Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 45 

Alicia deu um passo para fora do quarto e olhou o corredor, que parecia ainda mais longo que antes. Seu coração batia acelerado e seu estômago estava contraído. Mantenha a calma, pensou consigo, antes de começar a caminhar em direção ao ponto de partida. 

Sandra a seguia poucos passos atrás.  

-- Ainda estou sem entender o que aconteceu com a porta. Ela estava trancada, tenho certeza disso. 

Despertada pelo tom apavorado de Sandra, Alicia estacou. Não estava disposta a falar sobre fatos que envolveram o Espirito da Thais, naquele momento. Então, limitou-se a um breve comentário. 

-- Quando fazemos o bem, o Universo conspira a nosso favor -- se contasse para a moça que o Espirito da Thais havia fechado a porta para impedir que ela fosse embora sem ver as marcas do mau trato na menina, com certeza Sandra nunca mais dormiria com a luz apagada. 

Quando alcançou a janela, Alicia olhou para fora e foi cega pela luz do refletor que iluminava a lateral da casa. Antes de pular para fora ela olhou para Sandra. A moça sorriu antes de falar: 

-- Denuncie, demonstre coragem e força. Se ele perceber que você está com medo, ele a esmagará. É isso o que homens como Jean fazem. Eles farejam a fraqueza de sua presa e se preparam para o bote. 

-- Eu não estou com medo -- era mentira. Ela estava com medo. Medo da responsabilidade e das consequências caso fracassasse. 

-- Você vai se sair bem. Não esqueça que o futuro da Milena depende de você. 

-- E você? -- Alicia perguntou, buscando os olhos dela. 

-- Eu vou tentar apagar todas as pistas que deixamos e vazar daqui o mais rápido possível. 

Alicia abriu um sorriso encantador para a sua nova amiga. 

-- Obrigada, você é mais um dos anjos que Deus colocou em meu caminho para me ajudar em momentos difíceis. 

Assim que teve certeza de que Alicia havia cruzado o jardim e saído da propriedade em segurança, Sandra retornou ao quarto de Milena. Ela trancou a porta e devolveu a chave ao seu devido lugar. Quando Jean sentisse a falta do celular da Thais, ela seria a principal suspeita, mas não confessaria nem sob tortura, negaria até a morte, caso fosse preciso. 

Antecipando o iminente encontro com Jean, Sandra saiu a sua procura pelas dependências da casa. Na sala, encontrou o homem em choque, pele e olhos pálidos. 

-- Seu Jean, o que aconteceu? -- ela perguntou, confusa e curiosa -- O senhor está bem? 

Houve alguns segundos para que Jean saísse daquele estado letárgico. 

-- Você não a viu? -- ele olhava de um lado para o outro extremamente nervoso. Era pavor o que havia em seus olhos. 

-- Viu o que? -- ela perguntou, varrendo seu olhar ao redor da sala. 

Ainda apavorado, Jean caminhou pela sala e parou diante da moça, ele suspirou profundamente e passou a mão pelos cabelos desgrenhados. Sandra viu mais do que aflição e pasmo em suas faces pálidas: viu desespero. 

Girando o corpo, Sandra voltou a se dirigir ao patrão e procurou acalmá-lo. 

-- Não tem ninguém aqui, você deve ter se enganado. 

-- A Thais estava aqui. Eu a vi claramente, era ela, não tenho dúvida. 

Ele estava perturbado e, Sandra deu graças por ele estar assim. Pelo menos, naquele momento manteria a sua atenção no fantasma da ex mulher. Mentalmente, ela resmungou um bem-feito, se virou e foi pegar a bolsa para ir embora. Jean era insuportável, insensível e imoral. Mas não era louco. Algo de muito sinistro aconteceu naquela casa. 

O celular tocou com insistência na sala vazia, até que Fernanda veio do quarto, precipitando-se porta adentro para atender. Numa voz aflita e alta, ela atendeu. 

-- Amor! -- Fernanda sentiu uma imensa onda de alívio -- O que aconteceu? Por que a demora? 

Resumindo o máximo que pode, Alicia contou o que tinha acontecido na casa do pai de Milena.  

-- A polícia está perdendo uma ótima detetive -- Fernanda gargalhou, extravasando toda a tensão acumulada -- Já pensou em seguir carreira? 

-- Você está brincando porque não passou pelo aperto que eu passei. Quase me borrei de medo -- Alicia riu, mas logo ficou séria e continuou -- Vou precisar de você, amor. Tenho que tirar a Milena desse monstro -- a voz dela diminuiu para um sussurro. Era como se ela sequer suportasse tocar no assunto -- Custe o que custar. 

-- Claro amor, juntas encontraremos uma saída. Quando a violência acontece nas relações familiares, colocando a criança ou o adolescente em situação de risco no espaço que deveria protegê-lo e garantir sua integridade física e emocional, medidas protetivas judiciais devem ser colocadas em prática para assegurar que os direitos violados sejam resgatados -- tranquilizou-a Fernanda -- E amor, você agiu direitinho. Estou orgulhosa de você. 

A psicóloga desligou o celular com um sorriso bobo no rosto. Amava tanto a sua loirinha, faria de tudo para vê-la feliz. 

-- "Estou orgulhosa de você" -- Cléo imitou Fernanda, com uma voz exageradamente melosa. 

Fernanda se deitou no sofá com uma almofada sobre o peito. 

-- Seu deboche é pura inveja do nosso amor. 

-- Você tem razão -- concordou com um suspiro pesado -- Se eu não andasse de ônibus nos horários de pico, a minha vida sexual seria zero. 

-- Que horror! 

-- É, my love, a vida é dura e não usa vaselina. Quando eu nasci a vida olhou pra mim e disse: Você que lute!  

-- Você nunca mais se encontrou com aquele ex gostosão? 

-- Me encontrei com ele mês passado. Sabe, o ruim de ver ex na rua, é que a gente lembra da pessoa pelada. 

Disse ele, Fernanda deu uma risadinha. 

-- Ah, por que não falou com o cara? Quem sabe até rolasse uma volta. 

-- Eu, hein! Retornável é só a Coca-Cola. Se eu termino, não volto mais. É hora de esquecer dos erros do passado e começar a pensar nos erros do futuro. 

Fernanda balançou a cabeça. Cléo adora fazer piada da própria desgraça. 

-- Então, mesmo na seca você não aceitaria ele de volta? 

-- Jamais!  

O interfone soou no apartamento. 

-- Osvaldo Brandão está pedindo para subir -- anunciou uma voz. 

Meu Deus, pensou Fernanda. O que pode ter acontecido para que seu pai a procurasse tão tarde da noite?  

-- Pede para ele subir, por favor -- Fernanda desligou e se virou para Cléo. Suas feições refletiam preocupação -- Deve ter rolado algum babado entre ele e a mamãe.  

-- Seus pais são sempre assim, tão previsíveis? 

-- Conheço muito bem a dona Matilde. Ela não deve ter aceito que o papai faça o tratamento. 

-- Credo! Que mulher mais cabeçuda. 

Fernanda abriu a porta para recepcionar o pai. Ela abriu os braços assim que o viu sair do elevador. Seu coração pareceu parar enquanto observava seu pai aproximar-se. Sentia-se aliviada por que afinal ele estava ali e ao mesmo tempo, terrivelmente assustada. Temia que a sua mãe tivesse se oposto a ajuda oferecida por Alicia. Temia algo muito pior, que ele tivesse desistido do tratamento. Precipitou-se para ele com um leve sorriso e um abraço apertado. 

-- Vem comigo, pai. Vamos entrar -- ela segurou a porta aberta para que ele entrasse. 

Osvaldo hesitou, mas Fernanda o encorajou com um sorriso doce. No interior do apartamento, ele examinou cada detalhe da enorme sala, os móveis elegantes e bem-dispostos, um tapete redondo que combinava com o teto e demais elementos da sala. Percorreu os olhos ao longo das paredes e reconheceu algumas obras de artistas nacionais. Uma coisa não podia negar, sua filha estava levando uma vida bem melhor que quando estava com Salomão. 

-- Sua... -- ele pigarreou, sem jeito -- A doutora Alicia tem muito bom gosto. O ambiente é bonito e aconchegante -- Osvaldo obrigou-se a usar uma máscara de tranquilidade, não deixando transparecer todo o constrangimento que sentia. Por dentro, tinha vontade de sair dali correndo de tanta vergonha. 

-- É papai, minha esposa é puro bom gosto -- como se percebesse o que acontecia, Fernanda fez questão de deixar bem claro que se quisesse ter um bom relacionamento com a filha, teria que aceitar o fato de que Alicia era a pessoa mais importante em sua vida e que não admitiria qualquer tipo de preconceito e discriminação -- Deixa-me apresentar o Cléo -- ela virou-se e apontou para o rapaz jogado no sofá. 

Osvaldo deu um passo na direção dele e estendeu uma mão para cumprimentá-lo, forçando um sorriso.  

-- É um prazer -- disse ele, olhando para a tatuagem no pescoço do rapaz -- Tatuagem é pecado -- comentou. 

-- Que nada, louca! Tatuagem só é pecado, se for de hena. Porque aí é de mentira, e mentira é do diabo. 

Imediatamente Fernanda puxou o pai pelo braço.  

-- Sente-se, papai -- disse, apontando para o sofá confortável. Após um momento de hesitação, Osvaldo foi sentar-se meio contrariado no sofá em frente a Cléo, esticou as pernas e deu um suspiro. Após um momento, voltou-se de lado e fitou a filha. 

-- Sua mãe virou uma fera quando falei sobre o tratamento contra o câncer. 

Fernanda balançou a cabeça. Reclinou-se no sofá com os olhos entreabertos e fitou-o com uma intensidade penetrante.  

-- Eu não acredito que a mamãe teve a coragem de fazer isso! 

-- Pois, acredite. Ela disse que essa doença é coisa do inimigo e que já o amarrou em nome de Jesus. 

Cleo se levantou horrorizado. 

-- Quando eu era criança, dois crentes estavam pregando a palavra de Deus de porta em porta e chegaram na casa do meu vizinho que tinha um cachorrão daqueles pit bulls. Com a agitação do cachorro a corrente que o segurava arrebentou e ele foi pra cima dos crentes, um deles se ajoelhou e falou: 

-- Tá amarrado em nome de Jesus! 

-- E o que aconteceu? -- perguntou Osvaldo, curioso. 

-- Tão remendando o corpo até hoje. 

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Fim do capítulo