Capitulo 66 - Somos os mesmos e vivemos como nossos pais
Helena fazia uma irrigação de orelha externa para remoção de um inseto morto no conduto auditivo externo de uma criança de sete anos de idade acompanhada da mãe em uma das salas de triagem da emergência, quando Thaísa apareceu.
“Como sabia que eu estava aqui?” Helena pergunta, enquanto ajusta a cuba de aço inox que o menino ajudava a segurar pouco abaixo do lóbulo de sua orelha esquerda.
“Perguntei à Dra. Camila.” Thaísa respode. “Já está terminando?”
“Já sim.” Helena olha para a cuba e vê o cadáver do inseto. “Missão cumprida.” Ela olha para a mãe, que agradece, retira os papeis-toalha descartáveis que estavam no ombro da criança para não molhá-la e então vai embora.
“Escuta, eu sei que você está de plantão hoje, então já deixa eu lhe avisar que vou sair para jantar com meus pais e a Nicole.”
“Na verdade, não estou. O Mário trocou de última hora comigo... mas a Nicole aceitou sair de sua rotina para um jantar com os pais? Que milagre é esse?”
“Bem, eu conversei com ela... acho que vou contar toda a verdade para eles de uma vez. Estou protelando isso há tempos, e na oportunidade que tive, acabei desperdiçando. Mas agora não vou deixar passar.”
“Está falando sério? Tem certeza que não quer que eu vá?”
“A Nicole estará lá, vai ser um momento importante para minha vida e minha irmã quer fazer o papel dela de me apoiar. Não se preocupe, ficarei bem.”
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Helena saiu de seu turno e, inspirada por sua amada, resolveu visitar seu pai e dar um beijo de boa noite nos gêmeos. Quando chegou, viu seu progenitor em uma cadeira de praia à beira da piscina tomando uma cerveja e observando a noite de luar.
“Pois quem é vivo sempre aparece!” Heveraldo, com um sorriso no rosto, tira outra garrafa de cerveja do cooler e oferece à filha.
“Boa noite, pai! Cadê os meninos?” Helena se senta na cadeira ao lado e pega a cerveja.
“Já foram para a cama, a nova governanta é bem estrita com os horários deles.”
“E a namorada? Como vai?”
“Nós terminamos.” O pai se entristece brevemente. “Não era bem um namoro... mas terminamos.”
“Um dia o senhor ainda vai encontrar alguém para o resto da vida, pai.”
“Irônico que eu lhe dizia isso no final da sua adolescência.” Heveraldo ri. “Mas se eu não encontrar, tudo bem, já vivi o amor da minha vida de qualquer maneira.”
“Quem? A mãe dos gêmeos?”
“Não. Sua mãe.” Heveraldo rebate prontamente.
“Sério?” Helena arqueia uma sobrancelha.
“Sim, por que você acha que não?”
“Sei lá, o senhor a traiu...Quem ama faz esse tipo de coisa?”
“A vida é muito mais complexa do que isso, Helena.”
“Parece mais uma desculpa de um cara que não honrou os votos...”
“Eu errei, Helena.” Heveraldo suspira e toma um gole de sua cerveja. “Já admiti diversas vezes isso, inclusive para você. Sei que não justifica, mas o casamento já estava acabado. Sua mãe havia deixado de me amar há muito tempo.”
“Então por que não conversaram? Por que o senhor não desabafou isso ao invés de fazer algo que a machucasse?”
“Porque doeria menos ser o culpado do fim. Mas ah... ainda me lembro do dia em que a conheci... eu era estagiário na empresa do seu avô, e ela era secretária do diretor financeiro. Não me recordo das roupas que eu usava, mas lembro bem que ela usava um vestido daqueles... como se diz mesmo? Em tubo? Era um desses na cor preta, bem formal...”
“Ahm... acho que minha sala é essa.” O jovem Heveraldo nervosamente ajustava seus óculos, na entrada de uma das salas de escritórios da empresa, observando a mulher sentada à escrivaninha, organizando uma pequena pilha de papeis.
“Você que é o filho do Horácio?” Franciele, apesar de ser da mesma idade do rapaz, aparentava ser bem mais madura, e logo subestimou o garoto.
“Sou eu.” O rapaz encheu o peito e respondeu.
“Ótimo. Seu pai pediu para avisar que o RH se confundiu e sua sala é no segundo andar, e não no terceiro.” Franciele continuou a organizar os papeis.
“Mas é aqui nesse andar que ficam os diretores...” O jovem argumentou, contrariado.
“E você é diretor?” Franciele perguntou, ao levantar-se.
“Não, m-mas...”
“Pois bem. Essa sala aqui vai ser para a nova fotocopiadora dos diretores.” Com um um sorriso, Franciele pediu licença e saiu da sala.
“E ela não falou qual era a sua sala?” Helena pergunta, curiosa.
“Aquela era realmente a minha sala, ela me fez perder quase uma hora para descobrir que era uma brincadeira que tinha combinado com alguns dos funcionários.” Heveraldo revira os olhos e ri. “Como eu amei essa mulher.”
“Ela lhe amou de volta também, pai. Quando eu era criança, lembro-me da maneira que vocês se olhavam.”
“Sim, fomos muito apaixonados, minha filha, disso você não tenha dúvida. Quase casamos fugidos, aliás.”
“O quê?!”
“Sim, planejamos fugir, ela juntou um dinheiro, iríamos morar com a tia dela por um tempo, até eu poder arranjar um emprego.”
“Por quê?”
“Sua avó não aceitava a Fran no começo, devido...”
“Devido ao fator socioeconômico...” Helena torce o lábio. “Não acredito...”
“Não acredita por quê?”
“Foi só uma expressão, na verdade só achei irônico.” Helena dá de ombros. “Mas o que aconteceu para a vovó mudar de ideia?”
“Ela descobriu que eu iria fugir com a sua mãe e deixar tudo para trás, então ficou morrendo de medo de perder o filho.” Heveraldo explica.
“Quem diria que meus pais eram temerários...” Helena brinca.
“Mas valeu a pena, Helena, cada momento vivido com ela valeu a pena.”
“E por que acabou? Digo, o senhor me disse que já estava acabado antes mesmo da traição...”
“Porque tudo tem um prazo de validade, minha filha. Alguns prazos tem como fim a morte, mas outros prazos expiram em vida, mesmo.”
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Nicole preparou a mesa do jantar com esmero, e quando seus pais chegaram do hotel, milagrosamente não tinham nenhuma crítica. Apenas algumas questões.
“Filha, por que o quarto de Thaísa sempre está com a porta fechada?” Nicolau pergunta, ao observar um cômodo trancafiado.
“Sabe como ela é organizada pai, e o senhor sabe como eu sou um furacão de bagunça, então...” Nicole tenta explicar o motivo do cômodo extra estar trancado, pois na verdade era uma pequena lavanderia. “Ah, falando nela!” A filósofa aponta para a irmã caçula que acabara de chegar.
“Oi pai, oi mãe!” Thaísa os beija com afeto e logo vai ao banheiro para lavar as mãos e se sentar ao lado de seus progenitores.
“Não vai deixar sua bolsa no seu quarto, filha?” A mãe pergunta.
“Não, eu...” Thaísa automaticamente pensa em mentir, mas, cansada disso, respira fundo e muda a tática. “Vamos jantar? Depois eu gostaria de conversar com vocês.”
“Não quer nos mostrar seu quarto primeiro?” O pai insiste.
“Pelo visto a conversa vai sair antes do que eu imaginava.” Thaísa comenta rapidamente consigo mesma. “Pai, mãe, eu venho protelando há um bom tempo, talvez por medo, não sei... eu só queria dizer qu-”
“Espera, filha.” Nicolau interrompe. “Se você está mentindo para nós, podemos resolver isso. Imagino que conviver com a Nicole não tenha sido fácil e você resolveu sair.”
“Hey, eu estou bem aqui!” Nicole reclama, franzindo a testa.
“Sua mãe e eu compreendemos perfeitamente, Thaísa.” Nicolau continua. “E agora que vamos nos mudar para cá, será um novo começo. Você não precisará mais nos esconder isso.”
“Não, pai, não é isso.” Thaísa respira fundo novamente. “Digo, é sim, eu realmente não moro mais com a Nicole. Eu estou morando com outra garota.”
“Imagino que você tenha arrumado alguma colega de apartamento para dividir as despesas, mas se vocês fecharam algum contrato com certeza podemos negociar.”
“O contrato que ela queria era provavelmente para outra coisa...” Nicole balbucia.
“Pai, o senhor não compreendeu. Eu moro com outra garota. Divido a minha vida com ela. Somos namoradas.”
“Tudo bem.” O pai afirma, enquanto serve seu próprio prato.
“Tudo bem?!?” Thaísa e Nicole perguntam, completamente surpresas.
“Sim, e por que não estaria?” O pai pergunta, enquanto a mãe, Nicole e Thaísa o encaram assustadas.
“Não sei... eu só não esperava que o senhor fosse reagir tão tranquilamente quando soubesse a verdade.” Thaísa explica.
“Filha, você terminou um relacionamento importante em sua vida. Eu achei que Élvis iria casar com você. Quando eu e sua mãe terminamos por um breve momento antes de nos casarmos, saí com más companhias, desviei do bom caminho, usei substâncias que não deveria ter usado, mas tudo se consertou logo depois e eu criei juízo. Você deve ter saído com más companhias que lhe colocaram isso na cabeça.” Nicolau continua em negação.
“Espera, o senhor está comparando seu período de desvio com o meu atual namoro?!”
“Eu só quis explicar que todos temos momentos ruins e tomamos decisões que não nos fazem bem quando nos desesperamos.”
“Pai...” Thaísa suspira novamente. “Helena e eu namoramos há anos. Élvis foi um relacionamento falso para não levantar suspeitas.” Thaísa revela, deixando o ambiente em um silêncio mortal.
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“O senhor voltaria com a mamãe?” Helena pergunta, antes de iniciar outra garrafa de cerveja.
“Não... como já lhe disse, ela finalmente encontrou o amor da vida dela e por muito tempo eu tentei negar isso.”
“Como assim?”
“Sua professora de matemática no cursinho... você não sabia que há alguns anos a nossa empresa havia contratado os serviços dela? Foi em uma época que estávamos mudando os softwares. Ela fazia parte de uma equipe de programadores e técnicos em T.I e nos foi de grande ajuda.”
“A mamãe e ela ficavam desde aquela época?”
“Não... inclusive só descobri porque li uma carta que sua mãe escreveu antes de enviar para Laura, alegando que tudo o que sentiu foi platônico e nunca passaria daquilo.”
“Tudo isso antes da professora Laura me dar aula?”
“Sim.”
“Mas a mamãe disse que elas se encontraram pelo aplicativo, e se reconheceram por minha causa e-”
“...e alegou que iria esperar um tempo para poder se assumir para você, não foi? Sim, ela conversou comigo a respeito. Concordamos em combinar a história para que o impacto não fosse tão grande na época.”
“Mas vocês não estavam meio brigados naquele tempo?”
“Estávamos e não estávamos. Ela estava brava porque eu havia traído, mas no fundo se sentia agradecida por eu ter pisado na bola para que ela pudesse sair daquela relação morna, praticamente fria. Minha relação com a sua mãe sempre foi muito complexa, mas quando o assunto era você, tínhamos que deixar essa complexidade de lado.”
“Uau.” Helena respira fundo e finaliza sua cerveja. “Isso coloca muita coisa em perspectiva.”
“Por que, filha?”
“O fato de ela ter me contado que sofreu na faculdade com uma garota que não deu certo, depois ter encontrado um amor que deu certo, que foi com o senhor, e tê-lo visto expirar só para depois sofrer durante anos por outro amor, que é a Laura... eu estaria fadada a isso?”
“Sua história só cabe a você e suas escolhas, Helena.” O pai responde, com o sorriso de uma pessoa experiente. “Mas qual o motivo da preocupação?”
“Nada, não...” Helena coça a cabeça e suspira. “Bem, Thaísa está tendo alguns problemas com a família dela, e espero que resolvam isso o quanto antes.”
“Sempre que há um problema com alguma das empresas, tento fazer tudo que está dentro meu alcance para resolver. Quando o problema depende de terceiros, tal como o resultado de alguma negociação, eu respiro fundo cinco vezes e digo para mim mesmo que não posso controlar o que está fora do meu alcance.”
“Faz sentido, respirar profundamente ajuda a oxigenar o cérebro, ajuda a pensar melhor.” Helena sorri, mas continua pensativa.
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“Eu não posso estabelecer uma conversa com você enquanto sua mente estiver nublada com essa malignidade.” Nicolau se levanta da mesa e vai pegar seu casaco.
“O senhor já vai embora?” Thaísa questiona. “Mamãe, a senhora não falou nada...”
“Eu estou extremamente decepcionada, Thaísa, tal qual seu pai. Não esperávamos que pudesse nos ter enganado por tanto tempo”. A mãe segue o pai enquanto se direcionam para a porta.
“Então é assim? Vocês não vão se mudar para cá?”
“Nós vamos sim, até porque era um desejo de sua mãe morar na capital algum dia.” Nicolau responde. “E sabemos que um dia você voltará ao normal e retornará ao seio de nossa família.” O pai vira as costas e vai embora com a mãe, deixando as filhas completamente sem ação.
Thaísa, após alguns minutos, não resistiu e desatou a chorar no sofá. Sua irmã se sentou ao lado dela e tentou consolá-la, sem obter grande sucesso.
“Eu não sei o que fazer, Nicole! Eu não sei o que fazer! De um lado, meus pais me pressionando, do outro, a Helena!”
“Helena não está lhe pressionando, Thá. Pelo que você me contou, ela tentou elaborar planos para lhe ajudar, mas sempre respeitou seu espaço.”
“Você viu a maneira que o papai me tratou? Ele não me leva aa sério!”
“Sempre será assim, Thá. É do papai que estamos falando.”
“O pior é que eu amo a Helena, se fosse qualquer outra garota no mundo eu não pensaria duas vezes em deixar tudo para trás e obedecer o papai, mas é a Helena!”
“Thaísa, você sabe que se eu pudesse, decidiria por você e você sabe qual seria minha decisão. Meu desejo é ver você feliz com a Helena, mas temo que você fique ressentida por perder o amor do nosso pai, que foi algo que você sempre se gabou de ter.”
“Eu já tomei a minha decisão.” Thaísa seca as lágrimas e se levanta. “Preciso ir agora.”
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Ao chegar em casa, um pouco mais tarde do que previa, Helena encontrou uma carta em cima da mesa de café. Com o coração disparado, iniciou a leitura.
Helena,
Você já me conhece há anos e sabe o quão tímida sou. Falar esse tipo de coisa pessoalmente não é comigo, eu fico toda vermelha... a essa altura você já me procurou em todos os cômodos da casa, menos na varanda, cuja porta está fechada e coberta pela cortina. Sim, foi proposital, mas não abra ainda, agora que sabe onde estou, preciso que leia primeiro.
Leia primeiro, já disse, sem bisbilhotar!
Bem... acho que já passamos por poucas e boas, não? Você suportou esse tempo todo escondida, enquanto eu mostrava um relacionamento de fachada, nos amávamos nos bastidores.
Nesse tempo todo aprendi um universo inteiro de experiências e aventuras novas. O número de músicas que você me apresentou nesses últimos anos preencheu quase um terço da memória do meu celular, e ainda sim cada música representa uma memória única que está para sempre gravada em meu cérebro.
Lembro-me de um momento peculiar, foi no seu último ano de internato, você teve uma breve fase country! Tenho certeza que você se lembra. Mas o que mais me marcou foi quando me mostrou uma música, um videoclipe na verdade, dizendo para prestar atenção na letra, e eu disse que já conhecia pois escutei a versão original.
Você, relutante, contra argumentou que aquela versão country era original, e eu lhe mostrei a versão pop-rock que havia sido produzida três anos antes... ver você fazendo bico enquanto reclamava baixinho no meu quarto, tentando não fazer barulho para os meus pais não ouvirem enquanto compartilhávamos o fone de ouvido realmente ficou para sempre dentro de mim.
E com certeza você se lembra da música, mas caso não se lembre de toda letra, pode vir aqui na varanda que estou lhe esperando...”
Helena rapidamente puxou a cortina e abriu a porta da área externa, encontrando Thaísa segurando uma pequena caixinha vermelha que conhecia bem.
“Eu lembro da música.” Helena sorri, segurando-se para não chorar.
“I can’t wait for you to be my wife, to live this life together…” Thaísa, com a voz trêmula, tenta cantarolar.
“Eu ainda acho a versão country do Ben Rue bem melhor!” Helena brinca, para afastar a vontade de chorar.
“Boba...” Thaísa também ri. “Reconhece essa caixinha?”
“Sim, quando comprei, tentei escondê-la de você para poder usar no momento certo, mas você foi mais esperta...” Helena responde, envergonhada.
“Ou talvez esse seja o momento certo...” Thaísa abre a caixa, revelando um par de alianças de noivado feitas com ouro branco, grafadas com H & T para sempre.
“Você nem precisa perguntar. Eu aceito!” Helena não se segura de felicidade e envolve Thaísa em um beijo regado a lágrimas de felicidade e emoção.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
nany cristina
Em: 24/03/2020
Bom dia
Que lindo eu tô amando a Thaísa com Helena como casalâ¤
Resposta do autor:
Olá meu anjo!!
O capítulo que você mais aguardava já foi postado, espero muito que goste ;) beijão!
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Marta Andrade dos Santos
Em: 23/03/2020
Eita lindo.
Resposta do autor:
â¤â¤â¤â¤â¤â¤â¤â¤â¤â¤â¤â¤ o amor está no ar para as personagens!
Beijão!
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