Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 18 

Alicia a amparou antes que caísse. Com ela nos braços, dirigiu-se para o sofá. Ela aconchegou Fernanda de encontro ao peito e passou a mão pelo seu rosto. O cheiro do perfume Love in white invadiu o apartamento. Era bom demais.  

Trêmulas, as pálpebras de Fernanda entreabriram-se. 

-- O que aconteceu? -- ela se remexeu, assustada.  

-- Você desmaiou, mas não se assuste. Está tudo bem agora -- Alicia explicou. 

Fernanda encostou a cabeça no queixo dela e, ainda meio ofegante, respirou fundo. 

-- Foi como se eu estivesse morrendo -- murmurou -- Tudo estava girando. 

-- Calma! -- os braços de Alicia a rodearam -- Está tudo bem agora. 

O corpo de Fernanda colou-se ao dela. Os braços de Alicia a segurá-la com gentileza, acariciou as suas costas. Há tempos não era abraçada assim, com tanta maciez. Amor era a única explicação para as sensações que a invadia. Fechou os olhos e se aninhou ainda mais.  

-- Você está bem?  

-- Impossível não ficar! -- respondeu sem pensar e logo se arrependeu. Meu Deus! Retesou-se e recuou. Alicia acharia que ela estava dando em cima dela? -- O que quero dizer é que é impossível não ficar bem, sendo atendida por uma médica particular. 

Alicia deu uma gargalhada. 

-- Confessa, você estava louca para desmaiar em meus braços. Não é mesmo? -- ela indagou em tom divertido.  

-- Ah, sua convencida -- Fernanda deu um tapa de leve no ombro dela -- Saí rápido demais do elevador e tudo girou, só lembro de ter apertado a campainha. Muita agitação. Ou talvez ar quente e abafado demais. 

-- Na maioria das vezes, os desmaios não indicam doenças graves. Mas, em algumas situações, ele pode ser um sintoma de um problema de saúde sério. De qualquer forma, os desmaios devem ser motivo para uma consulta médica, principalmente se acontecem episódios recorrentes, mais de uma vez por mês. 

Fernanda fitou-a nos olhos e meneou a cabeça.  

-- Você tem razão. Mas estou me sentindo bem agora, o mundo parou de rodopiar. 

-- Que bom! -- disse Alicia baixinho próximo ao ouvido de Fernanda. A médica ainda tinha alguma dificuldade em ajustar-se à presença de uma outra mulher em seu apartamento. Sentia-se como se estivesse traindo sua amada Thais -- Por que não tomamos um café da manhã reforçado? --perguntou, de súbito, interrompendo o curso dos pensamentos. 

-- Não costumo comer nada pela manhã. 

-- Abra uma exceção -- Alicia se levantou e pegou-lhe a mão -- Venha. Você precisa se alimentar. O nosso cérebro precisa receber energia para funcionar, essa matéria-prima vem dos alimentos que nós consumimos e este órgão não tem capacidade suficiente para armazená-la, nem para aproveitar o que foi consumido há mais de três horas. Por isso precisamos recarregá-lo constantemente. 

-- Essa é a médica Alicia falando? 

-- Não. Essa é a amiga Alicia falando -- ela disse, sorrindo. 

Fernanda não pôde deixar de admirar aquele sorriso com covinhas que emolduravam o seu rosto. Observava fascinada cada gesto calmo e elegante dela. Não havia se enganado, Alicia é um doce, amável e meiga. 

A médica conduziu Fernanda até a cozinha. Depois de acomodá-la na cadeira pegou duas xícaras e aproximou-se da cafeteira. 

-- Desculpa, não sou muito boa na cozinha. O especialista em café é o Cléo. Ele também é especialista em limpar... bem, deixa pra lá -- ela acrescentou, com uma pequena risada -- Tenho empadinhas, você gosta? 

Como uma criança gulosa, os olhos de Fernanda brilharam ao ver o salgadinho. 

-- Eu amo empadinhas!!! 

Alicia ergueu as sobrancelhas. 

-- Sério? Poxa! -- ela usa o mesmo perfume que Thais usava, gosta da música Trem Bala, ama empadinhas... O que mais ainda há por vir? Alicia esfregou as têmporas e respirou fundo. O destino era dono de grande senso de humor. Mas ela não achava a menor graça. Pensou. 

Em silêncio e confortavelmente sentadas nas cadeiras, as duas tomavam o café e comiam suas empadinhas. Em certo momento, cheia de receios, Alicia descansou sua xícara no pires e fitou Fernanda nos olhos. 

-- Você não veio até aqui a essa hora da manhã apenas para desmaiar na minha porta. Não é mesmo? O que aconteceu? 

Fernanda bebeu metade da xícara num só gole e apreciou o calor da bebida descendo pela garganta. Havia agido por impulso e agora estava arrependida. Talvez não tivesse sido uma boa ideia ter batido à porta do apartamento da médica. Estava envolvendo-a em um problema que era só seu. 

-- Eu peço desculpas, não devia ter vindo. Nos conhecemos a poucos dias e já estou batendo à sua porta como uma louca varrida pra te encher o saco. 

-- Não se preocupe com isso. Pode falar, eu quero ouvir -- Alicia riu e serviu-lhe mais um café -- É bom ouvir os vivos de vez em quando. 

-- Hã? -- Fernanda franziu a testa, como se não houvesse entendido. 

-- Nada, nada. Fala -- ela balançou firmemente a cabeça.  

Constrangida, Fernanda aprumou os ombros. 

-- Lembra que contei que sou noiva e que o meu noivado estava indo de mal a pior? 

-- Sim, lembro. 

-- Terminei o noivado hoje de manhã -- abaixou a cabeça e por alguns instantes ficou olhando para as sandálias simples, que ao sair as pressas de casa, não teve tempo de trocar -- Meu noivo, reagiu de forma inesperada. 

-- Conte-me sobre o seu noivo -- pediu, Alicia. 

-- Salomão? -- voltando a olhar para Alicia ela sorriu, de uma forma tão triste que a médica achou difícil não sentir vontade de abraçá-la -- Salomão sempre foi um homem muito bom. Companheiro e compreensivo. O fato é que do dia pra noite deixei de amá-lo. Não consigo mais retribuir a ele todo o amor que tenho recebido -- revelou torcendo para que Alicia não a julgasse uma ingrata -- Sinto-me tão mal por não o amar mais. 

Alicia voltou-se para Fernanda com uma expressão serena: 

-- Não se preocupe, Fernanda, não foi culpa sua -- disse Alicia num tom suave, empurrando a cadeira, aproximando-se e pondo a mão no braço dela, bem de leve. Fernanda sentiu-se mergulhando nas profundezas daqueles olhos -- Não mandamos no coração, infelizmente não controlamos os nossos sentimentos. 

-- Parece que o novo coração... -- Fernanda parou de falar ao ver Cléo entrando na cozinha. 

-- Posso entrar? -- ele perguntou da porta. 

-- Entra -- disse Alicia, tomando um gole do café. 

-- Tem certeza que posso entra? -- ele insistiu. 

-- Claro que tenho. Por que não teria? -- ela replicou, irritada. 

-- Sei lá o que pode estar rolando. Sabe que não gosto de ser empata foda -- disse com a voz fanha, 

Alicia ficou ligeiramente vermelha e arqueou a sobrancelha. 

-- Nem comece -- ela disse, se levantando -- Está resfriado? 

-- Estou. Essa noite foi uma tortura. Vira pra um lado da cama e entope o lado esquerdo do nariz, depois vira para o outro lado e entope o lado direito do nariz, deita de barriga pra cima e entope os dois buracos do nariz, vira de barriga pra baixo e começa a escorrer. 

-- Ahhh, tadinho! -- disse Fernanda, compadecida. 

-- Estou muito mal -- choramingou -- Dor de cabeça, corpo dolorido... 

Alicia balançou a cabeça. 

-- Vou buscar um remédio para você. 

Assim que Alicia saiu, Cléo se virou para fitar Fernanda. 

-- Impressão minha ou você está arrastando asa para cima da doutora? -- ele sorriu, sem embaraço. 

Sentindo a garganta seca Fernanda teve alguma dificuldade para recuperar a voz. 

-- Você é bem direto, né! 

-- Comigo é jogo limpo, pingos nos i's e cara a tapa. Já pergunto na lata se vai rolar sex*. 

-- Esse assunto não lhe diz respeito -- Fernanda resmungou com incredulidade.  

-- Diz sim, eu sou o acompanhante de honra da doctor e me preocupo com ela -- ele sentou-se graciosamente na cadeira ao lado de Fernanda, cruzando as longas pernas com elegância -- Não sei que tipo de bofe é o seu noivo, mas chifre é igual diabetes, alguns morrem sem saber que tem, outros descobrem e passam a vida inteira controlando e tem os inconformados... 

Alicia reapareceu com a cartela de comprimidos.  

-- Tome dois -- ela disse de um modo gentil -- Você tem febre? 

-- Não -- ele engoliu os comprimidos que ela lhe colocou nas mãos. 

-- Quando cheguei você estava falando sobre inconformado. Quem está inconformado? 

-- Eu, estou inconformado -- Cléo disfarçou olhando para o prato com empadinhas -- Fui no médico com um problema no olho e ele disse que tenho um corpo estranho. Além de pagar uma fortuna pela consulta ainda sou humilhado. 

-- Será que dá pra falar a sério? -- pediu Alicia. 

Fernanda pegou uma empadinha, analisou, pensou, depois comeu  

-- Eu terminei o meu noivado, Cléo -- Fernanda disse, depois de um tempo. 

-- Jura? -- ele indagou obviamente surpreso -- E como o bofe reagiu? 

-- Salomão não lidou muito bem com a minha decisão. Ele me ameaçou, disse que, se eu não ficar com ele, não ficarei com mais ninguém. 

Havia medo naqueles olhos castanhos enquanto ela fitava Alicia com os lábios entreabertos. Quando falou, depois de engolir em seco, foi numa voz muito fina, o que deixou a médica preocupada. 

-- Essa frase é famosa e provavelmente dita a cada duas horas no Brasil. O feminicídio, é um ato com cargas inestimáveis de ódio, intolerância e irracionalidade. Mesmo que o seu noivo sempre tenha sido um homem bom e respeitador, vale a pena tomar cuidado. 

-- Também acho. Qualquer um pode virar um monstro quando provocado. Até eu, uma vez, fiquei virada no Jiraya. 

-- Você? -- Fernanda perguntou, incrédula. 

-- Eu mesma, lindona. Foi em um protesto na Bahia. Os policiais chegaram tacando spray de pimenta em nosso grupinho. 

-- E vocês? 

-- Levantamos o acarajé. 

Fernanda e Alicia se olharam atônitas. Cléo se levantou, escancarou a porta e saiu esbanjando exageros ao andar. 

-- Que louco! Não dá pra conversar com ele. Só fala abobrinhas -- Alicia balançou a cabeça e sorriu -- O que vai fazer agora? Não está pensando em voltar para o apartamento. Não é mesmo? 

-- Não, não! Eu vou para a casa dos meus pais.  

-- Hum, então tá -- Alicia a observava atentamente -- Tem certeza que é isso mesmo que você quer? Olha que é uma decisão muito importante! 

Fernanda se levantou da cadeira, decidida. 

-- Absoluta, certeza -- virou-se para ir embora, mas ainda acrescentou -- Não vai ser nada fácil a conversa com meus pais, mas não desistirei. Não agora que tenho certeza do que quero. 

Alicia segurou a mão dela e levou-a até a porta. 

-- Você é muito corajosa -- a médica acariciou a sua mão e sorriu de modo tranquilizador -- Vou ficar torcendo por você. Até mais. 

Fernanda levantou os olhos para aquela linda mulher e sorriu agradecida. 

-- Obrigada, por ter me recebido. 

-- Não precisa agradecer. Você é sempre bem-vinda -- ela abriu a porta para Fernanda, dizendo: Então é isso, até mais, Fernanda. De novo -- sorriu sem jeito. 

-- Até -- inexplicavelmente, Fernanda sentiu-se solitária e sem vontade de ir embora. 

-- Ah, espere -- Alicia colocou a mão no ombro dela na hora que ela ia se virar -- Será que posso levá-la até a casa dos seus pais? 

Fim do capítulo