Capítulo 22
Lívia
Em algum momento da sua vida, provavelmente, alguém já te disse a fatídica frase: “não fique triste, nós nascemos para sermos felizes!”. Não acredite! É mentira! Sinceramente, se você beira os 30 anos e ainda acredita nesses contos de fadas, talvez, te falte noção de realidade.
Essa idealização de que “o ser humano merece ser feliz”, ou “nós podemos buscar nossa felicidade”, isso é lúdico! A felicidade é um lampejo, um momento. Como uma isca da vida para que a gente não acabe com o jogo, abandone ou cometa suicídio.
Os raros momentos de felicidade são, por assim dizer, como a esperança que é proporcionada aos trabalhadores explorados de uma fábrica, que ao ver um colega ser, propositalmente, promovido passam a acreditar veementemente na possibilidade de conseguir o mesmo feito, aumentam sua dedicação.
Esses operários, tornam-se mais infelizes e “escravizados”, entretanto, sequer percebem isso. Ao final da vida, esses indivíduos olham para traz e se sentem verdadeiramente frustrados, por uma dessas opções: a) acham que se dedicaram, estudaram e trabalharam pouco. Ou: b) percebem que foram trouxas por trabalhar demais e não curtir outros aspectos da própria vida.
Aqui não existe felicidade plena, não nesse plano, talvez em outros, para quem acredita. O ser humano é ruim, nós somos a pior espécie do planeta. Não falo só do estuprador, homicida, pedófilo...esses só são muito piores.
Falo da mãe de família que sente prazer em denegrir a vizinha, que gosta de apontar outra mulher na rua, porque dorme com homens diferentes, ou porque engravidou na adolescência. Do pai que obriga o filho tímido a ir a um bordel, ou se acha no direito de diminuir a esposa.
Muitas vezes, nós somos responsáveis por um pedaço, uma parte da tristeza de alguém, às vezes até mesmo o estopim para que algo pior aconteça. O ser humano só vê o defeito, o que está errado, mas é incapaz de reconhecer quando algo está certo. Não elogiamos a comida feita, o desenho bonito, o rendimento escolar de nossos filhos.
O ser humano é destrutível e cruel, até o melhor deles. Às vezes só precisamos aceitar isso. Olhe ao seu redor, com certeza irá ver o reflexo. A dor nós olhos de uma criança abandonada, um morador de rua, um cachorro com fome. É possível ser plenamente feliz num mundo assim? Para mim não dava.
Acordei novamente na cama de Íris. Aprendi a reconhecer as paredes e os cômodos. Impressionante como a delegada sempre acordava antes de mim. No relógio da cabeceira ainda marcavam 06:00 horas e eu já podia ouvir o som da água do chuveiro. Após um longo suspiro me levantei e fui ao encontro da morena que ainda despida, me olhou de esgueira.
- Perdeu alguma coisa, Lívia? – me perguntou enquanto eu analisava seu corpo sem constrangimento.
- Não, seu corpo é bonito! Mas...
- Mas? Como assim “mas”? Meu corpo é incrível, não tem “mas”. – retrucou, enquanto secava os cabelos com a toalha.
- Não é isso, Íris. – suspirei – seu corpo me é familiar.
- Hãn...talvez porque você dormiu aqui em casa uma vez. Não me lembro de ter dormido com nenhuma nerd na minha adolescência ou na época de faculdade.
- Quem disse para você que eu sou nerd, doutora?
- Não me faça rir, né Lívia?! Só pelos óculos, a gente já tira.
- Pouco justo, é só estilo.
- Tá, e as medalhas das olimpíadas de matemática? Os prêmios por artigo publicados? Sua casa tem mais livros de exatas que a biblioteca do colégio.
- Eu sou engenheira! Normal que eu tenha livros de matemática, cálculos e afins. – cheguei na porta do quarto dela e apontei – você tem uma imensidão de livros de direito, principalmente de penal e criminologia, eu nem falo nada.
- Você faz contas mais rápido que a calculadora, de uma forma que só sua cabeça funciona, eu nem com a calculadora chego próximo aos resultados que você obtém!
- Ok, isso é exagero, mas de fato sou boa com contas...por que a gente está discutindo isso mesmo?
- Nada, só tô mostrando que você é nerd! – passou por mim como um furacão.
Segurei o braço da delegada que me olhou séria, com o cenho cerrado. Sussurrei nos lábios dela “mas sou gostosa!”.
Os olhos dela pareciam ainda mais escuros, ela me mirou e puxou o braço em seguida.
- Nem reparei – disse antes de virar as costas e se perder pela casa.
Nós três sentamos para tomar café, da outra vez que eu estive ali pouco reparei na casa da delegada, mas agora as coisas já me pareciam um tanto quanto diferentes. Me sentia muito em casa ali. Tinha um ar de delicadeza e era perceptível que o ambiente possuía o toque, o carinho e o cuidado da mãe de Íris.
A toalha branca bordada, o arranjo de flores do campo em cima da mesa, os quadros na parede, os vasos de decoração, tudo parecia ter o toque da mãe de Íris. Talvez, quem olhe assim não saiba, mas eu sou engenheira e tenho o “pé” no designe de interiores, então eu conseguia perceber as preferências das pessoas, e a delegada era muito prática para se preocupar com tantos detalhes.
- Me desculpe, mas como é mesmo o nome da senhora? – perguntei a mulher a minha frente que derramava lentamente o café em uma xícara de porcelana branca com um estilo colonial.
- Roberta, mas pode me chamar de Berta, sou conhecida dessa forma! – me sorriu de forma genuína, mas com uma certa curiosidade no olhar – por que, minha querida, algum problema com o café da manhã?
- Não, de forma alguma, está delicioso! Esse suco de melancia que a senhora faz é maravilhoso!
- Obrigada, minha querida! A Íris também adora! – sorriu para a filha que estava distraída com a tela do celular.
- Ah, gostaria de elogiar o bom gosto da senhora, dona Berta! Tenho certeza que foi a senhora que decorou esse apartamento, tudo tão delicado e lindo! – coloquei uma das minhas mãos por cima da de Berta!
Os olhos da mulher marejaram e ela colocou a outra mão por cima, em um leve afago, eu também me emocionei e sequer consegui compreender o motivo.
- Dona Berta, a senhora vai querer... – a empregada me olhou e arregalou os olhos, a bandeja caiu de suas mãos no susto.
- Dudu, você tá ficando caduca, sabia? – falou Íris ao ajudar a jovem senhora a juntar as coisas do chão.
- Essa moça...- me olhou de um jeito tão estranho.
- Essa moça é a Lívia, a engenheira amiga da Íris, você conheceu-a da última vez que esteve aqui, não? – inquiriu dona Berta.
- Não, não – a senhora ajeitou os cabelos – me desculpe Íris, eu me atrapalhei.
Eu observava tudo calada, apesar de me sentir em casa as coisas me pareciam um tanto quanto estranhas, toda essa reação da mãe da Íris e da empregada. Sou meio cismada mesmo.
- Íris, tem alguma coisa estranha acontecendo? – perguntei já sentada no sofá da minha casa. A morena veio me trazer, mas não resistiu em ficar um pouco mais na minha presença.
- Como assim? – jogou as pernas no meu colo e mirou a televisão enquanto comia pipoca de micro-ondas.
- Nunca vi gostar tanto de programa de assassinato, Deus é mais! Eu gosto, mas você é sem comparação.
A delegada teve a audácia de enfiar um punhado de pipoca em minha boca de uma vez.
- Cala a boquinha, cala! – deu um sorriso cínico.
- É por isso que você tá solteira! – falei enquanto mastigava. É falta de educação, eu sei, mas né?! Depois que uma pessoa enfia um punhado de pipoca em sua boca não dá para pedir boas maneiras. – sua mãe e a senhora que trabalha em sua casa ficaram tão estranhas comigo.
- É impressão sua, só estranharam porque eu não sou de levar ninguém para a minha casa.
- Sei.
Eu me revirei algumas vezes no sofá, batia o pé no chão, estava tão agoniada com os últimos acontecimentos que até tinha esquecido o estresse com a Fernanda.
- Eu não tô sentindo – falou séria.
- O que? – perguntei sem entender.
- A formiga que deve tá no sofá para você se revirar tanto! – sorriu. E o sorriso da delegada definitivamente era lindo.
- Em quanto tempo um crime prescreve?
- Depende do crime, por que? Fez merd* foi? Prefiro nem saber, viu?! – voltou a assistir o seriado.
- Estupro, quanto tempo?
Ela parou e me olhou séria. Desligou a televisão e ficou de frente para mim. Vi a preocupação transbordar por seus olhos chocolate, a morena engoliu em seco. Engraçado, por um momento pareceu ser algo diferente, como se não tivesse habituada a tomar conhecimento de fatos assim diariamente.
- É sobre o que você me disse na porta da casa de seus pais, né?! Como você não quis entrar em detalhes, eu preferir aguardar – eu dormi na casa da morena, mas não contei o ocorrido – você quer me contar alguma coisa? Precisa de ajuda? Essa descoberta pode ser meio traumática para você e...
- Responde minha pergunta.
- Bem, prescreve em 16 anos, considerando sua idade... – seus olhos me examinavam dos pés a cabeça.
- Meu pai estuprou minha mãe e ela engravidou de mim, por isso que ela me odeia! – senti minha garganta fechar.
- Lívia, apesar de trabalhar em uma delegacia, esses assuntos me tocam muito. Eu imagino o quanto é doloroso para você. E para sua mãe também! Já que teve que conviver com seu algoz por todos esses anos. – ela segurou minhas mãos, os olhos vivos ficaram opacos e eu vi um misto de decepção e ódio. A delegada respirou fundo e passou a mão nos cabelos. – por que sua mãe nunca denunciou?
- Era dependente dele. – respondi em um fio de voz.
- Infelizmente, não posso dizer que é exatamente uma surpresa. Muitos casos são assim! Tantas mulheres são estupradas por seus maridos que se outorgam o poder de tomá-las a forçar por serem casados. É revoltante e asqueroso.
- Eu nem sei o que fazer, Íris – me deitei no peito da delegada, e aspirei seu perfume. Era tão acolhedor.
- É difícil dizer, também não saberia bem qual posicionamento tomar – sussurrou carinhosamente no meu ouvido – mas, uma coisa é fato: sua mãe precisa de ajuda. Seu pai a destruiu como mulher, ainda que tenha sido uma vez só, a gravidade da violência dele e a imposição de viver ao seu lado, como esposa, fingindo por todos esses anos...dilaceraria a alma de qualquer uma de nós.
- Me sinto tão envergonhada, como eu pude questionar ou exigir amor de uma mulher tão agredida? Como eu me devotei a um homem capaz de uma barbaridade dessas? – levantei nervosa – e eu criticava o Marcos! Agora entendo a quem ele puxou! E sinceramente? Oscar, possivelmente, ainda é muito pior – encostei a testa na janela de vidro. As gotas de chuva embaçavam a minha visão dos carros lá embaixo.
- Lívia, não carregue essa culpa, esses erros não são seus. Cada relação é única. Não é possível prever uma circunstância dessas, e mais, é totalmente entendível seu amor por seu pai! Por pior que seja essa situação, a vida toda foi ele quem te deu amor, cuidou de você, te ensinou a andar de bicicleta, foi às festas da escola. – os braços da mulher me envolveram. Sentir o coração da delegada me acalmava – agora que você sabe do sofrimento, busque uma forma de perdoá-la, mas esteja perto! Onde sempre tudo foi ódio e sofrimento, seja amor!
No início da tarde, fui ao escritório. Afinal, eu também precisava trabalhar, e como dizem por aí, o mundo não para só porque você está sofrendo! É necessário aprender a lidar com nossas feridas internas, porém não espere que o outro vá se compadecer da sua dor. Todos buscam o melhor para si, e seria hipocrisia questionar isso, já que a vida é uma luta diária.
Não demorou muito para a secretária do meu setor, jovem senhora de cabelos curtos e sorriso jovial, ingressar na minha sala com um leve brilho nos olhos enquanto ostentava um envelope branco com um timbre azul nas mãos.
- Pois não, em que posso ajuda-la, dona Marisa?! – eu sei, talvez pareça um tanto quanto formal, mas ela exercia o cargo de secretária a pouco tempo no meu setor, a funcionária anterior foi “promovida” e passou a trabalhar diretamente com o presidente da empresa.
- Chegou esse envelope para a senhora, doutora Lívia! Parece ser muito importante, o entregador pediu para te parabenizar e entregar com urgência, em mãos! – me entregou ainda com um sorriso brando nos lábios.
- Tudo bem, obrigada! Vou olhar! – devolvi o sorriso gentil a senhora que logo se retirou da minha sala.
Por alguns segundos mirei o envelope a minha frente, do jeito que andavam os últimos acontecimentos não sabia se estava pronta para outras surpresas. Caminhei até o carrinho bar com uma pequena adega que eu mantinha na minha sala, principalmente para os clientes que gostavam de tomar um drink para relaxar, e me servi de uma taça de vinho tinto.
Novamente, segurei o pedaço de papel nas minhas mãos e sem mais demora abri-o. Definitivamente, eu achava que nada poderia me surpreender tanto, porém estava redondamente enganada. Tomei uma grande golada do liquido escarlate e tentei controlar os meus sentimentos.
Fim do capítulo
Desejo a todas uma boa semana!
Um abraço,
Antônia.
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