Capitulo 2 - Beatles
Tempos de falta de comunicação.
Além da dificuldade da prestação dos serviços básicos, eram tempos de precariedade na tecnologia. Centros tecnológicos, torres, backbones, a maior parte foi destruída no decorrer dos cinco anos de conflito. O pouco que restou, juntamente com o que foi reconstruído, oferecia serviços de telecomunicação e internet bastante debilitados e caros. Linhas telefônicas já não existiam mais. Internet e celular custavam o mesmo de quando surgiram, apenas pessoas mais abastadas tinham acesso a estes serviços com qualidade.
***
Sábado chegou a passos lentos. No início daquela tarde Jennifer bateu na porta de Becca.
— E aí vizinha, vai no Oscar hoje à noite? — Jennifer perguntou, entrando no apartamento.
— Tenho planos. E você? Vamos rachar um táxi ou Bob vai passar aqui? — Becca se espojava no sofá, vendo TV.
Becca era uma pequena garota da mesma idade de Jennifer. Haviam se conhecido ainda na infância, nas aulas de música que faziam. Queixo proeminente, cabelos longos e castanhos. Olhos pequenos, também castanhos, com uma luz esverdeada.
— Vou ficar te devendo essa, tenho carona. — Jennifer se atirou numa cadeira próxima ao sofá.
— Alguém que eu conheça?
— Ahan.
— Sério? Alguma frequentadora do pub?
— Não. Quer dizer, ainda não...
— Alguém do porto?
— Não.
— Desembucha logo, Jenny.
— É surpresa. — Jennifer respondeu com um sorriso cínico.
— Para você não querer falar é porque deve ser alguma encrenca ou alguém que eu não vou com a cara.
— Temo que a senhorita esteja equivocada.
— Não vai se meter com garota problema de novo, hein?
— Fique tranquila, é só uma nova amiga que está a fim de conhecer o pub, não há interesses ilícitos de minha parte, nem da dela.
— Sei, olha como estou acreditando em você.
— Não, sério. É só uma nova amiga mesmo, sem segundas intenções.
— Alice vai. Da outra vez ela ficou perguntando por você a noite toda.
Jennifer ficou em silêncio, vendo a TV.
— Ouviu o que eu disse? Alice vai estar lá.
— Ouvi sim. Ainda estou me decidindo se teremos mais algum round. Mas acho que não... Ela está entendendo nossas noites casuais de outra forma.
— Ela está entendendo que vocês estão quase namorando, enquanto você está entendendo que ela é uma amiga com benefícios.
— É... Eu sei. Aí que mora o perigo. Conclusões precipitadas. As pessoas estão muito carentes hoje em dia, não acha?
— Deve ser o pós-guerra.
— Todo mundo culpa a guerra por tudo, até quando chove dois dias seguidos, é culpa da guerra!
Passaram algum tempo vendo TV, Jennifer tentava conter a euforia de rever Anna depois da aventura que haviam passado. Foi uma tarde dividindo olhares entre a TV e o relógio, torcendo para os ponteiros voarem até a noite.
Por volta das dez horas Jennifer já estava pronta, ia a janela de dez em dez minutos e voltava para frente da TV. — Ela não vem... Ela disse aquilo por educação... — Pensava.
Até que uma buzina foi ouvida, correu à janela e viu uma moto preta esportiva parada embaixo do seu prédio, uma pessoa ainda com o capacete olhava para cima.
Desceu os dois andares de escadas e encontrou Anna, já sem o capacete, montada na moto. Deu uma boa olhada e sorriu.
— Você não tinha um cavalo? — Jennifer exclamou, olhando para a moto.
— Noventa cavalos, para ser mais exata. — Falou, entregando um capacete negro a Jennifer.
Jennifer sentiu-se estranhamente bem ao ver Anna, que mantinha um sorriso tímido nos lábios. Parecia ainda mais encantadora de quando se conheceram, estava agora com uma jaqueta de couro preta, e mantinha calça e botas pretas.
— Você sabe onde fica o pub? — Questionou Jennifer, enquanto colocava o capacete.
— Imagino onde seja. A propósito, você fica muito melhor sem aquele sangue todo.
— Obrigada por perceber. — Respondeu já montando na garupa.
Jennifer teve que segurar mais firme com a arrancada forte que Anna deu com a motocicleta.
Adentraram devagar o pub, que tinha uma iluminação baixa e letreiros luminosos coloridos. Haviam quadros e pôsteres de cervejas irlandesas e inglesas nas paredes, uma grande bandeira irlandesa, contrapondo com algumas flâmulas coloridas com a bandeira da Costa Rica. Jennifer procurava com a cabeça por seus colegas, os avistou sentados numa mesa retangular, com um banco acolchoado preso a parede.
Além de Becca, Bob era o outro componente daquela noite de aventura, e haviam quatro outros amigos. Becca levantou-se quando as viu, sorriu balançando a cabeça e cumprimentou Anna. Ela notou que um integrante da mesa não a cumprimentou, ao invés disso, cochichou com o colega. Ela já havia percebido alguns olhares tortos vindos de outras mesas também.
— Veja só, se não é nossa heroína preferida! — Exclamou Bob, quebrando o gelo.
— Estou começando a gostar dessa alcunha. — Anna respondeu timidamente.
Finalmente sentaram, Jennifer a olhou de relance, não imaginara que aquela mulher destemida pudesse ficar tímida diante de uma socialização tão corriqueira. Percebeu então que talvez não fosse tão corriqueira assim para Anna, que talvez estivesse acostumada a enfrentar feras em locais inóspitos, mas não pessoas comuns num pub.
— Vou buscar uns chopes, já volto. — Jennifer dirigiu-se ao balcão do bar, e voltou sorridente com duas canecas nas mãos.
— Esse é o fantástico chope canadense que você mencionou?
— O fantástico é por sua conta e risco. Vamos, experimente! — Falou Jennifer animada.
Deu um longo gole, e olhou séria para caneca.
— Nada mal! — Anna falou, virando-se para ela.
— Costuma ficar melhor depois do sétimo.
— É seu número cabalístico?
— Digamos que seja meu divisor de águas. Na verdade, é quando fico mais extrovertida.
— Mais?
Quando Anna saiu para ir ao lavatório, Becca olhou com os olhos arregalados para Jennifer, com surpresa:
— Fala sério, Jenny!
— Que foi?
— A híbrida eremita??
— Que feio julgar as pessoas, Becca...
— Não estou julgando, só estou surpresa com sua convidada misteriosa, nunca passaria pela minha cabeça.
— Ela foi tão legal com a gente, parece ser uma pessoa interessante. Por que não chamar para tomar um chope?
— Quem sou eu para discordar... Bom, você sabe... Você deveria se manter afastada de híbridos. Principalmente você.
— Mas eu gostei dela.
— Eles não gostam muito de humanos.
— É, deu para ver como ela odeia nós humanos. — Debochou Jennifer.
A convivência entre humanos, Titans e híbridos não era pacífica, havia uma hostilidade velada entre todos. Mas principalmente os híbridos, por ser uma minoria e não pertencerem inteiramente a uma espécie, eram malvistos e evitados.
Anna voltou à mesa, Becca ficou em silêncio.
Aos poucos todos ficaram mais à vontade, a conversa fluía na mesma velocidade dos canecos de chope que vinham à mesa. Anna já esquecia da discriminação que sua subespécie vivenciava, queria apenas consumir a presença de Jennifer, vorazmente.
— Adorei essa decoração, meio britânica, meio costa-riquenha, a mistura não ficou ruim. — Anna prosseguia no papo.
— E você estava com preconceito.
— Não estava com preconceito, só achei esse monte de nacionalidades um pouco confuso. Eu vi um pequeno palco, confesso que estou um pouco receosa sobre que tipo de música é tocada ali.
— Japonesa minimalista.
Anna olhou assustada.
— Não, estou brincando... O melhor do britpop e brit rock!
— Ah bom... Que dias que tem apresentações?
— Se dermos sorte, mais tarde veremos alguma bandinha. Acho que alguma cover dos Beatles.
— Beatles? Quem bom, adoro Beatles. Tive a grande sorte de ir num show deles.
Jennifer apenas riu, achando que era brincadeira. Mas percebeu que Anna não riu, arrematando a possível piada. Deu-se conta que era possível sim que ela tivesse ido ao show, porque os híbridos, assim como os Titans, envelheciam mais devagar. Seu semblante mudou instantaneamente para sério na hora que se deu conta desse detalhe. Anna percebeu o que acontecera.
— Jennifer, quantos anos você acha que tenho? — Perguntou, a encarando, apoiando o queixo na mão. — Não seja educada, fale exatamente o que eu aparento para você.
— Ok, é para ser sincera, não é?
— Por obséquio.
— Trinta... Tipo assim, mais ou menos. Ou uns vinte e nove... Oito. Por aí.
— Cinquenta e nove. Completos em maio.
Jennifer só conseguiu olhar para ela, com um sorriso aberto.
— Eu me exercito... — Completou.
— Caramba... — E continuou rindo. — Então você foi mesmo ao show dos Beatles?
— Em 1966. Meu pai era um fã incondicional, e eu ouvia os discos com ele. Eu tinha só treze anos, mas deu um jeito de me levar com ele. Meu pai foi um visionário: ele falou que não poderíamos perder porque seria a última turnê deles. E foi mesmo.
— Mas com treze anos você aparentava ter quantos?
— Acho que treze. Esse esquema do retardo dos sinais de envelhecimento e tal, só surge na puberdade.
— Cara, isso é incrível... E surreal.
— Está me achando um ser de outro planeta, não está?
— Não, claro que não. Só estou meio estupefata. — Jennifer ainda sorria, surpresa.
— Ok, sua vez de me contar algo que me surpreenda.
— Ah não, vou ter que decepcionar você dessa vez...
— Tá, não precisa me surpreender, basta ser algo interessante, que eu deveria saber.
Jennifer tinha algo que se contasse, com certeza Anna ficaria ainda mais estupefata que ela ficara. Ou ela talvez não acreditasse. Ou saísse correndo. Claro que ela não arriscaria contar.
— Ok, vou falar. Eu consigo encostar minha língua no nariz. — Brincou.
— Ah é? Prove.
— Você vai achar que estou me exibindo.
— Sim, essa é a intenção, não é?
— Tá bom, lá vai.
Anna tentou ficar séria, sem muito sucesso. Jennifer também.
— Não, espera, rindo eu não consigo. Espera, deixa eu fazer cara de séria.
E Jennifer conseguiu então o feito.
— Viu só?
— Vi sim. Incrível. Você poderia ganhar a vida com isso sabia?
A noite voou sem que percebessem a passagem do tempo. Alguns amigos já haviam ido embora, mas Anna e Jennifer continuavam conversando com animação.
— Meninas, estou indo nessa. Jenny, amanhã vai ser na minha ou na sua casa? — Perguntou Becca, se levantando.
— Minha vez. E não esqueça a cerveja.
Depois que Becca saiu, Anna deu um olhar para Jennifer com ar de curiosidade.
— O almoço. Geralmente almoçamos juntas aos domingos.
— Ah sim, claro...
— Às vezes eu tenho que trabalhar domingo, daí ela leva almoço para mim no porto.
— E o que você faz no porto? Se não for indiscrição perguntar...
— Não, tudo bem. Não tenho problemas em contar que faço programas.
Anna ficou em silêncio, olhando incrédula para ela, sem ter a menor ideia do que falar.
— Caramba, você acreditou! — Jennifer explodiu numa risada.
— Você foi bem convincente.
— E você tinha que ver a sua cara...
— Então, o que você realmente faz lá?
— Tecnicamente sou uma despachante aduaneira, mas pode me chamar de resolvedora de problemas portuários.
— Faz intermediações entre quem chega, quem quer comprar, quem quer vender...
— Basicamente isso.
— Parece interessante.
— É um tédio sem tamanho...
— E você gostaria de fazer o quê?
— Sei lá, algo com mais ação, menos repetitivo. E menos burocrático.
— Acho que te entendo.
— Você também gostaria de fazer mais do que facas?
— Eu já faço mais do que facas.
— Sério? Conta aí.
Anna analisou o panorama: já estava tarde, já haviam bebido bastante, e não se sentia segura o suficiente para contar do seu segundo trabalho ali, nem naquele momento.
— Fica para outro dia.
— Ah fala sério, fala aí, prometo que mantenho segredo. Se você fizer programas não vou te julgar, palavra de lobinha.
— Você está no sétimo chope, mocinha, acho que não estou preparada psicologicamente para ver você na próxima fase. — Desconversou.
— Você contou os chopes. Você deve ser virginiana, não é?
— Lembra que falei que fiz aniversário em maio?
— Ah é mesmo. Perdão, minha memória falha depois da meia-noite. Touro?
— Uhum.
— Teimosa feito uma mula?
— Não, sou uma pessoa prática.
— Eu também sou prática. Praticamente não bebo. — Jennifer ria despretensiosamente.
— Ok, acho que você entrou no seu número cabalístico. Quer ir para casa?
— Hum... Acho que quero. Estou recebendo chamados telepáticos da minha cama.
Pagaram a conta e seguiram de moto para o prédio de Jennifer. Chegando lá, Jennifer desceu da moto, tirou com dificuldade o capacete, devolvendo-o.
— Você vai ficar bem? — Anna perguntou ainda na moto, tirando também o capacete.
— Ótima. Mas acho que amanhã Becca vai almoçar macarrão instantâneo...
— Pobre coitada... Hey, você por acaso tem celular?
— Tenho! Mas não funciona... Tenho um pombo correio, serve?
— É tecnologia demais para minha cabeça, sinto muito.
Ficaram em silêncio por alguns segundos, fixaram um olhar, meio afoito.
— Foi legal você ter vindo... — Jennifer falou, com uma voz mansa.
— Também gostei da nossa noite... E obrigada pelo convite. — Anna recolocou seu capacete.
— De nada. Disponha...
Jennifer titubeou, e voltou a se aproximar da moto.
— Anna?
— Sim?
— Não suma, não.
— Não sumirei.
— Promete?
— Prometo.
— Tá bom.
— Sábado que vem vai ser minha vez de te levar a algum lugar, o que acha? — Disse Anna.
— Perfeito.
Anna olhou ainda por alguns segundos o sorriso franco que Jennifer sustentava.
— Boa noite, Jennifer, fique bem.
Fim do capítulo
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