Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 21 

Alicia saiu do Albergue o mais rápido possível, e ao se ver na calçada correu em direção ao carro. Seguiu pela avenida e ao chegar ao fim dobrou à direita, seguindo a rua à beira do mar. 

Seu coração batia furiosamente e sua garganta estava seca. Cléo apareceu do nada em sua porta, por que? Para que? Acreditava piamente que as pessoas entram em sua vida, geralmente, para suprir uma necessidade que você demonstrou. Elas aparecem como uma dádiva de Deus, para auxiliá-la e apoiá-la em momentos difíceis. Havia somente uma maneira de obter as respostas para essas indagações: Conversando abertamente com Cléo. E era isso que faria no dia seguinte. 

Virou à esquerda e seguiu pela avenida onde morava.  

Fernanda colocou as pizzas sobre a mesa e abriu o armário dos pratos. 

-- Você é muito lenta, Nanda. Se eu fosse você já teria agarrado a doutora. Oportunidade não faltou. 

-- Pra ser sincera não me vejo como uma mulher capaz de fazer com que a doutora se jogue aos meus pés, implorando para que eu me case com ela. Sou uma mulher comum não tenho nada que possa fazer com que Alicia se apaixone por mim. 

-- Verdade, agora que falou, eu observei melhor -- Suélen segurou o queixo e olhou-a pensativa -- O seu nariz parece uma chaminé, sua boca é idêntica a uma gamela e tem os olhos de coruja. Você não é feia, só foi mal desenhada. 

-- Você também não ajuda né, Suélen -- ela reclamou. 

-- Não desanime, minha ex-namorada é tão feia, que quando a gente terminava de fazer amor, eu pedia desculpa para a minha xoxota. 

-- Idiota! -- Fernanda pegou os talheres e ajeitou ao lado dos pratos. 

-- Idiota é você que fica falando essas besteiras. Você não precisa fazer com que a doutora se jogue aos seus pés, implorando para que se case com você. Antes de se tornar o seu amor, ela tem que se tornar a sua amiga. 

-- Amizade primeiro, amor depois? Será que isso pode dar certo? 

-- Eu sou sua amiga, por acaso você sente borboletas no estômago? Para uma pessoa merecer a nossa entrega amorosa tem que provar para nós que nos merece, e isso é demonstrado através de amizade, companheirismo.  

-- A Alicia já demonstrou tudo isso -- Fernanda disse, sorrindo. 

-- Então, é hora de atacar!  

-- Você é louca -- Fernanda caiu na gargalhada -- Não consigo fazer o tipo atirada. 

Foi a vez de Suélen cair na gargalhada. 

-- Tem certeza que não? Na primeira vez no hospital, apareceu pelada; na segunda vez, na pracinha, caiu por cima dela; na terceira vez, aqui no apartamento, desmaiou no colo dela. Se isso é não ser atirada, imagina o que é ser atirada! 

As duas acabaram rindo juntas do comentário. 

Alicia foi para casa, absorto em seus pensamentos, mas quando chegou e viu Fernanda e Suélen conversando na cozinha, imediatamente voltou à realidade.  

-- Desculpa a demora -- ela disse, jogando a chave do carro sobre o armário -- Vocês devem estar loucas de fome, não é mesmo? 

-- Um pouco. Sentem que eu sirvo vocês -- Fernanda distribuiu uma fatia para cada uma -- Pena que o Cléo não ficou, ele é tão divertido. 

-- Eu gosto muito dele -- comentou Suélen, colocando um pedaço de pizza na boca -- Hummm... Pizza é igual sex* quando é bom é bom, quando é ruim ainda é bom. 

-- Como você tem a mente poluída, Suélen -- disse Fernanda, sorrindo. 

Alicia se levantou e andou até o pequeno bar para pegar uma garrafa de vinho.  

-- Nós vamos beber vinho, não é mesmo, Suelen? E você, Nanda. O que vai querer para beber? -- ela perguntou olhando para o rótulo da garrafa de vinho -- Hum, é da melhor safra -- ela disse, pegando o saca-rolhas.  

Fernanda olhou primeiro para Suélen, depois para Alicia. 

-- Como assim: o que vai querer para beber? Vou beber vinho com vocês -- ela olhava sem piscar para os olhos verdes que a encaravam. 

-- Vai não! -- Alicia colocou a garrafa de vinho sobre a mesa e foi até a geladeira -- Você tem as seguintes opções: Suco de laranja, suco de maracujá e refrigerantes, é só escolher.  

-- Por que isso? -- Fernanda arregalou os olhos.  

Alicia afastou-se para pegar as taças e voltou-lhe as costas.  

-- Você passou por um transplante e está tomando um medicamento derivado do colesterol, ou seja, tem muita gordura e é metabolizado de forma mais lenta. A bebida pode atrapalhar o efeito esperado pelo médico. Os imunossupressores também têm efeito anti-inflamatório e a bebida aumenta a eliminação do medicamento pelo corpo, o que acarreta em diminuição do seu efeito. Pode haver uma sobrecarga do fígado já que a bebida e o medicamento vão ser metabolizados no órgão. 

-- Como sabe disso? -- Fernanda encarou-a por um longo tempo. 

Alicia sorriu, os olhos verdes cheios de ironia. 

-- Sou médica, esqueceu? -- ela comentou com um levantar de sobrancelhas sardônico -- E a cicatriz que você tem no peito é bem charmosa. 

Ondas de vergonha passaram por suas veias, avermelhando seu rosto e pescoço. 

-- A doutora é bem observadora. 

-- Tarada, é a palavra mais apropriada -- Suélen falou baixinho, para que Alicia não ouvisse. 

-- Então, vai beber o que? -- os olhos verdes luminosos se encontraram alegremente com os olhos castanhos de Fernanda, que pareciam arder em chamas. 

-- Qualquer refrigerante -- respondeu, contrariada. 

Alicia serviu as bebidas, depois levantou o seu copo para ver o líquido vermelho contra a luz. 

-- Essa noite está propícia para se beber. 

-- Também acho -- Suélen bebeu devagar -- Hum, que delícia! 

Elas comeram, beberam e conversaram longamente sobre diversos assuntos, mas evitaram falar de si mesmas. 

-- Esse vinho é extraordinário -- disse Suelen, balançando a taça. 

-- É um Vista do Chá Syrah 2014. Medalha de Ouro, considerado um vinho intenso e concentrado, têm taninos sedutores e bem equilibrados. 

-- Vocês estão me provocando -- a pulsação de Fernanda disparou descontroladamente quando Alicia se aproximou e colocou a mão sobre o seu coração. 

-- Seu novo coração é um guerreiro, passou por tantas adversidades nos últimos dias e está aí, firme e forte -- Alicia afastou-se bruscamente. Subitamente, uma onda de exaustão a invadiu e ela se encostou no balcão de pia. 

-- O que aconteceu? -- Fernanda perguntou, preocupada -- Céus, você está branca como papel. 

Tentando se recompor, Alicia sorveu metade do seu vinho em um gole e então olhou-a com os olhos verdes foscos. 

-- Está tudo bem! -- ela colocou a taça sobre a pia, deu alguns passos em direção a porta e se virou -- Vou para o meu quarto. Por favor, não se acanhem, sintam-se em casa -- pelo tom da voz, ela parecia estar muito abalada -- Boa noite. 

Confusa, Fernanda contemplou o fato estranho. Queria ajudar, mas Alicia novamente parecia se fechar em seu mundo. 

Suélen encheu novamente o copo antes de se levantar. 

-- O que aconteceu? Não entendi nada -- a moça deu um trago vigoroso em sua bebida. 

Fernanda deu um prolongado gole no refrigerante antes que conseguisse formular uma vaga resposta. 

-- Nem eu -- a psicóloga estava pensativa, teve a impressão de que Alicia sentiu algo muito forte quando a tocou, mas logo abandonou a ideia, acreditando que fosse coisa da sua cabeça -- Espero que ela fique bem. 

-- Vai ficar -- Suélen largou o copo na mesa e abraçou a amiga -- Preciso ir embora. 

-- Mas, já! 

-- Vou pra casa assistir o Flamengo ficar só no cheirinho novamente. 

-- Hum, então tá. 

Suélen foi até a porta e voltou. 

-- Você já decidiu o que vai fazer de agora em diante? 

Fernanda respondeu à pergunta dando de ombros. Ainda estava estudando as possibilidades. 

-- A única certeza que tenho é que não voltarei a morar com Salomão.  

-- Olha, se quiser pode vir morar com a gente. Conversei com a minha namorada e ela aceitou de boa.  

Fernanda abraçou com força sua grande amiga. 

-- Obrigada! Eu sei que posso contar com você. 

Suélen deu um passo atrás, olhou demoradamente para Fernanda e não gostou do que viu. O sorriso dela, sempre tão iluminado, estava ausente. 

-- O que foi? -- perguntou séria. Suélen estava realmente preocupada com a amiga. 

-- Não quero ficar longe da Alicia, mas também não quero ficar aqui em seu apartamento. Me sinto uma intrusa -- Fernanda forçou um sorriso murcho. Foi o melhor que conseguiu oferecer a amiga. 

Suélen olhou Fernanda nos olhos.  

-- Eu te entendo. Tem certeza que vai ficar bem? Estou preocupada com você.  

Fernanda sentia sua amiga observando-a. Suélen parecia que sempre tinha o poder de ler seus pensamentos.  

-- Besteira. Mais uma vez estou sentindo pena de mim mesma. Não se preocupe. 

-- Mesmo assim amanhã, depois do plantão, passarei por aqui. 

Suélen agachou-se para afagar a cabeça de Yuki que dormia em sua cama. O cachorro cheirava levemente a merengue de morango. Depois, beijou o rosto de Fernanda e foi embora. 

Uma vez dentro do quarto, Alicia sentiu seus joelhos começarem a tremer. Sentou-se na cama com uma sensação de vazio por dentro, cansada como se fosse muito mais velha e solitária como há muito não se sentia. Uma lágrima rolou dos olhos, molhando a face. Era a primeira vez que chorava depois do funeral de Thais. 

Ao pensar na rotina do hospital, nos cuidados com seus negócios particulares, nos compromissos no Centro Espirita, Alicia tinha o mau pressentimento de que falharia em alguma coisa. Ou em tudo. 

Thais sempre cuidava de tudo, ela era perfeita. Lá no fundo, sabia que sozinha, não conseguiria vencer os obstáculos. 

De repente, lembrou de Fernanda. Por que o seu coração bateu tão rápido e repentino com um simples toque em seu peito? Recordou a eletricidade entre elas e a onda de desejo que percorreu seu corpo. Ela havia desejado Fernanda?  

Uma hora da madrugada e Fernanda ainda não havia conseguido dormir. Andava de um lado para o outro do quarto, com os pés descalços sobre o tapete que cobria o porcelanato luxuoso. O desejo ardia dentro dela impiedosamente. Era muita sacanagem morrer de sede sabendo que do outro lado da parede havia um oásis maravilhoso.  

Deitou novamente na tentativa de relaxar, mas estava tão cheia de desejo que seu corpo pulsava. Tinha que apagar aquele fogo que queimava por dentro. Deixando sua imaginação tomar conta de tudo, levou as mãos a barriga e foi descendo até o centro de sua feminilidade.  

-- Alicia, ah, Alicia. Você é demais! -- Fernanda gem*u e começou a se contorcer, mas de repente -- Droga! Não consigo -- ela se levantou, saiu do quarto e foi parar em frente a porta do quarto de Alicia. Ameaçou bater, mas desistiu -- E agora, o que eu digo? Talvez: Estou queimando de febre por dentro. Não, isso não. Talvez: Estou tão carente! Isso é ridículo, vou ficar parecendo uma ninfeta. Estou louca de te... 

Alicia abriu a porta fazendo Fernanda dar um pulo para trás. 

-- Nanda? O que faz aqui? Pensei que já estivesse dormindo! -- a médica olhou-a de alto a baixo, revelando sua admiração. 

Envergonhada, Fernanda corou, colorindo suas pálidas bochechas.  

Fim do capítulo