Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 32 

Fernanda se encostou contra a porta de entrada quando seus joelhos amoleceram. Você consegue, disse a si mesma. Apenas permaneça fria e calma. Sem lágrimas, sem teatro. Apenas diga: "Nossa amizade continua a mesma", mesmo sabendo que isso não seria possível. 

Ainda estava na mesma posição quando ouviu a batida à porta. 

Ela abriu. Alicia estava parada ali, não estava sorrindo. Na verdade, a expressão era séria como Fernanda nunca tinha visto. Ela ainda a afetava tanto quanto na primeira vez em que a viu. Ainda sentia o coração disparar e a palma das mãos ficarem úmidas de emoção. 

-- Vim te buscar -- Alicia deu uma olhada para dentro, como se estivesse procurando por Salomão -- Está sozinha? 

Fernanda sorriu de leve. 

-- Entra -- disse, se afastando para que Alicia entrasse -- Salomão está dormindo. 

A médica entrou sem dizer uma palavra sequer, o olhar luminoso expressando ansiedade. Fernanda fechou a porta e a fitou demoradamente.  

-- Não esperava que viesse. 

Alicia enfiou as mãos nos bolsos do jeans. 

-- Pensei que a encontraria amarrada, amordaçada, sendo torturada pelo Salomão, mas pelo que vejo, você está aqui por livre e espontânea vontade. 

Fernanda olhou para ela por um momento, balançou a cabeça e então se sentou. 

-- Ele me trouxe a força, mas a pedido da minha mãe -- ela engoliu em seco e sem encarar Alicia, continuou: -- Conversamos bastante e decidi reatar o noivado. 

Alicia ficou chocada, sentindo como se uma mão de ferro apertasse seu coração. Rapidamente, ela olhou de novo para Fernanda, incrédula. Em seguida, abaixou os olhos e procurou se acalmar.  

-- Fernanda! -- ela murmurou, quase que para si mesmo -- Você não ama o Salomão. 

Fernanda apertou os lábios. Ela estava certa. Realmente, não o amava, mas tinha que continuar agindo como se isso não importasse. 

-- Nem sempre ficamos com o grande amor de nossas vidas, Alicia -- afirmou com amargura -- Mas, acredito no grande amor, porque já tive isso e não fui correspondida. Hoje, não tenho mais expectativas frívolas de amor romântico. 

Alicia sentiu um gosto amargo na boca. Mais uma vez fez um grande esforço para se controlar e não a arrastar para longe dali.  

-- Mas o que foi que saiu errado? -- perguntou, decepcionada -- Você estava tão decidida a dar um novo rumo a sua vida. 

-- Nada saiu errado. Apenas cheguei à conclusão de que a vida que estava levando não tinha futuro algum -- o coração de Fernanda começou a bater com força -- Minha mãe tem razão. A mulher temente a Deus, tem a missão de casar, cuidar da casa, dos filhos, do marido e assim por diante.  

-- Esse homem te humilhou -- foi muito difícil para Alicia esconder sua raiva. 

-- Precisamos aprender a acolher as humilhações e transformá-las em salvação. Pensar no outro em primeiro lugar, engolir a resposta que ferirá, servir sem esperar nada em troca, ou seja, ser uma discípula de Jesus. 

Alicia ficou sem palavras. Ao entrar no apartamento, ela estava cheia de esperança de levar Fernanda de volta, mas, depois de lançar um breve olhar à figura impassível de Fernanda, compreendeu que estava perdendo tempo. 

-- É uma pena que pense dessa forma -- Alicia, caminhou até a porta -- Tem certeza que é isso mesmo que você quer? 

-- Sim, é isso mesmo -- seu lado racional dizia que sim, mas seu coração gritava que não. 

-- Então, até mais -- sua voz não era mais que um lamento. 

Fernanda levantou-se do sofá com um gesto rápido. 

-- Alicia... -- ela chamou. 

-- Sim? 

-- Vou me casar no dia 14 -- falou com a voz um pouco trêmula. 

Alicia sentiu como se tivesse recebido um balde de água fria. Ela encolheu os ombros e deu um suspiro exagerado. 

-- Parabéns, vocês se merecem -- dito isso, ela deu a volta e saiu do apartamento, batendo a porta. Estava tão decepcionada com Fernanda que sequer insistiu.  

Fernanda deixou-se cair no sofá. Estava num beco sem saída. Como se já não bastasse tudo o que estava sofrendo por causa da doença do pai e do casamento indesejado, ainda tinha que renunciar ao seu grande amor! Tudo indicava que sua vida dali em diante não seria um mar de rosas. 

Alicia entrou no carro e bateu a porta com força. 

-- Droga! Sou uma boba, mesmo -- ela esbravejou, irritada -- Que mulher boba! 

-- Como ela está? O Salobobão ainda a mantém em cárcere privado? -- perguntou, Cléo. 

-- Como é o cativeiro? -- quis saber, Suelen. 

-- Conseguiu falar com ela? O que foi que ela disse? -- Juliana foi perguntando, ansiosa. 

Alicia se virou para eles com uma expressão zangada no olhar. 

-- É inacreditável, mas a Fernanda reatou o noivado com aquele picolé de chuchu. 

-- O que? 

Eles perguntaram surpresos. 

-- É isso, mesmo! Ela vai se casar no dia 14. Então, pt. Saudações -- ela disse girando a chave na ignição -- Vamos embora daqui. Tenho plantão logo cedo e preciso dormir. 

-- Espera! -- Cléo segurou o braço dela -- Como você é burra e cabeça dura, docteur! Vá tomar no cú! 

Alicia ficou olhando para ele, sem acreditar no que tinha ouvido. 

-- Repete se você é gay. 

-- Você é resultado do cruzamento entre uma jumenta e um cavalo e desejo veementemente que a docteur receba contribuições inusitadas em vossa cavidade retal. Pronto, falei! Aiiiiii... 

-- Pronto, belisquei! -- Alicia sorriu, ironicamente -- Aprendeu rápido a linguagem formal, só pra me responder, né? 

-- Grossa! Estupida! -- Cléo abriu a porta do carro e saiu. 

Suelen também saiu para a rua. 

-- Aonde você vai, Cléo? 

-- Se a docteur acreditou nessa historinha, problema dela. Eu não acreditei. 

-- Confesso, que nem eu -- Suelen se encostou no carro -- O que pretende fazer? 

-- Vou buscá-la -- Cléo deu alguns passos em direção ao prédio, parou e se virou -- Não tentem me impedir -- ele continuou e parou metros depois -- Não insistam. 

Suelen se inclinou e olhou para Alicia pela janela do carro. 

-- Deixo-o ir sozinho? 

Alicia deu de ombros, jogou a cabeça loira para trás e riu.  

-- Deixa ele. Tá louco pra levar um safanão do tampinha. 

Cléo subiu dois degraus, parou diante da porta do prédio e se virou. 

-- Estou indooo... Estou entrandooo... 

Suelen levantou a mão, acenando. 

-- Boa sorte! 

Cléo olhou para a porta hesitante, respirou fundo, mas enfim, entrou. 

Com as mãos sobre o colo, Fernanda olhava com indiferença para a xícara de café esfriando sobre a mesa. Um imenso vazio a dominava. Permanecia inerte, incapaz de pensar. Desde que Alicia havia ido embora, sua mente se fechara. Como em defesa própria, o cérebro se recusava a deixá-la pensar ou mesmo avaliar o que estava por vir. Continuava sentada na mesma posição em pleno estado catatônico. 

A porta foi aberta e Cléo entrou. Fernanda deu um pulo da cadeira. 

-- Jesus! -- ela arregalou os olhos -- Como entrou? 

-- Esqueceu que eu sou um Espírito? -- ele, riu -- Espirito de porco -- disse, sentando-se na cadeira ao lado dela com uma expressão grave no rosto -- Nunca esqueça de trancar a porta, é muito perigoso. 

-- Ah, que cabeça a minha! Fiquei tão perdida depois que a Alicia foi embora, que me esqueci de trancá-la.  

-- Tudo bem com você? -- perguntou Cléo, olhando para a xícara de café intocada. 

Fernanda balançou a cabeça.  

-- Alicia te contou que vou me casar no sábado? 

-- Contou, mas não acreditei -- ele arrastou a cadeira para mais próximo dela, então a tocou com simpatia -- Não depois de você ter enfrentado a sua família com tanta coragem. Confesso que até senti inveja da sua força e determinação. Inveja branca, é claro. Muito ruim ver uma pessoa da mesma idade que você já bem-sucedida profissionalmente, corajosa em sua vida e na sua busca das coisas que você quer. Me sinto uma sacola de plástico. A minha inveja não é aquela inveja que mata passarinho, plantinhas e até coloca quebranto em crianças -- Cléo, se revirou na cadeira -- Meu vizinho é assim. Em uma segunda feira ele me viu deitado na rede e disse: A preguiça é pecadooo... E eu respondi: A inveja tambémmm... Mesmo se a opinião dele for 0800, eu não ligo! 

-- Cléo! -- Fernanda tocou no braço dele, mas ele não deu importância. Continuou a falar sem parar. 

-- Já percebeu que mulher está sempre querendo destruir as outras e a prova disso são as vestimentas que elas usam: tomara que caia, rasteirinha... 

-- Cléo! -- Fernanda levou a mão aos lábios sufocando um soluço -- Meu pai está morrendo. 

A boca de Cléo endureceu e ele se calou, já sem traço algum de divertimento. 

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Fim do capítulo