Dezessete
|Amanheceu; é hora de voar|
Caroline
De toda a discussão, a última frase dela me derrubou por inteiro. Foi como um soco bem na boca do meu estômago vazio. Aquele “Vá embora” cheio de convicção, decepção, raiva, angústia e tudo de ruim que você pode imaginar, me fez querer desistir da vida novamente. Porque, para uma pessoa que sofre de ansiedade e depressão, uma simples frase fora do tom, é como uma arma apontada para o peito. Uma bala que atinge o alvo e o dilacera.
Uma avalanche de pensamentos ruins começou a tomar conta de minha cabeça enquanto eu andava desnorteada pela rua. Não queria voltar para o meu apartamento naquele momento, pois se voltasse... Bem, você já sabe o que poderia acontecer, não é? E era provável que dessa vez eu conseguisse, pois o tamanho da minha dor era equivalente à minha vontade de morrer. Porém, eu tinha prometido não desistir. Nem que fosse pela força do ódio que eu estava sentindo ali. Seja lá quem fosse, eu iria acabar com a pessoa que estava tentando tirar minha Nicolle de mim. Pois poderiam me tirar tudo na vida, menos ela. Menos a mulher que eu amava e que eu sei que me amava. Ela não negava seu amor e isso era tudo para que eu continuasse.
Andava pensando e chorando pelas calçadas da rua Marielle Franco, onde ela morava; olhei a placa do poste demoradamente, como se aquela fosse minha última vez ali. Continuei caminhando; o choro me acompanhava e a raiva também. Eu tentava lembrar de tudo antes de tomar o drink, mas só Bruno e o velho desgraçado vinham à minha mente. E a vadia da Melina... Desgraçada! Essa estaria fodida na minha, com certeza. Era provável que estivessem todos juntos, com o comando e influência do miserável do Bruno, tramando contra mim.
“Só que dessa vez eu não serei derrubada!” — Pensei antes de tropeçar numa pedra da calçada de cimento e cair de quatro no chão áspero.
— PORRA! Que inferno... — Comecei a chutar a lixeira de metal que estava na calçada, fazendo-a virar e espalhar todo o lixo — Que Porr*, mano! Que PORRA!! Que miséria de caralh* de vida! — disse as últimas palavras já chorando de novo. Cara, estava foda, era uma dor imensa que eu carregava.
Sentei no meio-fio, perto do lixo e coloquei a cabeça pendida entre os joelhos. Me sentia uma indigente... Só queria voltar lá e abraçar minha mulher, pois sabia que ela também estava sofrendo, achando que eu era a cretina da história toda. Quando eu era apenas uma... “Pobre coitada, é isso que sou”. Era assim que me sentia. E isso era horrível. Era deprimente.
Fiquei na posição de derrotada por alguns instantes, chorando, pensando sobre tudo... Até que senti uma mão tocar meu ombro. Me assustei. Levantei minha cabeça imediatamente. Por um milésimo achei que fosse ela, Nicolle... mas não era. A mão era pequena demais, uma mão quase infantil. Olhei e me deparei com uma garota de cabelos estranhos me encarando. Não disse nada, fiquei encarando-a com curiosidade, até que ela falou:
— Você está bem?
— Tô de boa.
— Está chorando. Não parece estar de boa.
— Tô de boa, pirralha! Vaza.
— Você é a Caroline da Nicolle, não é?
— Sou... — respondi, reticente, querendo entender como a pirralha me conhecia. — Como sabe?
Ela sentou-se ao meu lado, no meio-fio mesmo, perto dos lixos que eu havia espalhado com a revolta.
— Credo, que fedor!
Fiquei quieta, esperando-a se ajeitar e me responder. Limpei minhas lágrimas para conseguir enxergá-la melhor. Era bem menor que eu; uma garotinha que aparentava ter lá seus treze anos.
— Como me conhece?
— Vocês são meu casal preferido de toda a rua. Meu shipp que deu certo. O shipp perfeito.
— Quê? — Eu não estava entendendo nada. Minha cabeça doía, mas eu tentava entender.
— Ah, tipo... Eu acho lindo quando vocês estão juntas. Tem um menino, o Pedro, que é vizinho do lado da casa da Nicolle, aí quando vocês brigam, ele ouve tudo e me conta.
— Tá de zoeira? — Finalmente consegui rir. — Que fofoqueiro.
— Mas eu que peço para ele me contar. Ele também torce por vocês. Nós até fizemos um fã clube no instagram. Já tem 1k de seguidores e está crescendo cada vez mais. Meu amigo escreve no Wattpad e está fazendo uma fanfic de vocês. Carolle... Tá bombando.
— Tá brincando? — Meu sorriso tomou o rosto, por um momento eu esqueci dos problemas e foquei no assunto engraçado da garotinha.
— É sério. Eu e o Pedro somos muitos seus fãs. E tem uma galera no fã clube que é também. A gente ama vocês duas.
— Cara, quero ver essa parada aí...
— Vou te mostrar — Ela foi tirando o celular do bolso para me mostrar a presepada. E enquanto entrava no aplicativo, perguntei:
— Qual o seu nome?
— Namuh.
— O quê?
— Era Amarílis, mas eu mudei porque minha vida estava uma merd* e eu queria ser outra pessoa, mais corajosa, mais determinada. Agora sou Namuh.
— Que figura! Gostei de você, Namuh.
— É Human ao contrário. Humano em inglês, sabe?
— Saquei. Interessante...
Não disse mais nada e ela me mostrou a rede social onde havia criado um fã-clube meu e da Nicolle. #Carolle. Que viagem! Me senti até uma celebridade quando vi. A danada havia pegado fotos minhas e dela, nossas juntas, nas nossas redes sociais e outras fotos foram tiradas escondido, como se tivessem sido feitas por paparazzis. Nos tratavam como estrelas do cinema ou da música. Era estranho, mas preciso dizer que achei legal.
— Desculpe tirar fotos de vocês escondido, quem começou com isso foi o Pedro, mas ele... Por favor, não denuncia a página. Se quiser a gente apaga as fotos e deixa só as autorizadas.
— Relaxa. Não ligo. A Nicolle que acho que não vai gostar muito. Ela não gosta muito de se expor nas redes. É mais reservada.
— Vocês brigaram de novo, não é?
Fiquei reticente, não queria falar sobre o assunto, ainda mais para uma pirralha desconhecida, com quem eu não tinha a mínima intimidade. O rosto dela não me era estranho, depois me lembrei que já a havia visto na rua, andando de bicicleta.
— O que você está fazendo na rua uma hora dessas, menina? Está quase amanhecendo, é perigoso e você deveria estar dormindo, não deveria?
— Deveria. Amanhã tenho aula cedo. Quer dizer, hoje. Mas briguei com minha mãe, que vive bêbada, e aí não consegui dormir. Estava olhando o céu pela janela do meu quarto, quando te vi chutar a lixeira. Nossa, foi com tanta força que me assustei! — ela falava, toda descontraída — Não sei como a vizinhança toda não saiu para ver.
— Foi mal. Nicolle terminou comigo depois que me pegou bêbada... — Suspirei, sentindo uma dor aguda no peito. Uma dor tão forte e real, que tive que colocar a mão e massagear o local — Tem alguém querendo me ferrar e tirar ela de mim. Acho que dessa vez conseguiram... Ela não confia mais em mim.
Ela secou uma lágrima minha que teimou em escorrer. Eu detestava chorar na frente dos outros, mas não estava dando... precisava por para fora toda aquela porr*. Aliviar de alguma forma, para poder ter forças para ir atrás do imbecil do Bruno. E de quem mais estivesse envolvido na bagunça toda. Com certeza quebraria a cara da piranha da Melina assim que encontrasse com ela.
— Chora, não. Daqui a pouco vocês voltam.
— Relaxa, já, já passa.
A pequena me abraçou forte, como se me conhecesse há anos. O abraço me fez chorar ainda mais. Eu precisava de um abraço e parecia que eu estava diante de uma irmã mais nova. A irmã que sempre quis ter. Porém, não demorou muito, logo parei e me levantei. Limpei as lágrimas e falei:
— Preciso ir. Adorei saber do fã clube. Achei meio doido, mas também achei fofo. Às vezes é legal saber que tem gente que torce pela gente enquanto tem uns pau no cu querendo nos prejudicar. Desculpe os palavrões...
— Eu não ligo, também falo.
— Vou nessa.
— Tá bom. Vou torcer para que tudo fique bem. Não quero que se separem.
— Eu não vou deixar que nos separem. Vou descobrir quem fez as merd*s. Nem que pra isso eu me suje toda. Não vou desistir dela, não.
Namuh pegou a minha mão com carinho e disse:
— Você pode contar comigo e com o Pedro. Para qualquer coisa. — falou com tanta firmeza que pareceu um adulto falando. Senti segurança, por mais que soubesse que ela não poderia me ajudar muito. — Se quiser, a gente conversa com a Nicolle e diz que você a ama, que está dizendo a verdade.
— Não precisa, relaxa.
— Se precisar, só falar.
— Obrigada. Bom, vou nessa. Foi bom te conhecer.
— Vai para onde?
— Para minha casa. Vou tentar esfriar um pouco a cabeça antes de ir resolver as coisas.
— Me passa seu número? Eu vou te mandar um ‘oi’. Juro que não divulgo para ninguém. Não passo nem para o Pedro. Aí, você pode desabafar comigo sempre que precisar. Não quero que se sinta sozinha. Posso ser sua amiga, se quiser. Eu adoraria ser sua amiga.
Dessa vez quem quis abraçar foi eu. Parecia tão preocupada comigo... Só Nicolle demonstrava essa preocupação e cuidado todo. Passei meu telefone. Ela anotou-o toda feliz, parecendo que havia ganhado na loteria. Ninguém nunca ficou tão feliz assim só por ter meu contato de telefone.
— Nossa! — Olhou para mim com o maior sorrisão no rosto — Se o Pedro souber, ele vai pirar...
— Não conta pra ele. Pelo menos, não agora. Não estou com cabeça para ter muitos amigos, tá bom? Uma só já basta.
— BELEZA! Segredo nosso, que eu sou a privilegiada. Vou contar só para a Senhora Honey, está bem? Ela é nossa vizinha, uma idosa já. Ela também é antissocial e não tem mais amigos além de mim e de seu gato manhoso. Compartilho tudo com ela e ela nunca conta para ninguém. Quer dizer, só para o gato.
— Se é assim, beleza.
— Ótimo — Me abraçou e atravessou a rua para voltar para sua casa.
Fui embora, para o meu deprimente apartamento, não consegui adiar mais, pois minha cabeça explodia de um jeito insuportável, latejante e torturante e eu precisava deitar. Tomei um remédio, bastante água, um banho e fui dormir. Antes tentei ligar para Nicolle, mas ela não me atendeu, como eu já previa. Mandei mensagens, mas nem sequer chegou para ela. Deixei o celular no tapete, no chão ao lado da minha cama, e apaguei. Dormi feito uma pedra.
Nicolle
Confesso que assim que ela atravessou a porta e a fechou atrás de si, tive vontade de ir correndo atrás e pedir que ficasse, que voltasse para os meus braços, pois eu cuidaria dela. Mas não pude. Ela havia me traído a partir do momento que aceitou a maldita bebida. Eu estava péssima e precisava cuidar de mim.
A história de ter sido enganada, de que colocaram drogas em seu drink parecia muito surreal. Apesar de eu querer acreditar, era muito difícil. Aceitá-la após ter beijado outra... Nunca! Minha saúde mental estava indo ladeira abaixo e eu jamais poderia me deixar cair... Eu era uma psicóloga renomada e precisava estar bem para atender meus pacientes, para cuidar dos meus negócios, das minhas pesquisas, de mim...
Fui tomar um banho demorado, onde chorei e esmurrei a parede até meus dedos doerem. Mas estava decidida a não voltar atrás. Ignorei todas as ligações e mensagens dela, a bloqueei. Estava decidida a não a atender nunca mais. Eu merecia ser feliz! Eu realmente merecia alguém que lutasse e fizesse de tudo por mim. Alguém que mostrasse ser feliz ao meu lado. Alguém que estivesse feliz comigo. Que mostrasse para mim, o quanto a minha presença era agradável, o quanto a alegrava.
— Eu não vou desistir, Nicolle. Vou provar que sou inocente. Que fui drogada. Não vou deixar que ninguém me derrube. Vou provar que te amo.
Essa foi última mensagem que recebi dela antes de bloqueá-la. Eu já estava deitada, embaixo do cobertor branco, pronta para dormir. Quis retornar a ligação, pois temia que ela tentasse suicídio de novo, apesar de ter prometido lutar, pois sabia o quanto a doença era traiçoeira. Mas eu prometi que deixaria que ela vivesse por conta própria, que não teríamos mais nenhum vínculo, que não interferiria em suas decisões. Após bloqueá-la, levei as duas mãos ao rosto e chorei. Chorei feito uma mulher traída pelo amor de sua vida.
“Eu fiz por você tudo o que o meu emocional me permitiu fazer.”
Dormi pensando nela, com uma tênue esperança de que tudo ficaria bem, de que ela melhoraria. Queria que fossemos felizes, que um dia fossemos uma família, com filhos e tudo mais. Ou apenas nós duas... felizes.
Fim do capítulo
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