Três
|A morte forçada não alivia nada, só espalha a dor em outras pessoas;|
Caroline
Olhar para Nicolle daquele jeito, decepcionada comigo, me fez desejar que o suicídio tivesse dado certo. Eu odiava decepcioná-la, repudiava a ideia de fazê-la infeliz. Quando entrei em sua vida prometi que faria dela a mulher mais feliz do mundo. Mas estava quebrando a promessa repetidas vezes e não suportava isso. Sentia-me uma completa inútil.
Comecei a notar o nó na minha garganta se intensificando quando a ideia de perdê-la surgiu. Por mais que eu tentasse, não conseguia me livrar dessa porr* dessa depressão. Se eu já estava exausta da situação, imagine ela, que lida com isso todos os dias no trabalho.
“Ela merece chegar em casa e ter sossego, ela precisa de alguém que alivia sua tensão e não alguém que a deixe ainda mais tensa e preocupada” — pensei, amargurada.
Minha cabeça explodia e eu comecei a ficar com sono de novo por causa dos calmantes que eram injetados em minha veia junto com o soro fisiológico. Não queria dormir, queria olhar para Nicolle, queria ficar com ela quando ela voltasse ao quarto, queria percebê-la comigo. Mesmo que continuasse me tratando de forma seca, precisava dela ao meu lado. Estava determinada a pedir desculpas quantas vezes fosse preciso. Queria muito tentar melhorar.
“Ela merece mais” — isso não saía da minha cabeça e me torturava.
Consegui me manter acordada por uns dez minutos apenas, esperando minha namorada voltar ao quarto para poder olhar em seus olhos e tentar decifrar o que pretendia com “Vou ficar com você até que se recupere”. Estava apreensiva, com medo de encarar seu olhar de decepção. Medo de ela me deixar depois do que fiz. Por mais que eu achasse que era o correto, que ela merecia alguém melhor, essa ideia me deixava completamente assombrada. Eu não queria ficar longe dela.
Enfim, dormi feito pedra antes mesmo de ela voltar, apaguei de um jeito que pareceu que entrei em coma profundo, de tanto que dormi sob o efeito dos medicamentos. Acordei na manhã seguinte, por volta das dez horas, com Nicolle ao meu lado, sentada em uma poltrona, com um livro sobre o colo.
— Bom dia. — disse ela, quando me viu abrir os olhos.
— Bom dia. Que horas são? Nossa, parece que dormi há séculos, estou com o corpo todo dolorido. — falei, piscando os olhos, tentando me acostumar com a luz do sol que entrava no ambiente pela janela entreaberta.
— Parece. — disse e sorriu — Bom, vou avisar para a enfermeira que você acordou. — falou, levantando-se no mesmo instante.
— Espera. Quero ficar sozinha com você um pouco. Estou com saudade.
— Você precisa se alimentar. Eles precisam ver como você está se sentindo.
— Só preciso de você aqui comigo um pouco. Não estou sentindo fome. Estou preocupada contigo.
— Preocupada comigo? Quem tentou se matar foi você... — Ironizou, com um riso que não consigo descrever, pois as palavras me fizeram engolir a saliva em seco e me deram pontadas no coração. Não disse nada, apenas fiquei quieta — Desculpe, não devo dizer essas coisas, mas é que não estou muito bem agora.
— Tudo bem, eu entendo. Você está certa. Sou uma suicida imprestável, que só sabe ferrar tudo e afastar todo mundo. Nunca vali nada para ninguém mesmo, cresci na porr* de um orfanato, nunca ninguém nem quis me adotar... Enfim.
— Você não é imprestável e vale muito para mim, Caroline.
— Não sei mais ser a Caroline alegre de antes, não sei mais como resgatar minha felicidade, como ser uma pessoa agradável. Estou perdida em um labirinto melancólico onde tudo o que vejo são motivos para morrer. Por que uma pessoa em sã consciência iria querer ficar ao meu lado?
— Cala a boca, Caroline! Chega! Você não vê que isso também me afeta? Essas palavras de derrota, todas me atingem como facas afiadas de uma vez só... Eu amo você, garota, então para de se sabotar assim. Para! Por favor... Isso está acabando comigo. — disse ela, incisiva, com os olhos já transbordando as lágrimas compulsivas.
Fiquei quieta digerindo tudo aquilo, toda a cena da minha mulher em prantos por minha causa. Acho que nunca vi aquilo antes... Nunca algo tão doloroso. Acho que a pior coisa da vida, é ver alguém que amamos sofrendo.
— Venha aqui, me abraça, vem — pedi, com a voz falha, a olhando fazendo biquinho de choro.
Ela aproximou-se e curvou-se para abraçar o meu corpo. Eu, mesmo com o acesso venoso dificultando um pouco os movimentos dos meus braços, a abracei e beijei seus cabelos com carinho, repetidas vezes, várias vezes, para que ela se sentisse um pouco melhor. Deixou-se chorar em meu peito, pois estava exausta daquilo tudo, estava cansada de ter que manter uma postura firme para tentar me ajudar a melhorar. E eu entendia. Ela chorou, soluçou... Pois chorar é o ápice da emoção, é a alma dizendo o quanto precisa transbordar. E Nicolle guardava demais as coisas até se deixar transbordar. Então ela realmente estava em seu limite.
— Eu odeio te decepcionar assim, amor. — falei, acariciando seus cabelos.
— Então para. É só parar com isso e melhorar. Eu preciso da Caroline de antes. E você também precisa dela. Tenta fazê-la voltar.
— Ela me deixou sozinha com a depressão. Sinto muito, mas não sei como resgatá-la.
— O pior é que você nem tenta mais. Parece que está decretando o seu fim. Como me pede desculpas e depois faz isso?
— Não estou decretando nada. Você sabe disso, você lida com isso todos os dias, você estudou sobre. Eu não sei o que fazer para parar com isso...
— Eu sei que a depressão suga nossas forças, sei que é difícil lutar contra e que parece ser bem mais fácil morrer para aliviar a dor. Sei que a morte parece um prato suculento de alívio para um depressivo. Eu sei que parece. Mas não é. Não é, entenda. A morte só vai causar dor nos corações de quem ama o suicida. A morte forçada não alivia nada, só espalha a dor em outras pessoas.
— Eu não consigo... — sussurrei, chorando. Pois tentava buscar dentro de mim uma esperança e não encontrava.
Ela se ergueu e segurou meu rosto com as duas mãos. Seus olhos vermelhos pelas lágrimas e provavelmente pelo sono acumulado, me encararam. Eu diria que queria trocar de lugar com ela, mas não a queria no meu lugar, pois era horrível. Apenas gostaria de livrá-la de toda e qualquer dor.
— Presta atenção, Caroline, pois só vou dizer uma vez mais: sempre sobra algo dentro de nós que é capaz de vencer a depressão. Sempre há um pouco de força. De esperança... Pois a esperança e a força de vontade só acabam quando a gente morre. E você não está morta. Enquanto estamos vivos, podemos lutar. Então, por favor, junte toda a força que encontrar aí dentro. — Tocou a área do meu peito, onde o coração pulsava forte — E lute para sair dessa merd* de vida melancólica! Se não por você, por nós. E se não por nós, por mim.
— Ok. — Foi o que consegui responder, sob a mira de seu olhar ameaçador.
— Você é forte, garota. VOCÊ CONSEGUE SER FORTE! Você não está inválida. — disse, nervosa. Era nítido seu nervosismo, sua aflição, seu desespero — Bom, é isso. Vou chamar um enfermeiro e tomar uma água para ver se me acalmo. Meus nervos estão à flor da pele.
Saiu e me deixou ali, quieta, refletindo. Eu tentava dispersar os pensamentos negativos, os que me puxavam para baixo, os que me faziam acreditar que eu era uma criatura fraca. Tentava acreditar em minha namorada, acreditar que eu realmente ainda podia ser forte. Mas estava foda, cara! Era difícil demais lutar contra a sensação de angústia que me puxava para baixo. Mas resolvi tentar, por ela.
†
Me deram alta nesse mesmo dia, na parte da tarde. Nicolle me levou para sua casa. O embuste do Bruno, seu colega de trabalho – que eu tenho quase certeza absoluta que tem uma paixão escondida por ela – nos levou em seu carro. Ele não disse quase nada durante o caminho todo, estava visivelmente incomodado e eu sabia que era por minha causa. Ele tinha rosácea e era perceptível em sua pele quando estava incomodado com algo. Mas eu realmente não me importava com o que ele sentia.
Nicolle permaneceu calada, me abraçava com um dos braços e mexia no celular com uma das mãos. Olhei em seu rosto e ela me olhou de volta, mas sem expressar nada; estava distante. Aquilo me dilacerava. Mas eu entendia, ela tinha todos os motivos do mundo para agir dessa forma comigo.
“Ok, tudo bem, daqui a pouco passa. Espero...”
Quando chegamos, ela me ajudou a descer do carro, eu estava tonta, Bruno aproximou-se e se ofereceu para me carregar.
— Relaxa, cara, não estou inválida. — falei e olhei para Nicolle, que entendeu a referência e me lançou um olhar de reprovação.
— Calma, só estou querendo ajudar — disse, com as mãos demonstrando rendição.
— Não precisa. Valeu pela carona, já ajudou bastante. — agradeci e caminhei sozinha, mesmo que cambaleando.
Nicolle ficou parada me olhando enquanto eu me afastava.
— Que garota petulante! — disse, num tom de voz alto o bastante para que eu ouvisse.
Ignorei e segui, entrando na casa, deixando os dois conversando lá fora. Fui até a geladeira pegar uma água, pois minha boca estava seca, efeito colateral dos antidepressivos que tomava. Em seguida fui me sentar no sofá, recostando a cabeça um tanto dolorida no estofamento. Por um momento tudo rodou... Fiquei tonta e achei que fosse desmaiar. Fiquei quietinha, esperando que ela entrasse.
Comecei a ficar frustrada com a demora e acendi um cigarro. Eu não era o tipo de namorada abusiva, apenas detestava aquele cara que olhava para ela com desejo reprimido no olhar. Ele enganava Nicolle, mas não a mim. Ele meio que a manipulava, ela nunca tomava decisões sem antes consultá-lo. Dizia ser seu braço direto, seu irmão de coração. Enfim... Eu nem de longe tenho a intenção de afastar ela de seus amigos, mas se Bruno decidisse ir para a puta que pariu, eu o apoiaria e o ajudaria com a passagem de ida. Esperava que ele fosse e não voltasse.
Ela entrou e me viu fumando, arregalou os olhos, incrédula.
— Quê? Mal chegou e já está fumando, Caroline?
— Estava entediada.
— Ligasse a TV! Você acabou de voltar do hospital — disse, indignada, tirando o cigarro dos meus dedos e o apagando no cinzeiro que estava na mesinha de centro.
— Foi mal. Só fiquei cheia de tédio já que ficou lá fora dando trela para aquele seu amiguinho apaixonado.
— Vai começar a implicar com o Bruno de novo? Ele passou a noite no hospital comigo, nos deu todo o auxílio, fez você ser atendida pela melhor equipe médica e ainda perdeu suas primeiras consultas do dia para nos trazer em casa.
— Muita bondade da parte dele, nossa! Vou escrever uma carta agradecendo. Ele fez tudo isso por você, não por mim.
— Não seja mal agradecida, Caroline!
— Você não vê que é jogada dele? Tudo que ele faz para te agradar é porque tem interesse em você? Ele quer teu corpo, meu amor... Ele quer te tirar de mim.
— Não. Ele é como meu irmão, você que vive com paranoia e morre de ciúmes sem fundamentos. NÃO TEM FUNDAMENTO ALGUM! Coloca logo isso na tua cabeça.
— Uhum... Ok. Não quero discutir. Foda-se esse cara. Foda-se a porr* toda!
— Já começou, então, foda-se mesmo.
Ela suspirou, me fuzilou com os olhos enquanto passava as mãos nos cabelos soltos e em seguida foi até a cozinha. Ficou lá por algum tempo. Me sentei novamente no sofá, eu estava sem forças para permanecer muito tempo de pé. Liguei a TV e ela voltou com um copo na mão.
— Toma isso, você precisa comer. — Me ofereceu uma vitamina e eu peguei, pois realmente estava faminta. Tomei tudo quase sem respirar. Sentou-se ao meu lado e ficou quieta, reflexiva.
— Obrigada, estava uma delícia. Estava precisando. — falei, limpei a boca com o guardanapo que havia me dado e depois lhe dei um beijo no rosto. Ela sorriu forçadamente, sem me olhar.
— Em que está pensando?
— Em tudo. Preocupada com você. Medo de que tente isso outra vez. Desculpe, eu havia planejado não falar sobre agora, mas não estou conseguindo esconder minha preocupação e meu medo.
— Amor, me desculpa? Prometo tentar ser forte e lutar contra. Quero me reerguer. Prometo tentar. Por você.
— Você disse isso da última vez.
— Você sabe que não é fácil.
— Sei... Sei, sim. Mas também não é impossível.
— Por favor, não fica assim distante de mim. — Pedi, segurando sua mão — Prometo tentar melhorar. Eu só tenho você. Eu te amo — falei, beijando seu rosto repetidas vezes. Beijei suas pálpebras e senti o gosto salgado da lágrima que escapou. — Me dê mais uma chance?
— Ok. Mas se tentar de novo, eu te mato e te mando pro inferno. Aí você vai querer voltar correndo pros meus braços e eu não vou te receber, Ok? Estarei com outra — falou e sorriu forçadamente de novo.
— Não vou pagar pra ver.
— Ótimo.
Ela deitou-se no sofá. Estava visivelmente exausta, com olheiras, coisa que não era habitual aparecer em seu rosto.
— Vamos para cama, você precisa dormir. Não dormiu a noite toda.
— Não consegui mesmo. Vamos.
Fomos nos deitar na cama e eu fiquei fazendo carinho em seus cabelos, até ela adormecer. Dormiu rápido e profundamente. Fiquei admirando seu rosto lindo enquanto dormia. Ela era meu anjo na terra. Era a mulher mais linda e incrível que já conheci.
Beijei seus lábios de leve e depois encarei meus pulsos enfaixados, pensando na besteira que eu havia feito.
“Agora vou ter que carregar essas porr*s dessas cicatrizes pro resto da vida.” — pensei e adormeci logo em seguida, abraçando minha namorada e aspirando seu cheiro delicioso, que me acalmava.
†
Uma semana se passou e tudo estava indo bem, meu humor parecia melhorar. Nicolle foi trabalhar no dia seguinte em que voltei do hospital e eu fiquei em sua casa, ela não me deixou voltar ao meu apartamento, temia que eu voltasse a ficar deprimida. Foi buscar minhas coisas e me trouxe quando voltou do trabalho.
Fazia de tudo para me agradar e eu para lhe agradar. Fizemos amor três dias depois da minha alta e eu realmente me determinei a ficar boa. Até que... Na sexta-feira, me bateu a melancolia novamente. Ela foi trabalhar cedo e eu fiquei em casa. A depressão parecia não querer me largar, era insistente, teimosa... Fiquei deitada no sofá quase o dia inteiro até que decidi beber um pouco para ver se dava uma animada.
Fui tomando uísque, misturei com o resto de vodca que achei no bar da casa enquanto olhava umas fotos antigas nossas.
“Sempre foi tão linda e amorosa...”— E o pensamento que sempre me recorria: “Ela merece mais.”
Fiquei recordando momentos do passado. Peguei a foto dos meus pais que carregava na carteira e fiquei chorando enquanto me embriagava. Por mais que eu tentasse, não conseguia mandar a desgraçada da angustia para o inferno. Ela não me deixava em paz e eu achei que o álcool poderia aliviar a dor que sentia naquele momento. A dor da vida que parecia vazia. Sem esperanças. Mas o álcool só fez piorar tudo.
“porr* de bebida fraca do caralh*.” — resmunguei.
Bebi até não poder mais. Acordei estirada no tapete da sala com Nicolle sentada no sofá ao meu lado, encarando-me com os olhos vermelhos de choro e a decepção estampando seu rosto. Sua face estava avermelhada, ela parecia estar prestes a explodir comigo. Fiquei olhando... esperando que explodisse. Pois eu tinha certeza que isso aconteceria. E eu, em vez de ficar quieta, perguntei, induzida pela falta de noção que o álcool proporcionava:
— Você... Não vai dizer nada?
Fim do capítulo
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