Cinco
|Assim como as plantas, você também precisa ser regada;|
Nicolle
Quando cheguei em casa e a vi estirada no chão completamente bêbada, cheirando ao álcool azedo que saía de seus poros, senti meus nervos ganharem uma rigidez incomum. Parecia que eu iria explodir, estava prestes a avançar em cima dela e desferir toda a minha revolta, fúria, decepção... Era um misto de sentimentos deploráveis e pesados que apenas palavras não são capazes de evidenciar.
Tentei me conter enquanto a olhava com um desdém que eu desconhecia. Senti minha garganta travar querendo produzir um choro que eu não estava disposta a revelar.
Caroline acordou e imediatamente me olhou confusa. Dava para notar que ainda estava sob o efeito do álcool, desnorteada. Suas pupilas estavam dispersas e dilatadas, ela tentava me encarar com precisão, mas sem sucesso.
— Meu amor, me desculpa? E-eu... — Tentou falar, visivelmente aflita e confusa.
— Cala a porr* da tua boca, Caroline!! — soltei, numa fúria incomum para mim.
Eu que era um poço de paciência e empatia, só consegui ver o meu lado narrativo e nada mais me interessava naquele momento, pois eu estava esgotada de vê-la se afundar daquela forma e, ainda por cima, estar me fazendo afundar junto sem um pingo de preocupação com o meu emocional. Precisava explodir para limpar os canais respiratórios e inalar algum ar, pois ele estava me faltando.
Suspirei, tentei manter a sobriedade, a fitei com fúria e reprovação e fui até o quarto, onde me deixei chorar, pois já não aguentava mais toda aquela carga pesada e insistente. Eu também era humana! Eu também tinha um emocional... Já evidentemente abalado.
Eu disse que nosso relacionamento estava terminado e ela tentou de todas as formas se desculpar. Percebi a sua aflição e desespero em seus olhos e gestos, mas já era tarde demais, eu estava mesmo esgotada e precisava mudar o rumo das coisas.
Tinha tido um dia horrível no consultório, não conseguia mais focar em meus pacientes, pois minha mente estava sempre preocupada com Caroline. Aquilo estava afetando o meu trabalho e eu não poderia mais permitir. Sobretudo, com ela agindo daquela forma inconsequente, sem medir esforços para se submergir mais e mais naquele abismo depressivo.
“Não é egoísmo priorizar sua saúde mental” – a frase que Bruno me dizia ecoava em minha mente cada vez que eu a ouvia implorando por perdão. “Eu fiz o que pude, meu amor...”
Era dolorido ter que deixá-la, mas eu já havia decidido. Estava muito desapontada, mesmo entendo o quanto é difícil lutar contra uma depressão. Bruno sempre me falava que a separação seria benéfica para ela também, pois quando perdemos algo que amamos, percebemos o seu verdadeiro valor.
Existe a frase clichê “Vencer é ótimo, mas é na derrota que se cresce”. “Talvez Caroline precise sair um pouco de sua zona de conforto. E talvez seja eu a sua zona de conforto” — divaguei enquanto dirigia, com lágrimas desenfreadas pingando dos olhos, após sair e deixá-la recolhendo suas coisas para ir embora de minha casa.
Dirigir era perigoso no estado em que eu estava, mas precisava sair para esfriar a cabeça, então liguei para o Bruno, que me acolheu de prontidão, sem muitos questionamentos. Ele sempre estava disponível quando eu precisava, era meu braço direito.
Fomos a um bar sofisticado, onde pude beber algumas doses de uísque e desabafar com meu amigo.
— Ela estava completamente bêbada deitada no tapete da sala. Cheguei e estava dormindo, com um cheiro horrível de cachaça saindo de seus poros. Porr*! Eu me esforço o tempo todo, Bruno, para tentar fazer com que ela saía desse abismo, se reerga... E o que parece é que ela não está nem aí. Está pouco se fodendo para o que faço ou deixo de fazer, sinto ou deixo de sentir... Te falei sobre meu mau desempenho na clínica, cara! Imagina como me sinto? Eu estou ficando deprimida também...
— Você está visivelmente abalada, Nicolle. Precisa mesmo se afastar dela, ela se tornou uma garota tóxica para você. E para todos ao redor dela...
— Ela não é tóxica, Bruno! Tem depressão. Você entende o quanto isso é difícil de enfrentar.
— Entendo perfeitamente. Mas ela está na depressão profunda, na fase de autoextermínio, onde nada nem ninguém importa muito para ela, pois ela quer apenas se livrar da dor da existência que carrega no peito.
— Ela precisa de ajuda.
— Se ela não aceita ajuda, se seus esforços têm sido inúteis, o que você pretende fazer? Ficar e assistir ela morrer? Porque, me desculpe, Nicolle, mas é isso que vai acontecer.
— Não diz isso assim. Não sei o que fazer... Estou cercada por dilemas; os racionais, os emocionais... Está sendo muito complicado.
— Você está emocionalmente envolvida, então fica difícil de raciocinar com exatidão, né? Afaste-se dela. Para o seu bem. E para o dela, como já te disse.
— Dói deixá-la sozinha. — Meus olhos novamente marejaram. Coloquei os cotovelos sobre a mesa e tentei pensar um pouco — Dói me afastar dela, Bruno. Eu a amo. — Eu a amava e ela não podia ficar sozinha no mundo.
— Mas está cansada...
— Sim. Muito.
— Então, afaste-se, querida. Ela precisa sentir a dor da perda para poder dar valor ao que foi perdido.
Fiquei refletindo enquanto bebia. Bruno o tempo todo tentava me fazer enxergar e aceitar que o término do relacionamento e o afastamento meu de Caroline, era a melhor opção para ambas. Talvez realmente fosse, mas nesse momento eu não estava conseguindo enxergar nada com muita clareza e exatidão. Quando percebi que o álcool estava começando a tomar meu cérebro, decidi voltar para casa.
— Onde você vai? Não vai atrás dela, né? — questionou-me ele, visivelmente preocupado comigo.
— Não. Preciso ir para casa, ficar um pouco sozinha e chorar um pouco. Ou talvez bastante...
— Isso realmente está te fazendo mal, querida. Você nunca foi de demonstrar que chora... Está mesmo abalada.
— Sim, Bruno. Desculpe, preciso ir, nos falamos depois.
— Quer que eu te leve? Você não está muito bem para dirigir, não vou deixar que vá sozinha.
— Bruno, agradeço por sempre me atender, ser sempre tão solícito, mas... Eu preciso ficar um pouco só, tá? Desculpe. Mas é o que realmente preciso agora.
— Tudo bem — ele levantou-se e me abraçou com fraternidade. Eu já estava de pé, então retribuí o abraço. — Quando precisar, é só me chamar. Sempre estarei pra você.
— Eu sei. Muito obrigada por ser tão gentil. Até mais.
— Até.
Me dirigi até meu carro e abri a porta, mas antes de entrar nele, virei-me para Bruno novamente, que ainda me fitava, e falei:
— Bruno?
— Sim?
— Se eu realmente precisar me afastar completamente, cuida dela para mim?
— Como assim? — ele mostrou um riso sarcástico — Da Caroline? Ela jamais aceitaria minha ajuda, essa garota me detesta pelo simples fato de eu existir.
— Por favor... — Voltei e fui até ele, segurei firme suas mãos, aflita — Ela não tem ninguém além de mim. E se ela tentar de novo? Se ela morrer, vou me sentir culpada, Bruno. Por favor? Fica de olho nela, tenta se aproximar...
— Isso parece impossível.
— Tenta. Por mim...
Ele revirou os olhos e ficou pensando por alguns instantes.
— Ok, Nicolle. Ok. Vou tentar. Por você.
— Obrigada. — Beijei seu rosto, coisa que nunca fazia, e ele ruborizou. Eu era o tipo seca, você já deve ter percebido. Menos com ela, Caroline. Mas estava determinada a passar a ser também — Obrigada por tudo. Mesmo.
†
— Ei, Caroline, acorda! Está tarde, querida. Vamos embora. Vem comigo.
Ela parecia ter um pesadelo, suava frio, os músculos do rosto estavam tensionados. A sacudi pelos ombros e ela acordou assustada. Não disse nada, ficou olhando ao redor como se tentasse reconhecer o espaço, depois me encarou, analisando-me.
— É você mesmo?
— Sim, sou eu.
— Você... Não tinha terminado comigo?
— É. Mas fiquei preocupada. Não posso te deixar sozinha agora.
Eu não sabia se era certo o que eu estava fazendo, mas, no caminho para casa, senti que deveria dar meia volta e pegar a estrada até o apartamento dela. Senti que ela precisava de mim e ainda não poderia deixá-la. Ou, apenas, eu ainda não estava preparada para isso. Senti que deveria ir até ela.
— Obrigada, Nicolle — Ela ergueu-se do sofá e enlaçou o meu pescoço, abraçando-me forte — Eu te amo, não me deixa sozinha, por favor...
— Estava tendo um pesadelo?
— Sim. Foi horrível. Eu vi a minha mãe, ela veio me buscar e estava me levando para ver meu pai também, disse que ele estava preparando tudo para me receber. — Eu estremeci com a ideia de perdê-la desse jeito — Mas de repente, tudo escureceu e minha mãe sumiu... Ficou tudo escuro e assustador.
Afastei meu rosto de seu ombro e coloquei meus lábios nos dela, para impedir que continuasse. Nos beijamos forte, com um misto de saudade e aflição.
— Não fala mais sobre isso agora. — falei, segurando seu rosto com as duas mãos —Vamos para casa, Ok? Precisamos descansar.
— Vamos.
— Você precisa de um banho. O cheiro de álcool no seu corpo está deplorável, Caroline.
— Desculpe — pediu e se afastou um pouco, constrangida.
— Aposto que não comeu nada, não é?
— Não. — A barriga roncou no mesmo instante, confirmando.
— Vamos.
Peguei a mochila dela e coloquei uma das alças no meu ombro direito. Nos conduzi para fora daquele apartamento que há meses passou a ser completamente deprimente e desconfortável... Como jamais pensei que seria. Parecia que nem com a luminosidade do dia ele voltaria a ser confortável e receptivo.
Segurei firme em sua mão e saímos; ela beijou a minha antes de entrarmos no elevador.
†
Quando chegamos em casa, deixei sua mochila na cama e a conduzi até o banheiro.
— Vamos tomar banho, depois a gente come, tá?
— Tá bom...
Ela estava calada, acho que estava constrangida, abalada com o pesadelo, com a lembrança dos pais e um turbilhão de coisas mais. Não era fácil ser Caroline naquele momento. Eu não queria estar no lugar dela, sentir o que estava sentindo, mas estava disposta, mais uma vez, a cuidar dela. Era o que meu coração pedia.
— Me perdoa por tudo, amor... Eu... Às vezes eu só não aguento mais — falou enquanto entrávamos na água morna que caía do chuveiro.
— Tudo bem. — respondi, colocando as mãos em seus cabelos molhados e beijando sua testa. — Eu te amo, garota.
— Te amo. — disse e beijou meus lábios.
Mesmo envolvidas por diversas tensões nada agradáveis, o beijo foi tomando uma proporção maior, foi ficando mais intenso, mais quente, mais urgente e delicioso.
Fizemos amor no chuveiro, com uma necessidade gritante, estonteante e fumegante de sanar nossas dores e nos preencher com todo amor que possuíamos. Somente amor. E prazer.
— Promete nunca me abandonar, amor? — pediu ela, num sussurro delicioso, em meu ouvido, enquanto nos amávamos, enquanto eu a tocava e me deliciava em suas curvas.
— Promete nunca mais... — Não consegui dizer e ela me calou com uma mordida no lábio inferior. Soltei um gemido rouco — Promete, Caroline. Promete que vai voltar a ser a garota alegre de antes.
— Prometo, amor. Prometo... — disse e se desmanchou num gozo assim que a penetrei. Apertei uma das nádegas com a minha mão livre e ela se desmontou com os braços apoiados em meus ombros.
— Ótimo, amor. Você é ótima. — falei e beijei sua cabeça que estava pendida em um dos braços.
— Promete, que não vai me deixar? — Percebi que ela chorava.
— Prometo, sim, minha princesa linda. Prometo.
Nos abraçamos forte e depois que nos secamos, fomos para a cozinha comer, pois sua barriga começou a roncar desesperadamente, feito feirante em final de feira.
— Vou preparar macarronada pra gente, o que acha? Com atum.
Ela estava sentada na mesa da cozinha enquanto eu pegava as coisas no armário para preparar a janta.
— Eu te ajudo.
Sorri de satisfação. Fazia tempo que não ouvia isso dela. Caroline adorava cozinhar, mas ultimamente não estava querendo nem comer, quem dirá cozinhar. Fiquei feliz com a disponibilidade dela em ajudar. Era um ótimo sinal de melhora.
— Ótimo — disse e a beijei nos lábios quando ela se levantou. — Você cozinha melhor mesmo.
— Eu sei... — falou e riu — Você é boa em muitas coisas, mas em cozinhar, não, amor. Sinto lhe informar.
Ah, que saudade que eu estava desse lado divertidinho dela! Temia que ele tivesse mesmo morrido; mas não, ele ainda estava ali. E se mostrou para mim... Fiquei imensamente feliz por notá-lo. Pois já fazia meses que não o via.
— É, não sou nada boa na cozinha mesmo. Mas consigo fazer o suficiente para não morrer de fome.
— É. Você é boa em fazer ovo mexido.
— Sou, nisso eu sou. Mas quero ajudar aí. Eu abro a lata de atum, tá?
Rimos juntas
— Tá. Por favor — falou enquanto colocava o macarrão na panela. Fui até ela e a abracei por trás, beijando seu pescoço em seguida. — Coloca uma música? — pediu, naturalmente.
— Claro. Qual?
— Uma não muito deprimente. Mas também nada muito carnavalesco.
— Hum... Acho que sei o que colocar. Já ouviu a última da Pitty?
— Acho que não...
— É legal, vou colocar.
Peguei meu celular e conectei via bluetooth no aparelho de som da cozinha. Pus para tocar ‘Noite Inteira’ da roqueira baiana:
“Gente se junta pra fazer revolução
Gente se junta pra falar besteira
Com quem tu andas?
Quem é que te estende a mão?
Veja que rua é pra vida inteira
Se na bandeira resta algum coração
Quando ele pulsa, ela sangra vermelha
E nas ladeiras, pra subir, tem sempre um não
Ladeira abaixo, é assim a noite inteira.”
— Maior crítica social, hem?! Porr*... Pitty é foda... Cacete!
— Sabia que ia gostar. Letra revolucionária, inspiradora, empoderadora:
“Não peço que concorde, não impeça que eu fale
Entendo que discorde, não espere que eu me cale
Respeite a existência, ou espere resistência.”
— Concordo com tudo. Amei.
Fim do capítulo
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