Capítulo 09

Pov Milena

A primeira sessão de quimioterapia já tinha ocorrido e os cabelos sedosos de Mirela agora era um amontoado sem vida e que caíam a cada segundo em suas mãos ao pentear ou no travesseiro quando ela descansava. Eu já tinha ouvido falar que a quimioterapia causava muitas reações, mas nunca pensei que fosse tão rápido e tão devastador daquela maneira.

   - Milena... – Mirela sussurrou, - me ajude a levantar, por favor, estou sem forças...

Meus olhos marejaram. Nunca vi Mirela daquele jeito e também nunca tinha lhe ouvido pedir, por favor, com tanta sinceridade. Disfarcei as lágrimas e levantei da poltrona que eu estava e segurei sua mão, apoiando-a depois em meu ombro. Era avassaladora aquela doença, Mirela estava magérrima, seu rosto macerado era como se estivesse envelhecido vinte anos em um mês. Ela voltou para a cama depois de usar o vaso sanitário e eu a ajudei a deitar-se. Eu tinha deixado o escritório por conta do meu sócio e amigo, agora o que mais me importava era minha irmã. Depois de um copo com suco, Mirela adormeceu e eu segui para o jardim, precisava respirar um pouco. Talvez precisasse rezar, queria uma resposta do grande Senhor do universo, desejava entender o motivo de tudo aquilo. Fechei meus olhos depois de mirar a imensidão celestial. Chamei Deus, indaguei... silenciei... Mas Ele não me respondeu. Abri meus olhos e fiquei ali contemplando o céu, sentindo uma brisa morna me envolver e trazer o cheiro de Fernanda que caminhava devagar em minha direção.

   - Posso me sentar ao seu lado?

   - Sim.

   - Não pode continuar fugindo assim de mim, a doença de Mirela não é nossa culpa...

   - Eu sei disso, nunca em momento algum atribuí isso a nós...

   - Então por que me evita? Não quer mais falar de nós, Milena eu amo você e nada mudou por conta do Mirela está vivendo...

   - Eu sinto muito Nanda, mas não posso dizer o mesmo, sigo amando você, porque isso eu não consigo mudar, mas não posso mais viver esse amor... com licença, eu preciso voltar para perto dela...

   - Espere Milena, por favor, olha eu sei que para você tudo isso é muito difícil e entendo, mas o fato de Mirela está doente não muda em nada a minha decisão, eu vou me divorciar dela...

   - Quanto a isso eu não posso fazer nada, mas não posso seguir ao seu lado, Mirela é minha irmã e precisa de mim. Nanda eu seguirei amando você, isso eu não posso mudar...

   - Então por que se punir dessa maneira? Milena olhe para mim, - e ela ergueu toque em meu queixo erguendo o até a altura do seu olhar, - você não está fazendo nada de errado, foi Mirela que fez tudo isso, foi ela quem provocou toda essa situação...

   - Talvez você tenha razão, mas eu não posso seguir com você enquanto minha irmã estiver assim.

   - O que vai esperar? Que ela morra?

   - Não fale isso... Nanda desculpa-me, com licença.

E saí deixando Fernanda sozinha sem lhe dar mais tempo para contestar. Estava cada dia mais difícil ficar ali na casa de Mirela, vendo Nanda todos os dias e imaginei que talvez fosse melhor contratar uma cuidadora.

   - Mirela... como se sente? – eu indaguei ao adentrar o quarto. Os olhos verdes e brilhantes de outra estavam opacos quando ela os abriu e me cobriu com eles.

   - Com dor...

   - Eu preciso lhe falar... vou conversar com Fernanda e vamos contratar uma enfermeira, uma cuidadora eu acho para ficar aqui com você. Eu estou com muitas coisas acumuladas no escritório e Jerônimo sozinho não está conseguindo, mas venho sempre, está bem?

 Os olhos dela marejaram e percebi o esforço que Mirela fez para não deixar as lágrimas descerem e os fechou por alguns segundos. Senti um aperto no peito, sabia que para ela estava sendo muito difícil, seria para qualquer pessoa, mas acho que para Mirela era ainda mais. Sua imagem antes tão altiva era hoje a sombra do que tinha sido. E seus cabelos lisos e sedosos haviam sido raspados por uma cabeleireira que eu conhecia. Era quase impossível reconhecer a minha irmã gêmea naquela mulher de olhar opaco, rosto macerado e careca, tudo isso me fazia sofrer muito e por mais que eu desejasse ficar ao seu lado, eu tinha minha vida que estava parada e o amor que sentia por Fernanda me fazia temer a proximidade que estava entre nós.

   - Eu entendo... – foi o que ela disse. Nessa noite mesma eu fui para o meu apartamento. Abri a porta e segui para o meu quarto e depois de despir-me fui ao banheiro. Liguei o chuveiro e uma água morna acariciou o meu corpo me enchendo de prazer. Eu fiquei ali por minutos seguidos, depois desliguei o chuveiro e enrolei-me numa toalha felpuda. O som da campainha fez com eu vestisse uma roupa qualquer.

   - Entre, - era Helena, o aconteceu alguma coisa? Venha sente-se, desculpa a minha indelicadeza. – ela sentou-se. – Deseja algo para beber?

   - Não, obrigada. Milena eu quero incomodar você, mas preciso muito conversar...

   - Oh, por favor, você não me incomoda, fique tranquila. Vou fazer um chá, eu acho que vamos precisar.

Helena consentiu com um menear de cabeça e eu segui para a cozinha voltando alguns minutos depois com duas xícaras de chá de hortelã.

   - Obrigada, - ela disse e fomos tomando o chá devagar, e isso ia nos refazendo. Depositamos as xícaras numa mesinha de madeira que tinha ao lado do sofá e ela começou a falar timidamente.

   - Eu sei que você sabe de toda a história, ou pelo menos boa parte dela, eu... errei muito... no começo quando conheci a sua irmã, eu a seduzi porque sabia que era esposa de Fernanda Valadão, uma mulher rica. Então fui conseguindo pequenos mimos, discretamente para que Mirela não notasse. Fernanda descobriu sobre nós e me ofereceu dinheiro, eu aceitei, nunca tive muito e o emprego que tenho não dava para viver como eu gosto ou gostava... Mas a verdade é que fui me envolvendo com Mirela, sei que ela não vai acreditar nisso, mas eu me apaixonei por ela, Milena. E quando a Fernanda contou para ela a verdade sobre mim, me senti um lixo humano, se é que você me entende.

Helena narrava a sua história e eu não podia julgá-la, ela tinha errado, Mirela também e eu também. Jamais deveria ter aceitado mentir para Fernanda me fazendo passar por Mirela, mesmo por amor, isso não justificava. Tínhamos todas, errado. E Helena estava ali diante a mim expondo-se, despindo-se como eu havia feito com Nanda durante a viagem. Meus olhos cobriam seu rosto bonito e ela continuou envergonhada.

   - Mirela não quer minha companhia, mesmo me amando e eu queria muito poder fazer algo por ela, mesmo que não seja muita coisa... queria está com ela nesse instante, cuidar dela...

Naquele instante eu tive uma ideia e sorri. “Oh não, melhor não,”

   - Por que sorriu? Falei alguma besteira?

   - Não, por favor, não foi isso. É que pensei em algo, mas é melhor deixar para lá...

   - Fale Milena, eu peço, por favor, fale...

   - Decidi com Mirela que eu voltaria para a minha casa, que Fernanda contrataria uma cuidadora ou enfermeira, não sei ao certo, Nanda arrumou e eu, claro, vou todos os dias visitar Mirela, mas não desejo ficar mais lá...

   - Eu entendo que para você não é fácil...

   - Não é, mas isso não importa agora.

   - Você pode ligar para Fernanda vir aqui? Acho que captei o teu pensamento, - ela disse isso e riu, - e vale à pena tentar.

Fernanda adentrou meu apartamento e me abraçou com desespero beijando meus lábios com sofreguidão, fazendo com as minhas resistências fossem por terra por alguns instantes. Com delicadeza me desvencilhei dos seus braços e foi quando ela avistou Helena.

   - O que faz aqui?

   - Helena veio conversar comigo, sente-se, por favor, Nanda. Depois que me contou que apesar de ter aceitado o dinheiro que você pagava para a sedução de Mirela, ela se apaixonou. Quer o perdão de Mirela e sei que minha irmã não o dará assim tão depressa, pensei que pudéssemos dar uma ajudinha... – eu disse isso e sorri. – Mirela está com uma cuidadora e talvez, pudéssemos substituí-la por Helena, que com certeza fará bem melhor esse trabalho, afinal ela é enfermeira... não é verdade Helena?

   - Sim, faço alguns trabalhos e posso cuidar de Mirela, Fernanda...

   - Tem certeza disso? E como se ela não lhe perdoou e nem quer a sua presença?

   - No começo posso usar um disfarce, depois com o tempo, eu irei conseguir que ela me perdoe, preciso tentar...

Fernanda ficou calada por alguns segundos, depois dirigiu seu olhar carregado de amor para mim fazendo meu coração acelerar e disse:

   - Você acha que isso vai dar certo, meu amor? Se Mirela perdoar Helena, então ficaremos livres...

   - Eu acho que podemos tentar... Acredito que a presença de Helena e os seus cuidados possam amolecer o coração de Mirela, porque ela ainda a ama e está magoada, mas o tempo se encarregará disso.

   - Está bem, se você acredita nisso eu também vou acreditar. Helena, nós vamos combinar um valor para o seu serviço...

   - Não precisa...

   - Então sem acordo, - Nanda disse, - o trabalho que você fará é importante e eu sei que precisa ser remunerada para sobreviver, aceite, porque esse é de forma honesta...

   - Fernanda tem razão, Helena, você estará trabalhando e doando seu amor, seu tempo, é mais do que justo que receba por isso.

Fernanda pesquisou algo em seu celular e finalizou.

   - O valor de mercado será dobrado, pois acho que ficará mais tempo do que o normal, depois se tudo isso der certo, nós poderemos ver algo para você no hospital de um médico conhecido, caso você deseje, claro.

   - Sim com certeza, Fernanda, se Mirela me perdoar eu quero seguir novos rumos...

   - Eu fico feliz e torço para que ela lhe perdoe, assim seguirei em paz com Milena, - ela disse isso e me cobriu novamente com aquele olhar carregado de amor.

Era muito difícil lutar para não amar aquela mulher, mas eu não conseguia seguir ao seu lado, esquecida do sofrimento de minha irmã. Eu não podia e mesmo que eu quisesse, não conseguiria.

Helena estava radiante com a possibilidade de cuidar de Mirela e quem sabe... resgatar o seu amor. Eu também torcia por isso. Helena se despediu. Fernanda me abraçou. Meu corpo estremeceu dentro daquele abraço e meus olhos marejaram quando os dela me buscaram.

   - Sente-se aqui, - ela disse me conduzindo para o sofá. Eu me acomodei depois que lhe ofereci algo para beber.

   - Aceito uma taça de vinho e desejo que pare de fugir de mim.

Eu busquei um vinho. Servi duas taças e brindamos, sim, à vida e ao nosso amor, ela disse, mesmo que não possamos vivê-lo, por enquanto, - ela frisou.

   - Milena, eu a amo, sim, de verdade. Um dia amei muito a sua irmã, achei que seria para sempre, sim, eu fiz um juramento. E hoje confesso que casar e jurar perante um grupo de amigos e um juiz, talvez seja verdade mesmo, mas naquele momento. O tempo passou, sua irmã mudou logo no começo do nosso enlace, mas não quero falar mal dela, não. Mirela me deu o que tinha, aprendi isso com o tempo e com as sessões de terapia. Com os dias, meses e anos e com a ajuda da terapeuta eu fui entendendo que ela não me amava e que eu precisava me libertar daquela dependência emocional.

Ela parou um pouco, sorveu um gole de vinho, olhou-me detidamente nos olhos e continuou.

   - Eu sofri muito, eu a amava ou sei lá o quê... mas o tempo foi me curando. Quando eu descobri a trama de Mirela, eu poderia ter impedido, é óbvio, mas eu não quis.

   - E por quê? – eu indaguei.

   - Eu queria ter você na minha casa, queria saber o que você desejava aceitando isso, queria saber se Mirela estava lhe fazendo algum mal... queria entender...

Fernanda sorveu mais um gole de vinho e se serviu de mais uma taça. Eu a ouvia quase que hipnotizada. Sorvi um gole da bebida e senti um calor delicioso percorrer meu corpo com a proximidade da mulher amada.

   - Eu já não amava mais a sua irmã, isso era constatado pelo meu coração. Sua chegada a minha casa me devolveu o desejo de amar de novo, mesmo depois de tudo que Mirela me fez. Eu não sou covarde, Milena, não temo o amor, temo o desamor, o coração árido e a vida amarga. Eu sei que você não é a Mirela e que nenhuma mulher é igual à outra. No começo desejei lhe punir, como lhe falei, mas a nossa primeira noite de amor eu desmanchei meus planos e dei asa ao que a vida me dava. Entendo que queira cuidar da sua irmã, sim, é um direito seu, mas eu vou me divorciar de Mirela de qualquer maneira. Milena eu não me submeter a viver com alguém por pena ou qualquer outro sentimento que não seja, amor, você me entende?

   - Sim... eu... não...

   - Eu sei que você não pode, agora, mas isso vai passar. E eu vou esperar por você, porque sei que me ama.

   - Sim, eu te amo...

Ela tomou meus lábios e me beijou. Senti minha força falhar e não relutei.

   - Isso vai passar, e vamos ficar juntas...

Fernanda me beijou novamente e seguiu para casa. A noite estava amena e uma brisa suave adentrou a janela do meu quarto e era como se ela falasse de Esperança. Adormeci com o perfume amadeirado de Fernanda em minha roupa.

Fim do capítulo