Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 23  

Natália foi em direção ao quarto de Alicia e abriu a porta sem bater. A cortina estava aberta e a luz do sol iluminava cada centímetro do seu corpo. Ela fitou a moça estirada na cama com seus cabelos dourados espalhados no travesseiro e um pijama curto com a estampa da Capitã Marvel. Já havia se passado muito tempo, mas as lembranças das noites de amor que passou ao lado de Alicia, permaneciam nítidas em sua mente.  

Natália sentou-se na beirada da cama e olhou-a inexpressivamente.   

-- Você me pertence -- disse com propriedade -- É inacreditável como você não enxerga isso.  

-- Como assim, te pertence? -- Fernanda perguntou da porta do banheiro.   

A surpresa foi tanta que Natália só conseguiu abrir a boca e arregalar os olhos, incrédula.   

-- Não estou entendendo o enredo dessa história -- comentou Fernanda, confusa. 

-- Quem é você? O que faz no quarto da Alicia? -- a médica perguntou de forma ríspida.  

-- Me chamo Fernanda e fui convidada a entrar, o que não foi o seu caso. Não é mesmo? 

Natália engoliu em seco. Fernanda, o nome soava ligeiramente familiar.  

-- Hum, você é a moça que estava conversando com a Cristina no estacionamento do hospital. A mulher de um dos pacientes da Alicia. Pobre homem -- ela riu -- Minha mãe sempre dizia: chifre é como consórcio, quando você menos espera é contemplado.   

-- Você está se referindo ao meu ex-noivo ou a Cristina? -- Fernanda ergueu a cabeça diante do tom altivo de Natalia.  

-- Pelo que me consta, você é a namorada dela. 

Os maxilares de Natália se contraíram.  

-- Sai daqui!  

Fernanda olhou para ela, espantada.  

-- O que? -- os olhos castanhos revelavam incredulidade. Ela desviou o olhar para Alicia, que dormia profundamente, na esperança que a médica acordasse.  

-- Vem comigo! -- agarrando-a pelo braço, Natália puxou-a até o corredor e entrou na sala. Fernanda esperneava, puxava o braço tentando se desvencilhar, mas a loira alta, era muito mais forte que ela.  

-- Me solta, sua louca! -- Fernanda olhou para a mão que segurava o seu braço e, depois, lentamente, levantou o rosto para encará-la, como se dissesse "Como ousas?". Mesmo Natália torcendo e apertando o seu braço, Fernanda conseguiu se soltar -- Com que direito você entra aqui me dando ordens? Parou para pensar que Alicia pode não gostar da sua atitude?  

-- Preste atenção, querida -- a raiva no rosto de Natália era visível. Ela era extremamente bonita, e exageradamente arrogante. Tinha prazer em mandar em todos -- Não posso permitir que você se aproveite do momento de carência da Alicia. 

-- Não pode permitir? -- Fernanda a interrompeu com as sobrancelhas levantadas -- O que Alicia pensa disso? -- a moça inspirou fundo. Ela prendeu a respiração, esperando a resposta.  

-- Alicia amava demais a Thais, ela ainda não se conformou com a morte trágica dela. É normal bater uma carência. Você é esperta e se aproximou no momento certo. Eu conheço bem o seu tipinho.  

Incapaz de falar por um momento, Fernanda balançou a cabeça. Parecia que tudo conspirava contra ela. Sabia que se Alicia estivesse ali, colocaria a loira arrogante em seu devido lugar.  

-- Vamos perguntar para Alicia o que ela pensa sobre tudo isso.   

-- Não, não vamos -- Natália tinha os olhos enormes brilhando de ódio -- Vá embora -- ela disse, furiosa, apontando um dedo para Fernanda -- Antes que eu te meta a mão na cara.  

Cléo ouviu os berros de Natalia e saiu da cozinha.  

-- O que está acontecendo? -- ele perguntou, assustado -- Que escândalo é esse? Parecem duas galinhas cacarejando!  

-- A dona Fernanda está de saída -- Natália abriu a porta e apontou para fora.  

-- Mas, não mesmo -- o rapaz plantou os pés separados e colocou as mãos na cintura, assumindo uma postura petulante, que fez Natália ranger os dentes -- Ela só sai daqui sobre o meu corpinho estirado no chão sem vida e sem purpurinas.  

Fernanda parecia confusa e apreensiva. Não havia nada do seu atrevimento e brilho costumeiros. Sentia-se vulnerável e humilhada. No íntimo, porém sabia que não deveria demonstrar tais sentimentos. Por isso, encarou a mulher com a expressão mais impassível que conseguiu.  

-- Está tudo bem, Cléo. Eu não preciso passar por isso.  

  -- Eu vou chamar a doutora -- ele deu dois passos, mas Fernanda o conteve segurando o seu braço -- Por favor, não faça isso.  

Cléo estava em dúvida, mas obedeceu. Só que depois se encostou na parede e ficou ouvindo a conversa das duas. Natália continuava imóvel, mantendo a porta aberta.  

-- Eu vou me vestir -- anunciou a psicóloga, olhando diretamente para o seu desafeto.  

Fernanda vestiu-se rapidamente, depois ficou parada no meio do quarto, sem saber o que fazer. Seus olhos se encheram de lágrimas e ela escondeu o rosto nas mãos, soluçando.  

-- Estou me sentindo tão só -- dizendo isso, saiu do quarto.  

-- Fernanda! -- Cléo a chamou -- A Alicia vai ficar uma fera quando souber.  

-- Acho melhor eu ir -- foi só o que Fernanda conseguiu falar antes de passar por Natália e sair do apartamento.  

-- Alicia!  

O grito ecoou várias vezes dentro do quarto, cada vez mais alto. E então Alicia acordou.  

Ela se sentou na cama, com o coração disparado e a respiração entrecortada. Enterrou o rosto nas mãos trêmulas e esfregou as palmas contra as faces, como para apagar o pesadelo da memória.   

-- Nanda, está no banheiro? -- ela chamou, mas não obteve resposta. Colocou uma bermuda, uma camiseta e saiu do quarto, passando pelo corredor e tomando cuidado para não pisar no cachorro que dormia pesadamente.   

Ao chegar junto à porta da sala, ouviu com preocupação a voz de Natália.  

-- Eu não quero que a Alicia saiba de nada disso.  

Dois passos foram o suficiente para Alicia ficar de frente a Natália.    

-- O que você não quer que eu saiba? -- havia um brilho gelado nos olhos dela e a preocupação era nítida. 

As bochechas de Natália enrubesceram.  

-- Eu pedi para aquela moça ir embora -- disse ela, de modo arrastado, fazendo força para parecer normal. 

Ignorando Natalia, Cléo chegou mais perto e antecipou-se: 

-- Ela não pediu coisa nenhuma! Ela expulsou a coitadinha, isso sim -- o rosto bonito do rapaz, parecia mais claro do que nunca e os olhos azuis brilhavam de raiva.  

Alicia se virou para a médica.  

-- Está maluca? -- Alicia a fuzilou com o olhar -- Há quanto tempo ela saiu? -- perguntou para Cléo, com a voz trêmula.  

-- Há alguns minutos -- ele respondeu.  

Alicia se preparou para sair correndo, mas antes se virou para Natália.  

-- Não vá embora. Ainda não terminamos -- Alicia falou com uma grosseria a que não estava acostumada. Porém, precisava ser dura.  

Assim que Alicia saiu batendo a porta, Cléo afundou-se na poltrona em frente a Natália.   

-- Ainda bem que comecei o dia tomando um suquinho de maracujá para não me estressar. Já foram 18 copos. Se quiser, eu busco uns copos para você doutora.  

-- Não! -- respondeu, ríspida.  

-- Não quero tocar terror, mas a doutora Alicia vai voltar que é o cão.   

-- Não enche!  

-- A vida é assim mesmo. Uma vez eu estava tão ferrado que cai em um esgoto e o cocô disse: Ah pronto, agora estão jogando merd* aqui.  

-- Vai te ferrar!  

Alicia logo passou pela portaria do prédio e chegou à rua. Agora precisava escolher um lado e seguir em frente. A estrada que se estendia diante dela e fazia mais à frente uma curva, parecia a mais indicada, então, correu por ela tão depressa quanto pôde. O sol brilhante e a brisa quente acompanharam-na por toda a avenida onde casais passeavam sorridentes de braços dados. Com agilidade, se desviou de pessoas que conversavam parados na calçada. Parou na curva, esperou o sinal de trânsito mudar e atravessou com segurança.  

Pelo canto do olho, Alicia avistou a inconfundível moça que caminhava de cabeça baixa.  

-- Fernanda! -- Alicia a chamou, arfando.  

Quando ouviu o seu nome ela parou. Antes de se virar Fernanda esfregou as palmas das mãos contra as faces na tentativa de secar as lágrimas.    

Alicia enfiou as mãos nos bolsos traseiros da bermuda jeans, mordiscando os lábios, constrangida.  

-- Será que você consegue me perdoar?  

A voz doce foi seguida pela visão dos olhos verdes mais fascinantes que Fernanda já havia visto.  

-- Você não tem culpa de ter uma amiga tão idiota -- disse com certa tristeza.  

Alicia sorriu e balançou a cabeça não concordando com Fernanda.  

-- Tenho sim, era a minha obrigação manter a Natalia bem longe de você -- a médica manteve a voz baixa e suave. Mesmo assim, Fernanda percebeu que ela estava muito irritada -- Vamos voltar para o apartamento.  

Fernanda olhou-a em silêncio por alguns momentos. Seu lado racional dizia que não, mas seu coração gritava que sim.  

-- Olha, Nanda! -- disse, Alicia visivelmente constrangida -- Sei que as coisas não começaram bem entre a gente -- ela estacou -- Mas, podemos tentar novamente. Preciso da sua ajuda, você acreditando ou não, foi a escolhida pela Thais para chegar até a mim. Então, não posso permitir que se afaste.   

Fernanda baixou o olhar, incapaz de disfarçar a decepção. Não era uma declaração de amor, mas pelo menos sentiu-se importante.  

-- Eu deveria me sentir honrada, então.  

-- Deve -- ela sorria enquanto se aproximava -- Thais era uma pessoa maravilhosa e se ela a escolheu é porque conhece o seu coração bondoso.  

-- Hum, ainda não me acostumei com isso -- Fernanda deu um meio sorriso -- Sinto muito.  

-- Tudo bem! Eu compreendo perfeitamente -- sua expressão era suave, e Alicia simplesmente estendeu a mão para ela. Fernanda a pegou com os dedos trêmulos e começaram a andar -- Eu sou a sua guardiã, disse ela em tom de brincadeira -- Você vai acatar minhas instruções o tempo todo.   

Fernanda piscou e acenou com a cabeça.   

-- Sim, guardiã -- ela balbuciou, entrando na brincadeira.   

Alicia balançou a cabeça em aprovação.  

-- Agora vamos, tenho uma louca pra expulsar lá do apartamento -- ela pegou o cotovelo em um aperto gentil quando a guiou para o caminho de volta.  

Fim do capítulo