio, pensativa. Depois respondi: - Eu esperaria alguns anos, mas não muito. E você?
- Se eu amasse muito a pessoa sim, eu esperaria. Principalmente se eu soubesse que ela era um grande amor.
- Se ela fosse seu grande amor estaria com você e não casada com outra pessoa por 50 anos.
Ela deu de ombros, talvez concordando e guardou o livro, tirando outro da estante.
- Cem sonetos de Amor de Pablo Neruda?! Eu to é muito surpresa.
Eu me levantei da cama no mesmo momento. Eu tinha escondido esse livro, tinha escondido muito bem. Aonde ela o tinha achado? Tentei tirar o livro de suas mãos, mas ela se virou de costas e me afastou. Ela começou a recitar em voz alta e o pior de tudo, no original, em espanhol.
Eu fiquei completamente paralisada. Até então não a tinha ouvido falar em espanhol. E era a coisa mais bela que já tinha ouvido. Mais bela do que qualquer música que já tivesse escutado. Eu desisti de tirar o livro das mãos dela, seria uma afronta. Sentei-me em minha cama, ouvindo aquelas palavras saindo de sua boca, como se fossem beijos lançados ao vento. Eu abracei meu travesseiro. Lutando contra o desejo crescente em mim. Era ridículo, ela só estava lendo um poema. Contudo, aquilo me deixou completamente rendida. Eu acho que nunca tinha ficado excitada com uma situação igual àquela. E eu estava. Mas acima de tudo, ela me emocionava. As coisas que ela fazia, a forma como fazia, me emocionavam.
Ela parou de ler e olhou pra mim. Eu ali, entorpecida, abraçada ao meu travesseiro. Me sentia completamente estúpida. Ela ficou em silêncio.
- Continua. - Eu pedi.
Ela surpresa, continuou. E tudo ficou pior, porque ela agora estava virada em minha direção e começou a recitá-los olhando pra mim. Eu não respirava. Não conseguia tirar meus olhos dos dela. Olhava para a forma como sua boca mexia, seus lábios pronunciavam certas palavras, seu sotaque.
Ao mesmo tempo parecia ser a coisa mais errada do mundo aquilo que estávamos fazendo. Como se fosse algo muito secreto. Eu me sentia nua em sua frente. Como se ela me possuísse com aqueles sonetos. Como se nos amássemos na cama atrás de mim naquele momento. Era tão... íntimo.
Ela então parou de ler. Fechou o livro. Colocando o cabelo atrás da orelha. Guardou-o na estante. Parecia um pouco nervosa.
- Com licença, eu vou ao banheiro.
E ela saiu do meu quarto, sem encarar meus olhos. Eu fiquei ali ainda sentada por longos minutos. Deixei que meu corpo caísse para trás. Levei as duas mãos à cabeça.
Depois de algum tempo levantei e fui a procura dela. Percebi que estava ao telefone. Eu passei direto pela sala e fui até o banheiro, mas deixei a porta entreaberta para ouvir a ligação.
- ... No sé cuándo volveré a Uruguay. No me presiones... – Ela fez uma pausa. Caminhou até a sacada. A voz ficou mais baixa. - Todavía tengo muchas cosas que hacer aquí... Sí, estoy con Leah. Ella es muy amable, te gustaría. Sí, me estoy cuidando, Andres. Como esta Juan? – Ouvi ela rindo. - Necesito ir ahora. Después hablamos. Un beso. Sí, yo también te extraño.
Fechei a porta do banheiro.
Ela estava falando com o noivo. Disse que também sentia falta dele.
É claro, era o noivo dela, Leah. Por que não sentiria? Eles vão se casar, sua idiota.
Eu precisava era de um banho gelado pra apagar esse fogo.
***
Pouco mais tarde quando já tinha anoitecido, estava deitada na cama com o notebook no colo, estava vendo vídeos engraçados de gatos no YouTube e rindo. Ouvi passos na sala e então gritei por Elis. Ela apareceu dentro de poucos segundos e parou na porta.
- Meu, você precisa ver isso. – Disse, voltando o vídeo ao começo. – Vem aqui. – Sentei-me na cama e ela se aproximou, parou de pé ao meu lado. Dei o play e revi o vídeo com ela. Era uma coletânea de gatos fazendo coisas engraçadas. Ela também começou a rir, sentou-se em minha cama.
- Procura se tem um filme chamado Contato Mortal.
Fiquei olhando pra ela com um ponto de interrogação na cara, nunca tinha ouvido falar nesse filme antes. Digitei na busca e lá estava. Era do... Van Damme?
- Eu via com meu pai esse filme, ele amava. - Ela disse com um ar saudosista.
- Quer ver? - Perguntei.
- Ele é meio chato pra quem não gosta desse tipo de filme.
Apontei com a cabeça para o lado vazio da cama, como se fosse um positivo, já dando o play. Percebi que ela ficou um pouco na dúvida se iria se sentar ou não, mas então deu a volta e sentou-se.
Era um filme de 1988. Logo no começo começamos a fazer vários comentários sobre os personagens, os veículos, sobre como o Van Damme tava novo.
- Nossa, muito diferente ouvir com a dublagem em português. Eu via sempre em espanhol.
- Como você manteve seu português tão fluente se saiu daqui há tanto tempo?
- Ah, eu tenho alguns amigos brasileiros, mas eles moram em Curitiba. Tenho um amigo de Brasília também. Sempre nos falamos por Skype.
- Entendi.
Então um rapaz com um... que arma era aquela? Um rifle? Atirou em outra pessoa.
- Esse filme não é muito violento pra uma criança assistir? - Perguntei.
- Eu adorava.
E rimos.
Após algum tempo percebi que ela se sentia um pouco mais à vontade, não percebia mais seu corpo tão tenso há poucos centímetros do meu, ela descruzou as pernas e as estendeu na cama. Ajeitando o travesseiro em suas costas.
- Esse é o Jackie Chan? - Perguntei quando apareceu um personagem de olhos puxados.
- Claro que não! - Ela riu. - Nada a ver com ele. Não é só porque ele é asiático que é o Jackie Chan
- Seu pai gostava do Jackie Chan?
- Não, ele gostava do Jet Li.
- O único filme que vi com ele foi Os Mercenários.
- Esses mais novos não vi nenhum. – Ela respondeu.
- Meu, você precisa ver. É ótimo e eu nem gosto de filme assim.
- Qualquer dia você me mostra.
Claro, com prazer. Pensei. E voltamos a ver o filme. Não era um filme que me prendia muito pra falar a verdade. Estava vendo, mas minha cabeça estava presa a mil pensamentos que não aquilo. Como por exemplo, será que ela tinha visto aquilo quantas vezes com o noivo? Ou, qual foi a última vez que vi um filme com Carla? Eu não me lembrava. Percebi então que Elis se ajeitou um pouco mais, agora se deitando.
- Nossa.
- O que foi?
- Sua cama é muito macia. - Ela amoldou o travesseiro debaixo de sua cabeça.
- Desculpe o sofá deve ser muito duro.
- Não se preocupe. Prefiro mil vezes dormir no chão do que continuar na casa da minha família. Quer dizer, eu sei que você também é da minha família, mas você é diferente deles.
- Que bom, quero que se sinta à vontade aqui.
Voltamos a ver o filme e aos poucos nossas conversas cessaram. Não fazia ideia de que horas poderia ser, mas o sono já se apoderava de mim e ainda faltava meia hora pra acabar o filme.
Dei graças a Deus quando acabou.
- Olha, pra falar a verdade... – E olhei pra ela... mas percebi que ela tinha pegado no sono. Ela dormia tão tranquilamente. Eu a chamei baxinho. - Elis. - Chamei outra vez. - Elisheva.
E agora?
Eu fechei o notebook, coloquei-o no chão e me cobri, cobrindo-a também com o lençol. A luz que adentrava pela janela deixava o quarto numa penumbra. Eu me deitei, virada para ela, tentando não me mexer para não a acordar. Fiquei admirando suas formas, ouvindo o barulho de sua respiração, os pequenos ruídos que ela fazia enquanto dormia.
Eu estava completamente extasiada.
Adormeci naquela noite vencida pelo cansaço.
Fim do capítulo
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caribu
Em: 17/08/2020
Amor nos tempos do cólera é meu livro preferido. Comecei a ler seu livro por conta do trecho na sinopse.
Esse capÃtulo foi um mimo â¤
Resposta do autor:
q legal, você foi a primeria pessoa que pegou a referência haha fico feliz que tenha gostado do capítulo, é um dos meus preferidos!
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thays_ Em: 15/04/2023 Autora da história
Imagina só, Lea!!