Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 30  

Alicia virou à direita e pegou a Avenida Edgar Romero, na altura do Mercadão de Madureira. Ao seu lado, esparramado no banco do passageiro, Cléo não parava de falar. 

-- Dizem que ver filmes de terror atrai fantasmas, mas isso não faz o menor sentido, vejo pornô todo dia e nunca vi um homem pelado andando pelo apartamento -- disse Cléo, esticando as pernas e espreguiçando-se de modo a estimular sua circulação -- Se a casa é mal assombrada, quer dizer que o fantasma é incompetente? 

-- Eu nem vou responder a isso -- Alicia virou-se para ele e riu, debochada -- Você estava se borrando de medo, confessa. 

-- Eu, hein! A única coisa que tenho medo é de morrer no banheiro e os outros me verem pelado. De resto é só charminho. Há um super-herói em todos nós, só precisamos da coragem para colocar a capa -- suspirou e tirou um pelinho do Yuki da roupa -- Essa frase é minha. 

-- Mentiroso, é do Bruce Wayne no filme, Batman. 

-- Sério, que eles me plagiaram? 

Um carro passou buzinando alto, e Alicia sobressaltou-se. 

-- Seu louco! -- ela xingou, irritada. 

-- Um dia, perguntei pra minha mãe se ela acreditava em fantasma, ela me respondeu: depois que você nasceu não duvido de mais nada! -- ele riu, pensativo -- Minha mãe é um barato. Perdi um dente só por falar que cú de bêbado não tem dono. 

-- Não era pra tanto, mas você não devia ter falado isso. Certas pessoas se ofendem com esse tipo de vocabulário. Minha mãe, por exemplo, não permitia que eu chamasse alguém de louco. Ela citava o texto de Mateus 5,22, que diz assim: Eu, porém, vos digo: todo aquele que se encolerizar contra seu irmão, terá de responder no tribunal; aquele que chamar ao seu irmão "Cretino"! Estará sujeito ao julgamento do Sinédrio; aquele que lhe chamar '‘louco'' terá de responder na geena de fogo" 

-- Isso é real? 

-- Não acredito. Provavelmente traduções com discordância. A Bíblia de Jerusalém, de fato, não traduz como "louco", mas como "insensato" e a Bíblia Pastoral usa "idiota". A Bíblia Almeida usa "louco". E aí por diante. 

-- Fico mais tranquilo. O que já chamei aquela gayzada de loucas, não é brincadeira. Já estaria assando na grelha do inferno. 

Alicia parou no sinal vermelho e se virou para ele. 

-- Da próxima vez que quiser falar que cú de bêbado não tem dono, diga assim: O orifício circular corrugado, localizado na parte ínfero lombar da região glútea de um indivíduo em alto grau etílico, deixa de estar em consonância com os ditames referentes ao direito individual de propriedade. Falando assim, com certeza, será menos traumático. 

-- A docteur é tão culta. 

-- Eu sei. 

O sinal ficou verde e Alicia pisou fundo no acelerador. O Range Rover Velar deu um salto, os pneus cantaram levemente e ele disparou pela estrada até que finalmente parou diante de um prédio alto, numa rua um pouco mais sossegada.  

-- É aqui? -- Cléo indagou, olhando para o prédio. 

-- De acordo com o GPS, é -- respondeu Alicia, abrindo a porta do carro e saindo em direção a entrada -- Vou conversar com o porteiro. 

Alicia suspiro fundo e empurrou a porta giratória de entrada do prédio. Uma moça morena, vestida com uniforme de empresa de segurança, estava sentada atrás de um balcão de mármore e sorriu ao vê-la. 

-- Boa noite. Em que posso ajudá-la? 

-- Boa noite. Eu preciso falar com a enfermeira Suelen. Pode me anunciar, por favor? 

-- Claro. Só um instante. 

A moça ligou várias vezes, mas Suelen não atendeu. 

-- Tem certeza que ela está em casa? -- Alicia perguntou, para a simpática funcionária. 

-- Absoluta. Ela e a namorada chegaram faz pouco tempo. 

-- Posso subir? -- Alicia perguntou, levantando uma sobrancelha -- É urgente. 

-- Sinto muito, mas não posso liberar a entrada de ninguém que não esteja autorizado pelo morador. 

-- Entendo -- disse Alicia, desanimada. 

-- Oiê -- Cléo entrou carregando uma bolsinha -- Então? Vamos subir? 

-- Ela não conseguiu contato com a Suelen -- Alicia já havia desistido. 

-- E nem vai conseguir -- ele se debruçou sobre o balcão e fitou a moça com os olhos reluzindo em desafio -- Ela ligou para nós pedindo urgentemente um estimulador ponto G. E nós do Delivery Fuck-fuck, nunca deixamos o nosso cliente na mão. O lema da empresa é: Nosso prazer é você se foder. 

A moça o olhou desconcertada. 

-- Isso é sério? 

-- Seríssimo. A coitada deve estar lá, doida para goz*r e você dando uma de empata foda. Que desagradável! 

A moça pensou muito, antes de se decidir por liberar a entrada. 

-- Tudo bem, mas tem que ser rápido. 

-- Qual é o apartamento? -- perguntou Alicia, de longe. 

-- Apartamento 53, quinto andar. Mas, sobe apenas o... -- ela olhou para ele de alto a baixo -- ... Rapaz. 

-- NÃÃÃOOO... -- sua voz fina soou pela portaria e ele cobriu a boca com a mão -- Desculpa! Mas é ela quem faz a demonstração do produto. 

A moça revirou os olhos e apontou para o elevador. 

-- Que Deus me proteja.  

Alicia apertou o botão e com um suspiro encostou-se à parede do elevador. Admitia o erro em ter sacaneado com Juliana, mas Fernanda havia exagerado em sua vingança. Será que em nenhum momento passou por sua cabeça que ela se preocuparia? 

-- Docteur!  

-- Hum? 

-- Fala, "dar uma de João sem braço", no seu vocabulário. 

-- Aplicar a contravenção do senhor João, deficiente físico de um dos membros superiores.  

-- E, "encher o saco"? 

-- Inflar o volume da bolsa escrotal. 

-- E... 

-- Chega Cléo, que saco! 

-- Bolsa escrotal! 

Alicia bufou, irritada. 

No quinto andar as portas se abriram e eles saíram rapidamente.  

-- Olha -- disse Cléo, apontando para a porta logo a frente -- Apartamento 53. 

Alicia tocou a campainha e ficou esperando, aflita. Por algum tempo, nada escutou. Ia tocar de novo, quando a porta se abriu e Juliana apareceu diante dela com os cabelos despenteados, o rosto impaciente e uma roupa vestida às pressas. 

Houve um longo silêncio, até que as duas perguntaram juntas: 

-- O que você faz aqui? 

A porta foi escancarada violentamente e Alicia invadiu o apartamento segurando Juliana pelo braço. 

-- Aonde ela está?  

-- O quê? Está maluca? -- Juliana gritou para a mulher que acabara de invadir o seu apartamento. 

-- Eu sei que a Fernanda está aqui com você. 

A ruiva a olhou sem entender o que estava acontecendo. Ela deu um passo para trás, ao mesmo tempo em que Alicia soltou-lhe um dos braços que ainda segurava. 

-- Que gritaria é... -- Suelen paralisou ao ver Alicia -- O que você está fazendo aqui? 

-- Vim buscar a Fernanda -- Alicia deu dois passos em direção ao corredor. 

-- Pare aí mesmo! -- disse Suelen. 

Com um gesto de impaciência, Alicia estacou.  

-- Eu sei que ela está escondida no quarto. 

O olhar gelado que ela lançou fez Suelen sentir frio. 

-- A Fernanda não está aqui -- exclamou, tentando, em vão, acalmar a desconfiada loira -- Não é mesmo, Juliana? 

-- Ela não está aqui. Nos despedimos em frente ao seu prédio. Foi a última vez que eu vi a Fernanda. 

-- Oiê -- Cléo acenou da porta -- Que mal pergunte, o que o pão com molho faz aqui? 

-- Verdade! -- Alicia a olhou fixamente, sem piscar, como uma águia a reparar sua presa -- O que faz aqui, Fanta Zero? 

Aquela sensação de que dedos gelados apertavam sua garganta havia voltado. Juliana tinha uma inegável sensação de medo. 

-- Eu, a, nós -- Meu Deus, por que de repente sentia tamanha dificuldade em falar? Pensou. A respiração de Juliana se tornou ofegante e seus lábios tremiam tanto que ela mal conseguia articular as palavras -- Depois de tudo o que aconteceu hoje em seu apartamento, decidimos terminar o namoro. E como eu e a Suelen estamos sem namorada, resolvemos ficar juntas -- ela despejou as palavras numa enxurrada -- É isso aí. Estamos namorando. 

Alicia levantou as sobrancelhas e a olhou desconfiada. 

-- Caramba! Que rapidez! -- disse, ainda descrente -- Minha mãe sempre fala que: "Namorada de lésbica é igual caneta. Não pode mostrar para as amigas, que elas já querem levar". 

-- Isso está me parecendo conversa mole pra boi dormir. Por favor, docteur, como se fala em seu vocabulário? 

Alicia revirou os olhos 

-- Prosopopeia flácida para acalentar bovinos. 

-- É isso aí, pequena guru! -- Cléo aplaudiu. 

Suelen sentou-se no sofá. 

-- Está convencida de que a Fernanda não está aqui? 

Alicia fez que sim com a cabeça, ficando ainda mais preocupada.  

-- Vocês fazem ideia de onde posso encontrá-la? -- Alicia sentou-se no sofá ao lado da poltrona de Suelen -- Por que tudo isto está começando a parecer estranho para mim? Esse joguinho de esconde-esconde não condiz com a personalidade da Fernanda. 

Juliana se sentou de frente para Alicia e inclinou-se um pouco para frente. 

-- O que aconteceu depois que eu fui embora? 

-- Eu fui até a casa da vizinha assistir ao jogo do Fluminense e a boneca de Vodu aí teve a infeliz ideia de dizer para a Fernanda que eu fui ao apartamento da Natália. 

Juliana, fitou-o, confusa. 

-- Por que fez isso? 

-- Excesso de criatividade -- disse ele, detendo-se na porta entre a cozinha e a sala.  

-- E depois? -- perguntou Suelen. 

-- Bem, depois... -- ela disse, limpando a garganta, e pulando a parte do Poltergeist -- Fomos até o apartamento da Natália. 

-- E ela não estava lá -- completou Cléo. 

-- Nem sinal da Nanda -- Alicia coçou a cabeça. 

-- Sei que pode soar um pouco louco, mas já pensaram na hipótese de a Fernanda ter sido raptada? -- Juliana perguntou, levantando-se e começando a andar pela sala, parando em frente a Alicia. 

-- Raptada? -- a médica repetiu, virando-se e olhando para a enfermeira -- Mas, quem faria isso e, qual o motivo?  

Suelen e Juliana se entreolharam. 

-- Só conheço uma pessoa capaz de uma loucura dessa! -- exclamou Suelen com resignação, inclinando-se para trás e encostando a cabeça no sofá -- Salomão. 

Matilde pegou a xícara com cuidado, levou aos lábios e tomou um gole do café antes de comentar. 

-- Não é normal uma moça bonita como você chegar a essa idade ainda solteira. 

-- Eu quero estar apaixonada pela pessoa com quem me casar, mamãe. 

-- Que tolice, minha filha! Isso é muito bonito na teoria, mas, na prática, tudo muda. Seu futuro marido tem que ser um homem de Deus, honesto e trabalhador. O amor vem depois do casamento. 

-- E se não vier? -- perguntou Fernanda. 

-- Pelo menos você terá um marido, filhos e uma casa para cuidar -- Matilde fez uma pequena pausa -- Ele é um dos nossos, Nanda. Seu pai o adora e sonha em vê-la casada. Seus avós, nem se fala. Ainda bem que eles não ficaram sabendo que você se deixou levar pelo inimigo -- acrescentou, olhando para a filha com ar de censura. 

-- Mamãe, você nunca pensou em minha felicidade -- protestou Fernanda -- Só pensa em si mesma e em seu benefício próprio, não se importa com os sentimentos dos outros. 

-- Muitas mulheres dariam tudo para estar no seu lugar -- comentou Matilde. 

Um sorriso debochado surgiu nos lábios bem-feitos de Fernanda. 

-- Só em sua cabeça, mamãe -- falou e mudou de assunto -- O que a senhora tem de tão importante para me dizer? -- perguntou ela usando um tom frio -- Seja lá o que fosse, não precisava ter mandado o Salomão me buscar. Era só ter me telefonado que eu viria. 

-- Pensei que não -- Matilde se levantou, foi até a estante e voltou com um envelope na mão. Ela o entregou para a filha, depois, olhou pela janela de seu apartamento no vigésimo andar. 

-- O que é isso? -- Fernanda olhava fixamente para o envelope marrom em sua mão. 

Incapaz de encarar a filha, Matilde continuou olhando para fora. 

-- São os exames do seu pai -- ela enfim, se virou -- Leia com atenção. 

Fernanda abriu o envelope e leu o resultado dos exames. Havia desespero naqueles olhos castanhos enquanto ela examinava item por item com os lábios entreabertos. Quando falou, depois de engolir em seco, Fernanda quase gritou. 

-- Não! Meu Deus! 

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Fim do capítulo