Capitulo 3 - Quintal verde
Jennifer acordou com uma almofada atirada em sua direção, havia adormecido no sofá da sala, um sofá vermelho, desgastado pelo uso.
— Almoço que é bom nada, né?
Becca falou sentando-se no sofá menor, marrom com remendos negros, ligando a TV. Jennifer levantou e sentou-se vagarosamente, sonolenta, coçando os olhos.
— Ainda é cedo, vou preparar alguma coisa. — Resmungou.
— Cedo para a janta talvez, já é quase uma da tarde. Por que não dormiu na cama? Não chegou até lá?
— Sei lá, acho que fui ver TV e capotei. — Terminou a frase se espreguiçando no sofá.
— Não convidou a senhorita misteriosa para subir para um café ontem?
— O quê? Ah não, claro que não. Sério, ela não é uma dessas garotas que trago aqui, já falei isso, ela é só uma amiga.
— Então tá... — Becca levantou os ombros.
— Diga, o que você tá a fim de comer hoje? — Jennifer falou, saindo do sofá.
— Carboidratos. Estou almoçando queijo quente há quatro dias.
— Espaguete de novo então.
O apartamento onde Jennifer morava era pequeno e arejado, com janelas grandes. Além do seu quarto, havia uma sala com sofás e TV, conjugada com a cozinha. Era um pouco bagunçado, os móveis não combinavam entre si. Nas paredes havia pendurado alguns pôsteres de filmes da década de sessenta e setenta, emoldurados.
— Becca, você não vai acreditar em quantos anos Anna tem! — Jennifer começava a preparar o almoço.
— Não sei, uns trinta? Peraí, ela tem aquele lance da idade que os Titans têm?
— Vai fazer sessenta no ano que vem.
— Esse povo é tão bizarro, né? Parece que estão trapaceando o relógio biológico.
— Eu acho legal. Você não gostaria de aparentar metade da sua idade?
— Acho confuso demais. Imagine só, ela deve ter assistido alguns destes filmes que estão na sua parede, quando lançaram!
— É... Talvez. Às vezes também acho confuso.
— Você vai vê-la de novo?
— O quê?
— Perguntei se você vai vê-la de novo.
— Provavelmente. — Jennifer respondeu, mas a resposta que passou por sua cabeça foi ‘o quanto antes’.
— Se Alice tivesse ido ontem, ficaria uma fera.
— Que besteira, por quê?
— Você e Anna conversaram a noite toda.
— No dia que alguma mulher disser o que eu posso ou não posso fazer, será a quarta guerra. Acredite. Quer café?
— Achei que você estivesse fazendo o almoço.
Jennifer virou-se na direção dela com uma xícara na mão e sorriu.
***
Uma longa semana arrastou-se como uma tartaruga contemplativa. No porto as coisas estavam tranquilas. Pouco trabalho, poucos navios aportando.
Tirou a quarta-feira para ajudar seus vizinhos que tiveram que desocupar o prédio recém demolido pela milícia Titan, episódio este que quase custou sua vida. Jennifer estava frustrada por não ter conseguido evitar que as máquinas derrubassem suas casas, podia ter recrutado outras pessoas para engrossar o coro, ou então ter feito barricadas. Mas o sentimento era dúbio quando pensava que toda aquela aventura, trem, gárgulas, Anna... Nada teria acontecido se não houvesse daquela demolição.
No final da sexta-feira, saiu para correr, como fazia quase diariamente. Ia até onde um dia já havia sido sua casa, a três quilômetros do seu lar atual. Naquela sexta correu no final da tarde, com o sol baixando atrás de si. Mas mudou o percurso, pegou a rodovia e seguiu o mesmo caminho que o ônibus amarelo havia tomado na semana passada.
Enquanto corria, tentava recordar-se do que havia acontecido dentro do veículo. — Meu Deus, foi tão rápido... — Passou pelo ponto onde havia tomado a decisão de reagir e abordar o segurança e o motorista. Chegou ao local onde o ônibus havia saído da estrada. Parou e pôs se a observar, ofegante. Ainda eram visíveis no asfalto duas marcas escuras de pneus. E ela sabia para onde essas marcas apontavam.
Levou a mão à testa, protegendo os olhos do sol que se esgueirava. Permaneceu olhando para o horizonte por alguns instantes. Percebeu que a casa de Anna não podia ser avistada dali. Teve um impulso momentâneo de ir até lá, mas desistiu, não parecia uma boa ideia aparecer sem avisar. Virou-se, voltou a correr de volta para casa. Pensou em como não havia sido muito inteligente quando teve o ímpeto de ir até a casa dela pelo matagal, e não pela estrada que dava acesso, riu de si mesma.
Jennifer acordou cedo no sábado, contra sua vontade. Tinha um compromisso logo no início da manhã no porto, com um novo cliente. Passou a tarde limpando o apartamento, preguiçosamente. No início da noite Becca apareceu, a convidando para ir num bar em outra cidade.
— Hoje não vai dar, mas semana que vem pode contar comigo.
— Não tá a fim de sair hoje?
Jennifer demorou um pouco para responder, terminava de arrumar a cozinha.
— Não... É que já tenho um compromisso.
— Ah é? Casual, romântico ou chato? — Becca sorriu.
Jennifer não respondeu de imediato, quando se virou para responder, Becca interrompeu, como se tivesse acabado de ter uma ideia.
— Não vai me dizer... — Sorriu surpresa. — Você vai sair com a híbrida de novo??
— Não é legal você ficar a chamando assim, ela tem nome.
— Tá bom... É que ela parece tão... Entediante, com cara de poucos amigos.
— Quem sabe você mude de opinião. Gostaria de inseri-la no nosso círculo de amizades.
— Mas ela é uma híbrida, Jenny, não vai ser bem vista, você sabe disso...
— Bom, eu não tenho preconceito com ninguém.
— Você que sabe... Vou lá me arrumar para a noitada. Hoje promete, disseram que vai ter tequileiro. Ou tequileira, como você preferir. — Terminou com um sorriso malicioso.
Jennifer se aprontou logo em seguida, no melhor estilo jeans e camiseta. Ficou alguns minutos frente ao espelho decidindo se prendia ou soltava o cabelo. Resolveu prender. — É melhor na hora de pôr o capacete. — Pensava.
Ao ouvir a buzina, nem foi verificar se realmente era Anna, vestiu rapidamente uma jaqueta de couro marrom e desceu as escadas.
— Boa noite, garota. — Anna a cumprimentou graciosamente, entregando seu capacete.
— E então, qual nosso destino?
— Um lugar com uma boa vista.
Seguiram pelo lado oposto da rodovia, até o que aparentava ser um pequeno povoado junto ao mar. A guerra parecia não ter chegado até lá, as casas eram pequenas e simples, mas harmônicas, charmosas, intocadas. Pararam na frente de um bar rústico, com redes de pesca penduradas em toras de madeira. Desceram da moto, mas não retiraram os capacetes, logo perceberam que estava fechado.
— Que pena, parecia um bom bar, podemos voltar outro dia... — Jennifer amenizava o desapontamento de Anna.
— Suba, vou te levar em outro lugar que também tem uma bela vista, e com certeza estará aberto. — Anna gesticulou com a cabeça para que montasse na moto.
Fizeram o caminho de volta e então Jennifer se deu conta de onde estavam indo. Entraram no caminho que levava à casa de Anna.
— Sua casa. Melhor vista impossível! — Jennifer exclamou ao pararem a moto, na frente à construção sombria.
— É o melhor que posso proporcionar hoje. Só tenho cerveja americana, você bebe?
— A nacionalidade para mim é o de menos. — Brincou.
Anna percebeu a dificuldade que Jennifer estava tendo para soltar a tira do capacete e foi ajudá-la. Sem intenção, tocou de leve na mão dela.
— Seus dedos estão arranhados. — Notou Jennifer.
— Sim. Trabalho braçal.
— Qual, aquele trabalho ultrassecreto?
Anna não respondeu, e finalmente tirou o capacete de Jennifer.
— Venha, me ajude aqui na cozinha.
Do lado da casa havia uma pequena escada de madeira que dava acesso à praia. Ao lado da escada, um banco antigo de ferro curvado. Sentaram-se nele, colocaram algumas latas de cerveja no chão, sob o banco.
— Eu acordaria de bem com a vida todos os dias se tivesse esta vista do meu quarto.
— Você acaba se acostumando.
— Mas nunca deixa de apreciar, não é mesmo?
— Impossível ignorar essa imensidão verde no meu quintal.
— No verão deve ser uma delícia fazer festas aqui.
— Deve. Mas não que aconteça...
Continuavam olhando nostalgicamente para o mar, bebendo suas cervejas. A noite não estava fria, apenas uma leve brisa vinha de vez em quando do mar, que estava calmo. Anna olhou de lado, com um ar pesaroso.
— Sinto pelo passeio frustrado de hoje... Estive naquele bar há pouco tempo, tinha certeza que estaria aberto.
— Não duvido que seja um bar interessante, mas vou ser sincera com você: não tenho do que reclamar. Tenho ótima cerveja, paisagem e companhia. O que mais preciso?
Ouvir isso deixou Anna mais à vontade. Permitiu-se olhar sem pressa para Jennifer, sentada ao seu lado, entretida pelas ondulações do mar.
— Como está seu ombro? — A questionou.
— Furado. Mas já melhor do que semana passada. E os seus ombros?
— Cicatrizando. Foi ao médico?
— Não. Não precisei. Você fez um bom trabalho. — Jennifer refletiu.
— Você teve sorte, poderia ter sido mais para baixo, ou poderia ter piorado bastante naquela noite. E nem teríamos para onde te levar.
— Tive sorte de ter chegado viva em casa. Na verdade, todos nós tivemos sorte em invadir a casa da última pessoa solícita da face da terra. Claro que não pensei isso quando você me deu um mata leão e trancou minha respiração. Mas eu entendo... Deveríamos ter tocado a campainha primeiro.
Ficaram em silêncio por um instante.
— Eu estava na oficina, que fica anexa a casa. Criei uma passagem dela para a cozinha. Quando ouvi um barulho fui averiguar. Vi você entrando, na frente de todos, me posicionei atrás da pilastra e fiquei esperando você passar por mim.
— E aí deu o bote.
— Certeiro. Não foi?
— Certeiro. Não sei como os outros não saíram correndo em pânico. Acho que congelaram de medo.
— Eles são seus amigos há muito tempo?
— Mais ou menos. São meus vizinhos. Apenas Becca é amiga de longa data.
— Ela parece gostar bastante de você.
— Espero que sim, é a minha melhor amiga. — Rebateu Jennifer.
Anna pegou mais duas latas de cerveja e abriu, entregando uma para Jennifer.
— E seus pais, onde estão agora? — Indagou Anna.
— Já se foram. Durante a guerra.
— Sinto muito... Desculpe falar disso.
— Não, não se desculpe, já não tenho problemas com esse assunto. Aconteceu com tanta gente, não é?
— Sua casa foi bombardeada?
— Foi incendiada na verdade. Mas isso foi tempos depois. Eles estavam na universidade trabalhando, jogaram um bom número de bombas. Bom, você já deve ter visto como ficou lá, não sobrou muita coisa.
— Você perdeu sua mãe e seu pai no mesmo dia?
— Sim...
— Nossa... Sinto mesmo por você... Quantos anos você tinha? — Anna lançou um olhar doloroso para Jennifer.
— Quase quinze.
— E o que você fez? Não foi morar com algum parente? Tem irmãos?
— Não... Me virei. Não tenho parentes na cidade.
— Se virou com apenas quinze anos? Como conseguiu?
— Já ouviu falar que a necessidade é a mãe da invenção? — Lançou um sorriso torto para Anna.
Permaneceram caladas por alguns minutos, ambas observavam o mar serenamente.
— E você tem irmãos? — Perguntou Jennifer.
— Tenho um irmão, Andrew, o caçula.
— Mas não mora com você.
— Não. Eu não sei o paradeiro dele.
— Sumiu na guerra?
— Foi. Mas sumiu por vontade própria. Hoje em dia não faço ideia de onde ele esteja, nem se está vivo...
— Ele nunca mandou notícias?
— No começo sim, mandava cartas dos lugares onde estava. Sempre um lugar diferente. Mas não recebo nada há mais de cinco anos.
— Talvez ele tenha desistido de enviar notícias por não ter notícias de você, já que ele estava sempre em lugares diferentes.
— Essa é a teoria que eu quero acreditar. Mas não é a mais provável...
— Quem sabe um dia ele apareça na sua porta. Ou então você descubra onde ele enfim resolveu morar. Talvez esteja casado, com filhos... Já pensou? Você titia.
Anna apenas sorriu de leve. Continuaram bebendo noite adentro, enquanto a conversa deslizava de forma suave, leve.
— Acho que ainda não encontrei minha vocação. — Desabafava Jennifer. — Quando era pequena achava que seria cantora ou tocaria em alguma banda. Teve um tempo que eu queria ser atriz, mas ao mesmo tempo queria ser detetive.
— Uma atriz detetive talvez?
— Seria uma combinação interessante não acha?
— Combinar profissões é sempre interessante.
— Como você faz...
— Sim, como faço. Mas não é uma profissão, é apenas uma prestação aleatória de serviço à sociedade.
— Seu segundo ofício?
— Sim. — Anna hesitou um pouco antes de continuar no assunto. — É algo esporádico.
— Mas pelo jeito que você fala, deve ser mais divertido que seu primeiro ofício, na forja.
— É mais perigoso.
— Quase tudo que é divertido é perigoso, não é?
— Quase tudo... São serviços arriscados, é isso que eu faço.
— De qual tipo? Limpar vidraças de arranha-céus?
— Não. Mas isso seria divertido também. — Rebateu Anna.
— Você é matadora de aluguel?
Anna riu.
— Agora você está um pouco mais quente.
— Estamos brincando de quente ou frio? Adoro!
Anna olhou fixamente para Jennifer, e continuou.
— Eu tenho um amigo que me repassa algumas missões. Geralmente serviços noturnos. Como pode imaginar, não são coisas lícitas.
— Está começando a ficar interessante. Que tipo de coisas?
Anna se despojou no banco, se inclinado para trás, antes de continuar.
— Às vezes é apenas alguma conversa mais séria com alguém, para obter informações para terceiros. Às vezes preciso pegar de volta alguma coisa que foi furtada. Ou então sabotar alguma ação criminosa, dar alguns sustos, evitar alguma coisa.
— E às vezes as coisas esquentam.
— Sim. Alguns casos mais complicados envolvem resgate de algum refém, ou silenciar alguém...
— Você mata essas pessoas??
— Não. Eu evito esse tipo de serviço.
— Mas já matou, suponho.
— Não é meu objetivo.
— Nossa, deve ser uma adrenalina e tanto, não?
— É perigoso, cansativo, e pode ficar violento. Uma boa aventura às vezes. Mas nem sempre sai conforme o planejado.
— Me leva junto qualquer dia desses?
— Claro que não. — Respondeu rispidamente.
— Quando aparecer alguma missão mais leve, me leva vai. Prometo não atrapalhar. Fico na sua retaguarda.
— Jennifer, é realmente perigoso, não é diversão. — Anna olhava séria.
— Eu sei que não, eu vou e ajudo você, te dou cobertura, sei lá, alguma coisa do tipo. Me leva vai.
— Não.
— Tá, não precisa decidir agora, pense sobre o assunto.
— Não tenho o que pensar, sério.
— Já matou outras gárgulas? — Ignorou Jennifer.
— Já... Alguns.
— E Titans?
— Somente Titans. Eu só aceito missões contra Titans que pertencem a milícias ou que prestam algum serviço a eles.
— Por quê?
— É minha condição. — Desconversou.
— Nunca fez nada contra humanos? Nem híbridos?
— Não. Milícias de Titans são a escória da sociedade, não acha?
— De certa forma... São sim. Eu gostaria de dar uma boa surra naqueles Titans que derrubaram o prédio dos meus amigos.
— Quem sabe um dia eles caiam na minha lista...
— Daí você TEM que me levar ok?
— Prometo pensar no assunto.
Jennifer deu um sorrisinho vitorioso e espojou no banco, bocejando.
— Você parece com sono. — Anna respondeu, alguns minutos depois.
— Precisei acordar cedo hoje, um saco.
— Levo você em casa. Quer ir?
— Por mim ficaria aqui até o sol nascer, mas o sono está pegando.
— Vamos, vou lá pegar os capacetes.
Fim do capítulo
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Rita Santos
Em: 05/12/2023
Tipo assim:
De água na bocca.
Não deu vontade de ercrever mais um capitulo e finalizar a história?
Poxa
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Cristiane Schwinden Em: 05/01/2024 Autora da história
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