Sete
|Sabia que seu sorriso é lindo? Você deveria sorrir mais vezes|
Nicolle
Uma semana se passou após aquela noite de amor intensa e incrível. Caroline estava indo bem, esforçando-se, sem recaídas, mais alegre, mais ativa... Parecia voltar ao seu estado emocional antigo, ao seu estado de espírito cativante, para cima, envolvente. Seu sorriso linda andava aparecendo mais vezes. Ela tinha um sorriso lindo demais para viver escondido.
Apesar de saber que a depressão tem seus altos e baixos, que ela às vezes se esconde, que passa um tempo sem aparecer só para dar uma folga... Eu esperava que minha mulher vencesse esse câncer que consome a alma, sabe? Torci com todas as minhas forças para que tudo continuasse bem. Mas... Não aconteceu como ansiávamos.
Exatamente uma semana depois, alguns dias antes de eu pegar a quinzena de férias, ela decaiu. Ainda mais fundo, num estado que dormia e acordava chorando por não conseguir levantar. Num desânimo deplorável que, quando eu chegava em casa, ela nem havia comido ou tomado banho. E eu temia que outra tentativa de suicídio ocorresse. Comecei a ter medo de sair de casa e deixá-la sozinha.
— Não foi para a academia hoje de novo, amor? — perguntei, quando voltei e ela estava deitada no sofá com a mesma roupa que havia dormido, um blusão e uma calça de moletom.
— Não consegui. Estou me sentindo podre... Péssima. De novo. Mais um dia. Desculpe, não consegui nem levantar para lavar a louça. Lavei metade, depois fiquei tonta. Não sei se devo fazer academia, sendo que nem emprego eu tenho. Parece ser algo supérfluo enquanto minhas contas estão atrasadas.
— Não é supérfluo nessa situação. E você ficou tonta de fome, Caroline... Não comeu nada?
— Tomei dois copos de leite.
— O dia todo? — perguntei, abismada.
— Sim... — disse e começou a chorar, cobrindo o rosto com a manta azul-marinho que ela adorava.
Sentei-me ao seu lado e me curvei para abraçá-la. Beijei sua cabeça e chorei junto. Que situação! Quis falar o que sentia, o que pensava, mas nada que eu dissesse a tiraria daquele estado naquele momento. Ela havia largado a terapia e eu precisava convencê-la a voltar.
— Você vai conseguir, meu amor. É só um dia ruim. Vai passar. — Foi o que consegui dizer.
— E se eu não conseguir, Nicolle? E se eu for ficar assim a minha vida inteira?
— O que exatamente fez você ficar deprimida hoje?
— Não vem bancar a psicóloga agora com suas perguntas... Por favor. — falou, um tanto agressiva, como se tentar ajudá-la fosse algo que a ferisse, que a fizesse muito mal. E de certa forma feria. Ela andava sentindo-se inferior por estar daquele jeito, estava sentindo-se mal por estar sem grana, por não conseguir trabalhar ou estudar. Eu a entendia, realmente é horrível sentir-se tão... Inútil? Imprestável? Não. Mas era isso o que ela pensava ser. Porém, não era isso que era... Apenas estava sendo limitada e bloqueada pelo estado emocional depressivo em que se encontrava, que tirava dela toda a vontade de lutar por si mesma, toda a esperança em um amanhã iluminado e leve.
— Só quero te ajudar... — falei manso, acariciando seu rosto, após retirar a coberta que o que cobria. Ela revirou os olhos, mas depois me olhou com um sorriso torto, forçado — O que te fez ficar deprimida hoje? — insisti.
— Acordei e vi no Instagram uma foto do pessoal da sala comemorando a passagem do semestre. Me senti tão inútil, tão mal por estar longe da faculdade. O que estou fazendo com minha vida, cara?! Eu estou fodendo tudo sem motivos algum... Meus pais morreram há anos, não tenho porque parar tudo só porque a ausência deles voltou a me atormentar. E não é exatamente isso que me assola, sabe? É tudo.
— Bingo! É isso, então... Eles te fazem falta, você anda carente de afeto, de parentes, de amigos... Sente-se sozinha, não é? Mesmo que não seja só isso, isso tem pesado ultimamente.
— Sim, principalmente depois que a Alana foi fazer intercâmbio. Todos acabam me deixando, cara! Todos... Você vai acabar me deixando também. Eu sinto que vai.
Respirei fundo enquanto massageava suas mãos.
— Carol, meu amor... Presta atenção: a vida é assim, como uma rodoviária, onde as pessoas vêm e vão. Nada é eterno, tudo são ciclos. Pessoas fazem parte de nossos ciclos. Precisamos encarar isso de forma leve.
— Porr*, Nicolle! Comigo é demais, não tenho ninguém, apenas você. Até os colegas da faculdade me evitam.
— Porque você se afastou primeiro, querida... Mas, contudo, eu não sou o suficiente? Você sempre disse que comigo você era realizada, que não precisava de mais nada no mundo além do meu amor. E você o tem.
— Você é tudo pra mim, cara! Sem você... Não dá nem pra pensar em uma vida sem você. Mas eu só tenho você e nós duas sabemos que na vida precisamos de mais, de amigos, de família. De pessoas com quem eu possa desabafar quando brigamos, quando fico com ciúmes... Não dá para fazer isso com qualquer um. E as paredes não dão conselhos. Nem os diários...
— Te entendo, meu amor. Por isso acho que seria bom reabrir a matrícula da faculdade. Assim você socializaria e faria novos amigos. Quem sabe até se reaproximaria dos colegas antigos... Há essa possibilidade. A universidade te deu essa chance, de voltar a qualquer momento, já que apresentou o atestado médico.
Ela tentou a academia no dia seguinte. Tentou ir até a faculdade, mas não conseguiu ir adiante com a rematrícula. Não conseguiu, pois disse que se lembrou da amiga, dos ex-colegas que agora quase não lhe dirigiam a palavra... Não conseguiu, pois desanimou ao achar que era uma pessoa indesejada. E com tudo isso, decaiu novamente.
†
Cheguei em casa e ela estava no quarto, na cama, dormindo com cheiro de bebida. Meu rosto ferveu quando percebi, mas eu não reclamei, nem falei nada, apenas deixei que dormisse. Fui dormir na sala, mas não aguentei a noite toda, eu sentia sua dor... E a minha. Precisei me levantar e ir até ela. Minha mulher, meu amor... Eu não sabia mais o que fazer para ajudá-la e isso estava acabando comigo. Pensei em interná-la. Me senti devastada com o pensamento, mas ele me ocorreu. Não quis pensar muito naquele momento. Precisei ir abraçá-la, ir me deitar e dormir ao seu lado, para de certa forma, me aliviar de tudo.
“Será que ela vai me odiar se eu tentar convencer a se internar?” — pensei ao me deitar, pois essa nunca havia sido uma possibilidade, nunca falamos sobre. Bruno é que uma vez entrou no assunto e eu pedi que parasse.
Beijei seu pescoço, mesmo que o cheiro de álcool estivesse forte. Mesmo que as lágrimas me caíssem compulsivamente. Eu não queria perdê-la... Mas senti. Senti que já a havia perdido. A Caroline que eu amava parecia já não estar mais ali. Era algo que restou dela. Algo que era dolorido, algo pesado que... Meu Deus! Estava acabando comigo de verdade.
Ela acordou, virou-se e me olhou nos olhos. Não disse nada. Não dissemos nada... Apenas me abraçou forte.
— Me desculpe por estar acabando com tudo... — falou por fim, depois de alguns minutos.
— Vamos dormir, meu amor. — falei numa quase súplica, com a garganta dolorida, presa, com uma voz arrastada, rouca...
— Me desculpe por não conseguir controlar.
— Tudo bem — assenti e a beijei nos lábios. — Vamos dormir, preciso dormir. — Apenas queria ficar quieta, sem precisar dizer ou ouvir, pois se falasse, desabaria. E se ouvisse, também.
Algumas lágrimas escorriam involuntariamente, mas eu as ignorei e fechei meus olhos para ela e para o quarto escuro.
Virei-me. Caroline me abraçou por trás e assim ficamos... Até que adormeci. Mas antes de adormecer, pensei em diversas formas de sair daquela situação e tirá-la dela também. Mas naquela noite não consegui nenhuma possível solução, a opção de levá-la para uma clínica e interná-la, com o seu consentimento, claro, ainda me amedrontava, então parei de pensar a respeito, até porque nem estava em condições de raciocinar direito.
†
No dia seguinte não precisei ir trabalhar, estava de folga. Passei a manhã na cama sem conseguir levantar nem para comer. Caroline me levou café na cama, pois eu não estava nada bem. Me vi num estado melancólico tão limitador que eu parecia ter perdido o controle dos meus próprios movimentos.
“Não! Não vou me deixar ser consumida por isso também. Nunca...” — determinei e levantei da cama num impulso tão forte que nem pensei mais em nada além de mudar o rumo das coisas. Precisava mudar! Ou a gente enfrenta os problemas ou eles nos consomem até conseguir nos enterrar.
Fui tomar um banho enquanto Caroline ia até a farmácia comprar um remédio para cólica. Pedi que fosse, pois precisava ficar sozinha em minha casa, nem que fosse por alguns minutos. Precisava do banho quente, do silêncio, do cômodo vazio... Precisava de mim comigo mesma, para pensar em qual decisão tomar para nos tirar daquela situação horrível.
Após o banho coloquei uma música para tocar, “No Way”, da Fifth Harmony. A farmácia era relativamente longe, então... Tive tempo de ouvir algumas boas músicas e apreciar um bom vinho tinto seco enquanto refletia.
Bruno me enviou uma mensagem me perguntando como estava e eu respondi rapidamente, dizendo que estava bem, apenas. Não queria que nada incomodasse aquele meu momento. O momento em que eu me apreciava, degustava meu vinho, minhas músicas e... Pensava no próximo passo.
Enviei uma mensagem para ela e pedi que fosse até o centro da cidade para comprar algumas coisas que faltavam em casa. Precisava de mais tempo sozinha.
Como eu a amava demais, a desejava como sempre... Tudo nela para mim era irresistível, seu perfume, sua pele, sua voz, sua boca. Mas eu precisava ficar algum momento sozinha, em minha própria casa. Só assim talvez conseguisse tomar uma decisão sensata.
Minha cabeça martelava rapidamente enquanto degustava o vinho. Arquitetei um plano que parecia ser um de meus últimos recursos para tentar fazer com que tudo voltasse ao normal, com que tudo melhorasse. Parecia bom e decidi colocá-lo em prática imediatamente.
†
Caroline
Voltei para casa após fazer algumas compras e levei um susto, pois não a encontrei. Encontrei apenas uma garrafa de vinho vazia, um som ligado alto e... uma carta deixada dobrada na mesa da cozinha. Deixei as sacolas de supermercado em cima da pia e li o que estava escrito na folha de papel pardo do caderno que ela usava para trabalhar.
“Caroline, precisamos seguir nossas vidas separadas.
Estou saindo em viagem para um lugar ainda não definido. Não me procure, estou bem e ficarei bem. Por favor, cuide de você. Eu te amo, mas preciso me afastar, pois do jeito que estamos, nada irá melhorar, só iremos decair. Você precisa se cuidar, precisa reerguer-se sozinha para ver o quanto é forte. Nem eu e nem ninguém poderá fazer isso por você. Você precisa encontrar a sua força, que está escondida em algum lugar dentro de você. E eu, preciso manter a minha.
Espero que entenda, meu amor. Espero que entenda que nós duas precisamos ser fortes. Eu não posso ser forte por nós duas. Preciso que vá e enfrente o mundo, enfrente seus próprios medos, sua própria dor. Você consegue, Caroline! Eu acredito em você.
Será que preciso me afastar para que perceba isso? Bom, eu acho que sim.
Necessito de um tempo, pelo menos. Para não me perder no abismo de uma depressão também. Espero que entenda. E espero te encontrar bem. Se cuida. Eu te amo.”
Li enquanto meus olhos transbordavam e meu coração pulsava louco e desesperado dentro do meu peito. Deixei-me chorar, mas uma fúria tomou conta de mim... Uma raiva, uma espécie de repulsa pela situação toda em que estava metida.
Fiquei confusa enquanto digeria as palavras escritas por ela. Quis ir atrás, mas nem sabia onde ela estava. Liguei algumas milhões de vezes, mas o celular estava fora de área ou desligado. Liguei para o Bruno e ele disse que não sabia de nada. Aquele canalha! Mesmo que soubesse, aposto que não me contaria.
— Você sabe, Bruno. Desembucha logo, cara! Mais cedo ou mais tarde vou saber onde ela está.
— Não sei, Caroline. Deixe a Nicolle respirar, menina. Se ela fez isso é porque precisa de um tempo. Dê um tempo a ela.
— Mas eu só preciso saber para onde ela foi, se está bem.
— Última mensagem que recebi dela, ela dizia estar bem. Disse apenas que foi viajar. Deixa-a respirar, esfriar a cabeça. Ela anda precisando, nós dois sabemos disso. Você não está colaborando, garota... Dê um tempo para ela.
Não respondi mais, pois apesar de detestar concordar com ele, de achá-lo um safado escroto e dissimulado, sabia que ele estava certo naquele momento, que tinha razão ao dizer que Nicolle precisa de um tempo de mim para esfriar a cabeça.
“Claro, sou a porr* de uma garota tóxica... Qualquer um se afasta, senão morre sufocado. E, além do mais, eu sempre soube que ela também iria embora” — pensei.
Enviei mensagens pelo Whatsapp para ela, mas não foram recebidas. Liguei novamente e nada. Passei horas aflitivas tentando me comunicar, até que desisti e joguei o celular longe, no outro sofá, para que não se espatifasse no chão e eu ficasse sem nenhuma possibilidade de comunicação com ela.
Quando o aparelho caiu no estofado, com a tela para cima, o visor acendeu anunciando uma ligação. Fui imediatamente atender e me deparei com a imagem de Bruno na foto da ligação. Atendi, mas a chamada caiu... Ou ele desligou, sei lá.
“O que esse cara quer?”
Em seguida, segundos depois, recebi uma mensagem dele. Achei estranho, pois isso nunca acontecia. Ele nunca me ligava ou me mandava mensagem.
— Caroline, vem para o hospital o mais rápido que puder! Nicolle sofreu um acidente grave e está entrando numa cirurgia de emergência.
Fiquei em choque por alguns longos segundos até conseguir raciocinar.
— Que porr* é essa, Bruno?! Vocês estão brincando comigo, né, é alguma piada? Fala sério, cara... Sei que me detesta, mas com isso não se brinca.
— Caroline, cala a boca e vem para o hospital! Nicolle está entre a vida e a morte. Preciso que venha imediatamente.
— Vida e a morte?
— Pega um táxi agora mesmo e venha, garota. — disse, numa voz autoritária, apesar de embargada com o choro rouco que acabou deixando evidenciar.
— E- eu... Estou indo... — foi o que respondi antes de desligar, transtornada, aflita, atordoada. Torcendo para que tudo não passasse de uma brincadeira de mau gosto dos dois. Ou para que tudo fosse apenas um pesadelo do qual eu logo acordaria.
“Por Deus, que isso seja um pesadelo!”
Fim do capítulo
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