Dois
|Há sempre uma luz no fim do túnel;|
Nicolle
Quando acordei para ir ao banheiro e não a encontrei na cama, levei um susto. Senti uma pontada no peito e me levantei imediatamente, pois a sensação foi como um sinal de que algo estava errado. Bem errado. Fui ao banheiro para ver se a encontrava, mas ela não estava. Saí para procurá-la pela casa, mas nem sinal dela. Meu coração começou a acelerar, aflito. Comecei a sentir uma coisa ruim, uma angustia repentina, que me fez estremecer da cabeça ao pés. Fui até a varanda para ver a encontrava, fumando ou apenas tomando ar, mas também, não estava.
Lidar com Caroline daquele jeito estava acabando comigo. Eu vivia preocupada, era sendo difícil ajudá-la, ela não aceitava muito bem a minha ajuda e também não fazia quase nada para se ajudar. Sei, como profissional da área saúde mental, o quanto é difícil lutar contra a depressão, mas sei também que por mais difícil que seja, precisamos tentar e aceitar toda ajuda possível. Porém, eu não a via tentando muito, não mais. E era isso que me dilacerava.
Liguei para ela e nada de ela atender. A ligação chamou, incessantemente, até cair na caixa postal. Mandei mensagens e ela não me respondia. Vi que meu escritório tinha sido vasculhado e percebi imediatamente o que ela pretendia fazer. Saí do escritório vestindo apenas um roupão, peguei meu carro e fui voando até seu apartamento, ultrapassando todos os sinais vermelhos possíveis, para que não chegasse tarde demais.
Eu amo Caroline de um jeito que nem consigo explicitar, de tão imenso que é. Ela sempre foi uma garota forte e independente; guerreira e destemida. Nunca conheci alguém tão para cima e alto astral quanto ela, que ao mesmo tempo, era tão doce e delicada. Ela sempre fora tão carinhosa comigo... Por isso me conquistou de um jeito único, como nenhuma outra pessoa havia conseguido.
Não sei o que causou toda essa depressão em minha namorada, eu tentava descobrir, mas não conseguia. Não havia um motivo específico, ela não cultivava tristeza, não era de se lamentar, sempre viveu bem apesar de não ter família. Sempre mostrou-se bem resolvida quanto ao fato de ser órfã. Volta e meia eu entrava no assunto e ela falava com tranquilidade, nunca deixando transparecer que o fato a despedaçava.
— Caroline, meu amor, me responde. Estou indo até sua casa. Estou desesperada. —Tentei novamente, mas nada de ela responder. Minha aflição aumentava a cada segundo que passava. Minhas mãos tremiam.
Comecei a sentir calafrios percorrendo todo o meu dorso. E não eram de frio, eram de nervoso, pois pressentia algo ruim. Algo muito ruim mesmo. Eu temia perdê-la. E imersa nessa correnteza de pensamentos, quase bati em um motoboy que passava por mim, mas o motociclista foi ágil, fez manobra e nos ajudou a sair ilesos.
— AÊ, MALUCA, OLHA POR ONDE ANDA, CARALHO! — Saiu me xingando, mas o ignorei, pois não estava com cabeça para dar importância. Em outra ocasião daria; acharia que estava dirigindo mal e me frustraria, ou apenas o xingaria de volta.
†
Cheguei ao seu prédio e fui falar com o porteiro, perguntei se ela tinha voltado para casa e ele disse que havia subido há pouco mais de uma hora. Subi de elevador e bati na porta, coisa que não costumava fazer já que tinha uma cópia da chave. Chamei, disse que era eu e ela não respondeu, então abri com minha chave e passei apressada pela sala vazia, indo direto para seu quarto.
Uma música tocava num volume razoavelmente alto. Era ‘Because of you’ da Lana Del Rey, reconheci de cara porque era uma das que ela mais escutava. Entrei devagar, apreensiva, com o coração batendo numa intensidade agressiva, pois já sabia o que encontraria. E foi exatamente o que imaginei: encontrei minha namorada deitada e encolhida no chão do banheiro, desfalecida, com os pulsos cortados, com sangue manchando o piso branco como numa cena de um filme de Hitchcock.
Abafei um grito com as duas mãos absolutamente trêmulas.
“Não...”
Joguei-me de joelhos no chão e chequei seus batimentos através do pescoço. Ainda respirava e tinha pulso, então liguei imediatamente para o serviço de emergência. Enquanto não chegavam, tentei reanimá-la, estanquei o sangramento como pude, com pedaços de uma blusa limpa que rasguei. Antes de fazer a atadura verifiquei a profundida dos cortes e vi que não havia tempo suficiente para perder a vida, então ela estava apenas desfalecida, o que me deu um imenso alívio.
“Graças a Deus, você está aqui! Você está aqui, amor.”
Fiquei fazendo massagem cardíaca para evitar que perdesse o pulso. Mas eu estava com medo de perdê-la, muito medo.
Vasculhei o ambiente com os olhos e procurei por vestígios de medicamentos. Não encontrei nada, ela apenas estava cheirando a álcool. Havia uma garrafa de um uísque Irlandês vazia no chão, que com certeza, pegou em minha casa; reconheci a garrafa do Old Parr que meu amigo Bruno me dera de presente de natal.
Logo os emergencistas chegaram e a colocaram na maca, levaram-na para a ambulância e eu a acompanhei, profundamente abalada, amedrontada e preocupada. Eu suava frio, engolia seco... Ela começou a ter uma parada cardiorrespiratória ainda na ambulância e meu desespero aumentou. Como não podia fazer nada, fiquei apenas observando os médicos tentando reanimá-la, fazendo massagens torácicas e respiração boca a boca. Quase entrei em desespero, quase desfaleci ao vê-la naquele estado. Quase morri.
Comecei a sentir que desmaiaria, mas tentei me segurar, mantive-me firme, senão seriam duas pacientes ali e tudo ficaria pior para Caroline. Mantive meus sentidos funcionando, não falei nada, apenas tentava controlar minha respiração e observei enquanto ela era reanimada. Lágrimas caíam desgovernadas pelo meu rosto e eu só fui notá-las tempos depois.
— Respiração e batimentos estabilizados. — disse uma socorrista, suspirando de alívio e me encarando.
— Graças a Deus! — exclamei enquanto uma lágrima escorria quente pelo meu rosto aflito. Eu não era de rezar, mas naquele momento rezei. Não suportava a ideia de perder o amor da minha vida daquele jeito. Eu não saberia lidar. Não gostava nem de imaginar.
Chegamos ao maior hospital da cidade, o Irena Sendler, e Caroline foi imediatamente atendida por uma equipe médica. Estancaram o sangramento e lhe deram pontos nos quatro cortes dos pulsos. Não houve mais paradas de nada. Ela voltou à consciência e foi devidamente medicada com antidepressivos intravenosos. Ficou em observação e eu fiquei no hospital, aguardando autorização para vê-la. Nessas horas a gente entende a falta que família e amigos fazem. Ela não tinha família, não tinha ninguém... Apenas a mim. E eu não sairia de seu lado. Era o que eu repetia para mim mesma enquanto me mantinha sentada na sala de espera, exausta.
Minha família morava no Rio de Janeiro, eu tinha pais e irmãos, mesmo que distante. Já ela, crescera em um orfanato e só saiu quando fez dezoito anos. A única amiga que ainda considerava fora fazer intercâmbio na Inglaterra há cinco meses, deixando-a. Talvez esse tenha sido o gatilho para a depressão. Talvez. Mas ela dizia que não, que o fato não a afetava tanto.
Avisei ao Bruno, meu colega de clínica, um excelente psicólogo e amigo fiel, e ele foi imediatamente até o hospital para me fazer companhia.
Um turbilhão de pensamentos tomou meu consciente e subconsciente. Eu fiquei completamente abalada com quase morte de Caroline e comecei a repensar tudo. Não era a primeira vez que ela tentava, a última vez foi com medicamentos, mas ela apenas vomitou até colocar todos para fora junto com o grotesco suco biliar. Prometeu-me que não faria mais, no entanto... Olha eu aqui outra vez, sentada num corredor hospitalar, esperando por notícias dela.
— Vim o mais rápido que pude. Está um trânsito horrível. Enfim, como ela está?
— Fora de risco. Em observação. Não me deixaram entrar para vê-la ainda.
— E você, como está? — perguntou, abraçando-me forte.
— Péssima. Cansada. Confusa...
— Desgastada, né? Imagino. Já falei que você não merece isso, Nicolle. Poxa! Ela é problemática demais para você. Essa é a segunda vez e pode não ser a última. Vai ficar aguentando isso até quando?
— Ela não é problemática, Bruno. Ela está com problemas. Estar é diferente de ser. Ela não era assim.
— Não era depressiva, mas sempre foi um poço de ciúmes. Agora está nessa há meses. Você já lida com pacientes deprimidos todos os dias, precisa sair da clínica e encontrar alguém saudável, alguém que te alivie a tensão do dia e não alguém que te deixe ainda mais tensa. E Caroline está longe de ser saudável. Enfim... Você já sabe o que penso.
— Sei. Mas estou confusa. Sinto medo, sinto raiva... Não sei o que pensar direito agora. Só quero vê-la bem. Preciso vê-la bem. E além do mais, não é o momento para me dizer essas coisas. — O encarei, quase chorando.
— Verdade, me desculpe. Mas, acho que o melhor é você se afastar dela. Para o bem da sua saúde mental, é melhor você deixá-la.
— Bruno, por favor...
— Desculpe. — Pegou minha mão para acariciar — Me dê um abraço?
Fiquei quieta em seu abraço, ponderando tudo. Doía ouvir aquilo, mas estava achando que Bruno tinha razão. Não é egoísmo priorizar nossa saúde mental. Mas... Ela precisava de mim, ela só tinha a mim e, eu a amava mais que tudo.
— Eu a amo, Bruno. E ela precisa de mim.
— Bom, já sabe o que penso... De qualquer forma, estou aqui para te apoiar.
— Você é um ótimo amigo. Obrigada.
— Eu te amo. Como a uma irmã. Quero te ver feliz, só isso.
Caroline sempre teve ciúme dele, nunca gostou muito de Bruno, implicava, dizendo que ele era a fim de mim, que me olhava com desejo. Mas sempre achei bobagem; Bruno sempre fora meu amigo, estudou comigo na faculdade, sempre me respeitou, sempre soube que eu gosto de garotas.
— Acompanhante de Caroline Oliveira Aguiar?
— Sou eu. — Levantei-me e respondi com o coração quase saindo pela boca, temendo o pior.
— Pode entrar para vê-la. — disse a enfermeira, me tirando um peso da alma aflita.
— Você me espera aqui, Bruno? Qualquer coisa me manda mensagem no celular, estou com ele no bolso.
— Estarei bem aqui. Não vou sair daqui, meu bem. Vai lá.
Entrei no quarto onde ela estava, já acordada. Entrei devagar. Fiquei próxima à maca onde se mantinha deitada. A olhei, mas não consegui dizer nada... Nem eu, nem ela. Apenas me deixei chorar. Coisa que era bem raro acontecer; acho que ela só me viu chorar umas duas vezes. Enfim... Chorei enquanto a olhava apática daquele jeito, com os olhos fundos. Sua pele morena estava quase branca. Ela também me olhava e chorava, ainda sem conseguir dizer absolutamente nada.
— Me desculpa... — sussurrou, por fim, com a voz quase inaudível.
Apenas balancei a cabeça em concordância enquanto as lágrimas escorriam. Segurei sua mão, seus pulsos estavam enfaixados e essa imagem para mim é horrivelmente traumática. Evitei ficar olhando para o local, desviei o olhar para seu pescoço. Queria abraçá-la, mas não consegui.
— Eu... não sei bem o que dizer. Só estou cansada. Mas, obrigada por estar aqui comigo.
Balancei a cabeça em concordância. Respirei fundo até conseguir falar:
— Não fala muito agora, descansa. Vou ficar com você até que se recupere.
Ela me olhou confusa.
— Como assim até que eu me recupere?
— Caroline, você precisa descansar. Estou aqui... — Me limitei a dizer. Eu ofegava, estava chateada e preocupada ainda. A garganta presa em uma espécie de desapontamento, em um nó bastante incômodo.
— Pretende terminar comigo? — Ela se esforçava para falar.
Fiquei quieta novamente e ela também. Apertou minha mão de uma forma suave, suspirou e deixou mais algumas lágrimas caírem.
— Eu te amo, Nicolle. — disse, por fim, com os olhos marejados e a boca contraída.
Eu estava dolorida demais para falar ou pensar racionalmente. Mas tentei:
— Se me ama por que faz isso comigo? Por acaso, em algum momento, você pensou no que eu sentiria se você morresse? Aliás, nem precisa morrer, essas atitudes suas já me deixam desolada e completamente desestabilizada. Eu também só tenho você aqui. Eu te amo, Caroline e por isso jamais faria uma coisa dessas com você. Quem ama considera. Entendo o tamanho da sua angústia apesar de não saber de onde ela surgiu exatamente, mas acho muito egoísmo você querer tirar sua vida quando tem alguém no mundo que te ama tanto... Como eu. Tentar amenizar a própria dor causando dor em alguém que te ama, é um tremendo de um egoísmo, sabia?
— Não sei bem o que dizer, não consigo raciocinar direito agora.
— Claro, está quase dopada de antidepressivos, querida. — falei, rispidamente.
— Me perdoa, Nicolle...
— Ok. — respondi seca. Meus olhos estavam marejados também e minha garganta dolorida. — Preciso sair um pouco para tomar uma água. Não me sinto bem, estou enjoada. Daqui a pouco volto.
Saí e a deixei sozinha no quarto. Queria que ela pensasse a respeito, mas ela não estava em condições de raciocinar nada corretamente naquele momento. Mesmo assim, queria que ela tentasse, queria que se esforçasse. Fui encontrar com Bruno no corredor de espera.
— Como ela está?
— Quase dopada. Diz que está arrependida, mas não sei... — Chorei e fui acolhida em seu abraço novamente — E se ela não parar? E se ela conseguir se matar? Não sei mais o que fazer, Bruno. O que vai ser de mim? Será um trauma horrível.
— Calma! Vamos torcer para que ela fique bem. Mas... Acho que você precisa deixá-la. Ou ela vai destruir seu emocional e sua carreira.
— Não posso deixá-la, Bruno. Não quero.
— Querida, você precisa se priorizar um pouco também, sabia? Ou quer acabar como ela? O que será de vocês duas, hem? Pense, Nicolle. Pense. Às vezes desistir de algo é a decisão mais sensata que podemos tomar.
— Caroline não é algo, é alguém. Uma pessoa. E uma pessoa não deve ser deixada para trás quando precisa de ajuda. — falei, com uma espécie de raiva nos olhos e no tom de voz. — Ninguém deve ser deixado para trás quando está passando por dificuldades. É nosso dever ajudar.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
rhina
Em: 14/08/2020
Olá.
Boa noite.
Como salvar alguém que não quer ser salvo?
Como deixar alguém a quem se ama tanto a ponto de doer?
Como ficar com alguém que nos tira a paz,harmonia,estabilidade física e emocional?
Como ficar com alguém que é seu caos e ao mesmo tempo seu alento?
Rhina
Brescia
Em: 23/03/2020
Oi de novo mocinha.
O que dizer,intenso,forte,mas bem real. Como salvar alguém que não quer ser salvo? muitas amarguras e uma vontade de se fazer mal intensa e permanente, mas o choque e sensação de perder mais alguém,talvez, a traga de volta.
Baci Piccola.
Resposta do autor:
Obrigada, minha linda, por acompanhar e deixar seu comentário <3
[Faça o login para poder comentar]
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook:
[Faça o login para poder comentar]