Capítulo 35 - Alguém que eu não conhecia: Parte II
As luzes daquele Hospital, que Helena visitara algumas vezes, pareciam diferentes naquele dia. Aos pés da escadaria do segundo andar, a estudante conversava com o obstetra, enquanto seu olhar periférico observava seu pai sentado em uma das cadeiras, com as mãos no rosto, as vezes esfregando o próprio cabelo grisalho bagunçado. Olhou para o relógio no pulso de Heveraldo, e lembrou de quando tinha sete anos e o escondeu debaixo do sofá só por brincadeira. Retomou o olhar para o médico quando começou a entender os termos.
“...Bem, logo nos primeiros meses vimos que a placenta se situava sobre o colo do útero então houve a indicação de parto cesariano. E assim o fizemos. A ruptura uterina é algo raro de se acontecer. Eu acabei de conversar com seu pai a respeito, expliquei sobre a complicação. Entendo que vocês estão em um momento de tensão e é difícil compreender. Conseguimos retirar os bebês mas não pudemos conter a hemorragia, tentamos realizar uma histerectomia de emergência mas, infelizmente-”
“Espera.. ruptura uterina? Ela tinha alguma cicatriz prévia de alguma outra coisa no útero?” Helena interrompe, mantendo a calma.
“Cicatriz? Não. Nenhuma outra cesárea no histórico. Não tínhamos como prever. É um caso extremamente raro, mas não impossível.”
Helena olhou mais uma vez para seu pai e suspirou. Com tal silêncio, o médico achou melhor se afastar e deixar a família absorver. A garota se aproximou do pai, enquanto Franciele acalmava seus ex sogros ao lado de Marco, que parecia assustado com toda situação.
“Nós tínhamos planejado a volta para casa... nós voltaríamos, o quarto dos bebês já tinha sido pintado, nós pintamos de amarelo porque ela não queria nada estereotipado...” Entre soluços e tentativas frustradas de limpar as lágrimas correntes, o pai de Helena desabafa .
“Tudo bem, pai.” Helena afaga as costas do pai com carinho, como se todos aqueles meses afastada não tivessem existido. “Eu cuido do resto. O senhor está cansado, volte para casa, vai dormir um pouco. Vovô, vovó e eu cuidamos de tudo.”
“E os pais dela nem puderam vir, eles chegariam amanhã... agora tenho que falar isso... e as crianças? Meu Deus, eles mal chegaram ao mundo e nem têm mãe... como vou fazer isso sozinho? Eu nem conseguia trocar suas fraldas!”
“Pai, vai descansar, de verdade.” A garota nunca tinha visto o pai chorar tanto.
“Eu não posso, eu não posso.” Heveraldo respira profundamente e engole o choro.
“Então vamos comigo para a maternidade.” Helena pega a mão do pai e eles saem dali por um instante.
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Anna Júlia terminou uma petição judicial bem a tempo do final de expediente, que já terminava normalmente mais cedo aos sábados. Foi entregar uma papelada no Fórum e aproveitou para almoçar no restaurante ao lado. Enquanto almoçava, resolveu relutantemente se aventurar no universo do online dating. Percorreu perfis masculinos e femininos, mas um lhe chamou atenção. Na foto, um garoto de cabelo bagunçado e barba rala parecia ter acabado de sair do Ensino Médio, apesar de constar, no perfil, ser um pouco mais velho do que a jovem advogada. Na mesma imagem, o garoto parecia estar ao lado de uma prateleira com diversas miniaturas de personagens dos mais diversos desenhos, quadrinhos e filmes. Seria o clássico garoto que perguntaria ‘Marvel ou DC?’ em um primeiro encontro. Uma descrição engraçada, ligeiramente inteligente. Um aviso no final. Um emoji com uma bandeira que Anna Júlia já havia visto uma vez, publicada por Dante em outra rede social.
‘Confesso que adorei a miniatura de Hulk e de Capitão América na sua prateleira! Precisava dizer isso antes de dizer olá, hahaha...’ Anna puxa conversa com o desconhecido.
‘E antes que eu responda seu olá com um básico oi seguido da pergunta clássica tudo bem? eu preciso comentar que adorei o Vade Mecum na prateleira da estante na sua terceira foto. Presumo que seja estudante de Direito?’
‘Estudante não, já sou formada hahaha... e respondendo ao clássico tudo bem, estou bem sim, e você?’
‘Formada? Não é possível... você não parece ter mais do que 20 anos!’ O rapaz responde, incrédulo.
‘Eu? Bem, você viu minha idade no meu perfil e ela é real... mas é você que tem cara de não ter nem 18! Aposto que mal começou a faculdade hahahah....’ Anna Júlia provoca.
‘Pois a senhorita vai se surpreender ao saber que acabei de defender minha tese de mestrado LOL!’
‘Sério? Sobre o quê?’
‘Projeções analíticas da computação quântica na programação de jogos eletrônicos da geração Z. Está no banco de dados da Faculdade da cidade, se quiser conferir.’ O rapaz responde.
Anna Júlia se impressionou ao ler o título e resolveu abrir o site da Faculdade em que Lívia e Helena estudam para conferir o tal trabalho. No banco de dados, ela encontrou a defesa sob o nome de Antônio Bernardo Cecotti Duarte.
‘Acabei de checar aqui... e agora entendi porque seu nome no perfil consta como ABCD. Achei que fosse apenas por brincadeira hahahaha...’ Ela envia.
‘Então você foi mesmo ver se era verdade? Mas olha só que cética ela... lol, brincadeira. Está certa, tem que conferir mesmo. Se quiser saber mais sobre o assunto, poderíamos discutir a respeito hoje à noite em um jantar, o que acha?’
‘Está me chamando para jantar em menos de meia hora de conversa? Não perde tempo hein hahahah’
‘Se quiser eu espero mais uns quinze minutos para lhe chamar novamente... tempo é só uma dimensão atrelada ao espaço de qualquer maneira.’
‘Não precisa esperar... acredito que temos muito que conversar e um jantar seria perfeito. Tem um restaurante ao lado do Fórum que eu amo, inclusive acabei de almoçar nele enquanto percorria seu perfil. Posso lhe passar o endereço daqui a pouco e combinamos o horário, pode ser?’
‘Bem... se você garante que é bom, eu acredito. Fico no aguardo, Anna Júlia com dois N, igual do Los Hermanos.’ Antônio provoca ao repetir a exata frase que a garota colocou como nome de perfil.
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Helena foi com seu pai até a ala onde os recém nascidos ficavam, e, através do vidro, observaram os bebês.
“Já escolheu os nomes?” Helena questiona.
“Yasmin queria olhar para os meninos primeiro e decidir que nome combinaria com a carinha deles...” Heveraldo se segura para não chorar. “Eu estou completamente perdido. Não consigo nem pensar em nomes!”
“Que tal se um dos meninos tivesse o nome do vovô e o outro pegasse o nome do pai de Yasmin?” Helena sugere.
“Pensei a respeito... Horácio até combinaria, mas Jacobino... imagina o problema que esse menino vai ter nas aulas de Revolução Francesa...” O pai da estudante acaba rindo por alguns segundos.
“O pai dela se chama Jacobino?!” Helena não consegue acreditar. “E se fosse Horácio Neto e Heveraldo Júnior?”
“Os pais dela se sentiriam injustiçados da homenagem ser toda para o nosso lado.”
“E como se chama a mãe dela?”
“Flaviana Juliene. Sim, um tanto incomum também. Mas por quê?”
“Flávio Juliano? Soa parecido.” Helena sorri. “É o melhor que posso fazer...”
“Flávio e Horácio, então?”
“Parece que já não está mais tão perdido!” A filha sorri mais uma vez e encosta a cabeça no ombro do pai enquanto vê os irmãozinhos dormindo tranquilamente.
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O sol já havia desaparecido no horizonte há certo tempo, e Dante finalmente conseguiu chegar em Porto Alegre, mais especificamente no Jardim Europa, em uma casa de esquina cuja entrada parecia um castelo.
“Dante, por que raios você não me avisou que sua casa parece o palácio da rainha Elizabeth?!” Lívia, assustada, pergunta, enquanto sai do carro.
“Também não exagere, né Liv. É uma casa normal.” Dante também sai do carro e é recepcionado por um senhor de camisa social e calça jeans, que pega as chaves do garoto.
“Seu Luís, podes colocar as malas depois lá no meu quarto, por favor?”
“Pode deixar, meu querido.” O senhor responde, e cumprimenta Lívia com um sorriso.
“Você acaba de falar para não exagerar e vem um valet guardar seu carro?!” Lívia se surpreende.
“Não é valet, é o seu Luís, ele é esposo da nossa governanta, a dona Guilhermina, eles moram aqui com a gente.” Enquanto Dante responde, tira outra chave do bolso.
“Espera.” Lívia segura a mão de Dante e engole seco. “E se eles me odiarem? Pelo que você fala, seu pai parece ser bem severo, deve ser rígido e criterioso.”
“Relaxe, ele só é assim comigo porque é a forma dele de educar. Tu te surpreenderás.” Dante aperta a mão da namorada levemente, pisca e então abre a porta.
“Está tudo tão silencioso, você os avisou que chegaria nesse horário?” Lívia questiona.
“Avisei. Eles devem estar na outra sala.”
“Tem quantas salas aqui?” A namorada se surpreende.
“Vem comigo.” Dante caminha até a segunda sala onde, de uma velha jukebox, saía algum folk famoso de décadas atrás. Um copo meio cheio de um líquido turvo sob uma mesa de sinuca, enquanto a mãe de Dante tentava ensinar um passo de dança ao pai, que caía na gargalhada ao se perder.
“Dá para parar de me fazerem passar vergonha?!” Dante cruza os braços.
“Filhote!” A mãe de Dante, uma jovem senhora tão alta quanto o filho, interrompe a dança e caminha em direção ao filho para um caloroso abraço. “Essa deve ser a famosa Lívia, não? Prazer, Adelheid. Como vais?” Com dois beijos na bochecha, a Dra. Kohler-Simmel cumprimenta a nora.
“Prazer... e-eu vou bem. E a senh-” Timidamente, Lívia responde, mas antes é interrompida pelo pai do garoto.
“Pois vejam só! É uma honra tê-la em minha casa. Ricardo Alceu. Pode fazer piadas, seu sogro está Alceu dispor.” O sogro, também com quase dois metros de altura, pega gentilmente a mão da garota, curva-se e a beija, fazendo a garota rir. “Agora Dante tem um par para o baile de semana que vem.”
“Baile?!” Lívia questiona, confusa, enquanto analisa o casal e começa a entender o motivo de Dante ter a altura de um jogador de basquete.
“Pai, já disse que não vou, eu detesto isso.”
“É um baile beneficente que fazemos na casa de repouso em um distrito próximo aqui da capital. A maioria dos senhores e senhoras de idade ficam abandonados e não recebem visitas, então frequentemente fazemos eventos por lá.”
“Eles fazem um negócio desses quase todo mês. É só uma desculpa para o meu pai poder ficar bêbado e pedir minha mãe em casamento como se fossem dois jovens bobos. Toda. Vez. E os velhinhos aplaudem.” Dante revira os olhos.
“Como assim?! Você nunca me contou isso!” Lívia ri.
“Ele fala isso mas no fundo adora. As velhinhas vão endoidar quando verem que agora ele tem barba e a voz engrossou.” Adelheid comenta.
“Isso quando elas não me chamam de a garota que virou garoto.” Dante suspira, irritado, e prefere mudar de assunto. “Pai, falando em beber, o senhor não estava de plantão hoje?” Ele aponta para o copo sobre a mesa de sinuca.
“Aquilo ali é suco de maçã, e eu entro no plantão daqui a pouco. Estava só esperando para conhecer a tão famosa princesa paulista que meu pedaço de DNA tanto fala.” Ricardo sorri.
“Pedaço de DNA, que fofo!” Lívia acaba rindo novamente.
“Você não viu nada sobre os apelidos que demos para o Dan-dan.” Dr. Simmel ri. “E Dante, amanhã, sete da manhã quero lhe ver de pé. Quando sair do plantão, quero lhe ver na clínica sem falta.”
“Ricardo, amanhã não! Amanhã quero que ele vá com a namorada para a minha clínica. Faz meses que não vejo meu bebê, queria passar um tempo com ele e conhecer mais a namorada!” Adelhaid argumenta.
“Querida, ele me deve por causa do carro e temos vários prontuários para serem digitalizados na clínica.” Ricardo contra-argumenta.
“Parece até que estão disputando minha guarda.” Dante faz um sinal de negação com a cabeça. “Vamos sair daqui.” Sutilmente, ele puxa a namorada pelo braço e eles sobem para o quarto do garoto.
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Anna Júlia perdeu quase meia hora tentando escolher a roupa ideal. Trocou, tirou, colocou, tirou novamente, até que se contentou com uma blusinha de manga longa com um laço como detalhe na gola e uma calça skinny. Procurou a chave do carro e só então se lembrou que havia vendido. A moto dos sonhos ainda não havia sido comprada, então chamou um uber. Quando chegou, o rapaz já lhe esperava sentado à mesa, com uma camisa azul marinho que transpassava certa seriedade.
“Desculpe a demora, meu uber demorou, o trânsito também não ajudou e eu sou lerda para me arrumar.” Anna ri vergonhosamente.
“Bem, eu teria proposto em lhe buscar, mas assumo que seria estranho passar o endereço residencial a uma pessoa que você acabara de conhecer, então achei melhor não lhe assustar.” Bernardo responde gentilmente.
“Sim, eu entendo... “ Anna sorri e se senta do lado oposto ao do rapaz. “Mas me conte mais sobre você! Computação quântica?”
“Certo... bem, é só um nome bonito para projetos de design de jogos eletrônicos programados em computadores quânticos com certa esperança de que isso aconteça ainda na geração atual, ou geração Z.” O rapaz explica. “Mas é algo muito teórico. Por enquanto me contento em programar nos computadores clássicos mesmo.”
“Você programa jogos então?” Anna fica interessada.
“Sim, eu-” O rapaz é interrompido pelo garçom, pronto para atender aos pedidos, entregando os cardápios.
“Eu vou querer contra-filé na pedra ao alho com molho três-queijos.” Anna faz seu pedido.
“Ahm... vocês tem algum tipo de massa ou molho sem glúten e zero lactose?” Bernardo pergunta, meio sem jeito.
“É sério?” Anna arqueia uma sobrancelha, soltando a pergunta com um sarcasmo involuntário, querendo dar risada.
“Doença celíaca e intolerância à lactose.” Bernardo responde, encolhendo os ombros.
“Ah...” Anna não sabe onde se enfiar de tanta vergonha pela reação que expressou.
“Posso perguntar para o chef. Mas também oferecemos pratos de saladas bem variáveis e nutritivos, se o senhor quiser de entrada.”
“Tudo bem...pode ser essa numero 14 do cardápio.” O rapaz tenta sorrir desconcertado.
“Salada para a senhora também?” O garçom volta a perguntar.
“Sim, por favor. O mesmo pedido.” Anna concorda, e o garçom se retira. “Desculpa se pareci sarcástica, eu achei que você estivesse tentando ser engraçado, sabe como é...”
“Por que eu seria engraçado a respeito de doença celíaca?” O rapaz continua sério.
“Nada não.. deixa para lá.” Anna pigarreia. “Eu preciso ir ao banheiro rapidinho, com licença.”
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Dante e Lívia foram tomar um banho juntos para poder descansar da cansativa viagem. Logicamente, aproveitaram para trocar alguns beijos e carícias enquanto a água quente do chuveiro corria sobre os ombros do casal, e foi quando o celular de Dante tocou.
“Depois você atende, está tão gostoso aqui...” Lívia reclama, com os braços envoltos no pescoço do namorado.
“Tens razão.” Dante continua beijando o pescoço da namorada, mas o celular insiste em tocar.
“Esse som já está me irritando.” Lívia revira o olhar. “Coloca no silencioso para continuarmos.”
“É Anna Júlia.” Dante seca a mão e pega o celular. “Vai ver ela quer saber se chegamos bem.”
“Atende rapidinho e volta logo, vou aproveitar para lavar o cabelo então.” Lívia sugere.
“Alô?” Dante finalmente atende, enquanto usa uma toalha para se afugentar do frio.
“Alô? Dante! Desculpa lhe incomodar... assim...você está ocupado? Está dirigindo?”
“Não, já cheguei em casa... por quê?”
“É que assim, eu encontrei um cara trans no aplicativo, daí saí com ele, vim para o restaurante ao lado do Forum, sabe?”
“Sei. Mas aconteceu alguma coisa?”
“Não, digo... o encontro mal começou e já está sendo um desastre... e eu não tinha com quem conversar a respeito, achei que pudesse me ajudar...”
“Só porque sou trans eu tenho que saber tudo sobre como caras trans se comportam em um encontro?!” Dante fica confuso.
“Não! Ai, desculpa. Desculpa mesmo ter lhe ligado.”
“Relaxa! Não quis soar mal educado, é meu jeito. Eu que peço desculpas. Vamos ver... por que me disseste que o encontro estava desastroso? Tu disseste algo ruim?”
“Não, é que ele tem algumas restrições de dieta e eu não acreditei, ainda tratei com sarcasmo...”
“Amor, não vai voltar não?!” Lívia pergunta, ainda dentro do box.
“Já vou, amor! Então, Anna, trate como se fosse um homem qualquer, afinal ele é um homem como qualquer outro. Tudo o que queremos é sermos tratados normalmente. Não somos extraterrestres. Não precisas pilhar por causa disso. Se falares alguma bobagem, tente corrigir com alguma brincadeira e diga que tu já falaste isso com teu amigo que também é trans, provavelmente ele vai entender que tu estás tentando te adaptar. Agora eu preciso ir porque minha namorada está nua no chuveiro.”
“Tudo bem, vai lá esfregar sua vida sexual na minha cara.” Anna Júlia acaba rindo e encerra a ligação.
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“Então, qual é o feedback dos seus amigos a respeito de mim?” Bernardo sorri ao ver Anna Júlia voltar.
“Como assim?” A garota, meio confusa e perdida, indaga.
“Bem, você rapidamente correu para o banheiro após uma situação embaraçosa. Suponho que tenha mandado mensagem para algum dos seus amigos contando a história e eles devem ter dado alguma resposta a respeito.”
“Uau.” Anna Júlia pigarreia. “Bem... para falar a verdade eu liguei para um amigo. Não sabia o que fazer, eu me senti envergonhada e fui pedir um conselho.” A garota respira fundo após soltar toda a verdade. “Estraguei nosso encontro completamente, não foi?” Ela fecha um olho por um instante, como em uma piscada prolongada e aflita.
“Gostei da sua honestidade.” Bernardo sorri. “Não via alguém ser direta assim há muito tempo. E você não estragou. Eu acabei esquecendo de avisar sobre esse pequeno detalhe e deveria ter indicado outro restaurante, mas também não é algo que se diga nas primeiras horas de conversa.”
“O que você acha de sairmos daqui, irmos para aquela lanchonete do mercadão lá no centro e comermos um lanche natural lá? Pelo menos eu sei que eles vendem produtos sem glúten.”
“Não poderia ter sugerido opção melhor!” Bernardo completa. “Para sua sorte, trouxe um capacete reserva.”
“Tem moto?”
“Motocicletas são a minha paixão.” Ao responder, Bernardo percebe a mudança positiva na fisionomia de Anna Júlia.
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Já em casa, Helena arrumava algumas roupas em sua mala quando foi abordada por Laura.
“Obrigada por ter trazido o Marco... e nem sei o que dizer a respeito de sua outra madrasta... sinto muito.”
“Tudo bem, eu não a conhecia. Mas meu pai precisa de mim, vou passar uns dias com ele após o velório.” Helena comenta.
“Tem certeza? Heveraldo já tem bastante ajuda. Os pais de Yasmin já estão lá, e ele ainda tem Dona Alvina e outros empregados... você não precisa se preocupar, minha querida.” Laura tenta acalmar a enteada.
“São meus irmãos, Laura. Eles não fazem a menor ideia, mas acabaram de perder a mãe, e eu sei como é ter o seu Heveraldo como pai. Eles precisam de mim nesse momento.”
“Acho muito bonita sua atitude, minha querida.” Laura coloca a mão sobre o ombro da enteada, afagando gentilmente.
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“E me diz uma coisa, cerveja tem glúten, né? Como você sobrevive?” Já na lanchonete, saboreando quitutes da ala mais saudável, Lívia indaga o novo amigo.
“Se você quis perguntar como eu fico bêbado, vodka e gin não têm glúten.” Bernardo responde após limpar o canto da boca com um guardanapo.
“Você consegue captar minha mensagem sem eu precisar me explicar ou me embolar nas palavras. Fui com sua cara!” Anna Júlia ri, mostrando o dente sujo de um pedaço de alface do lanche.
“E já que estamos em uma onda de honestidade, tem um alienígena verde no seu dente.” Bernardo aponta para o próprio dente para sinalizar.
“Caramba!” Anna Júlia limpa rapidamente. “Nem sei o que dizer, se eu tinha alguma chance de lhe beijar hoje, depois dessa cena elas se foram.” A garota fica avermelhada.
“Até o fim da noite eu me esqueço dessa cena.” Bernardo brinca para não deixar a garota mais envergonhada do que já se encontrava.
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“Quer assistir a alguma coisa?” Dante, já debaixo das cobertas, alcança o controle remoto da televisão acoplada à parede de seu quarto.
“Na verdade eu quero continuar o que a gente não terminou no banho...” Lívia esfrega sua perna sobre a perna do namorado.
“Espera meus pais irem dormir e eu pego algumas coisas ali em cima do guarda-roupa.” Dante sorri maliciosamente.
“Para que esperar?” Lívia começa a provocar com pequenos beijos no queixo do rapaz.
O casal então ouve algumas batidas na porta. “Filho, desculpa se eu estiver interrompendo algum coito, mas eu ganhei da sua mãe no par ou ímpar e você vai para a minha clínica amanhã após meu plantão no hospital, ok?”
“Certo, pai. Até amanhã.” Dante responde e espera o pai se afastar. “Era por isso que eu estava esperando. Eu sabia que eles estavam debatendo isso até agora.” O garoto sussurra para a namorada.
“Reparei que seu pai não utiliza a segunda pessoa, ele não tem sotaque gaúcho...”
“Sim, eu já expliquei que ele não era daqui. Ele estudou na mesma faculdade que a gente estuda e depois veio para cá com a minha mãe, que já era natural daqui mas foi estudar por lá também, não lembra?”
“Verdade, você havia contado algo a respeito, tinha me esquecido. Agora vai pegar as coisas que estou curiosa.”
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Helena dirigia no meio da noite para a casa de seu pai quando seu celular tocou. Na tela principal, um número desconhecido.
“Alô? Quem é?” Helena atende.
“Alô? Helena? Oi... a gente tinha combinado de se ver hoje a tarde, você tinha me dado seu número logo cedo, e depois não apareceu, nem falou nada...” A voz do outro lado faz Helena relembrar seu compromisso.
“Ah!” Helena pigarreia. “Mil desculpas... Camila, certo? Nossa, desculpa mesmo, tanta coisa aconteceu hoje...”
“Tudo bem, não precisa pedir desculpas, só queria saber se estava tudo bem...”
“Sim, sim...digo... na verdade nem tanto... tive que buscar um dos meus irmãos que tem 13 anos e estava de ressaca, e meus outros dois irmãos gêmeos nasceram hoje. Minha madrasta infelizmente teve uma complicação e...”
“Ai meu Deus! Não acredito! E eu aqui reclamando, achando que você tinha me dado bolo... mas você está bem?”
“Estou sim... estou indo para a casa do meu pai, o velório será amanhã, mas vou auxiliar no que posso.”
“Tem algo que eu possa fazer para ajudar?”
“Bem...” Helena pensa um pouco. “Você poderia continuar conversando comigo. Preciso desabafar um pouco e eu ainda iria passar em um daqueles Carrefour Express 24hrs da Brigadeiro Luís Antônio.”
“Eu estou perto aqui da praça da Sé, se quiser eu pego o metrô e a gente se encontra lá! ”
“Tem certeza? Não fica fora de mão para você?” Helena pergunta.
“Lógico que não, eu já iria ali para a região do Paraíso mais tarde mesmo. Vejo você na estação Brigadeiro?”
“Encontro você lá. Beijão.”
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“Caramba!” Lívia se surpreende ao ver três malas no chão. Uma com um balanço desmontado, outra com o resto das peças do balanço desmontado, um chicote com alguns pares de algemas e uma terceira mala com o vibrador de controle remoto e bolinhas para pompoarismo. “A gente vai trans*r a noite toda. E isso não é um pedido.”
“Tu sabes que a gente tem que estar na clínica às sete da manhã, né? E eu estou exausto da viagem. Queria te comer até o amanhecer, mas meu corpo vai acabar entrando em colapso.” O namorado explica.
“Verdade.” Lívia faz bico. “Mas amanhã quando a gente chegar eu quero simplesmente testar tudo isso aí. E leva o controle na mochila para consertarmos na hora do almoço.”
“Teu desejo é uma ordem.” Dante sorri e beija a namorada, antes de esconder as malas em um canto do quarto e irem para a cama e trocarem alguns beijos antes de pegarem no sono.
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Helena estacionou próximo à estação e, pela foto, tentou reconhecer a garota. Encontrou uma menina com uma saia preta relativamente curta mostrando quase dez tatuagens, todas bem bonitas e coloridas, em ambas as pernas, perto da catraca.
“Hey!” Helena cumprimentou a moça com um beijo na bochecha.
“Helena! Que bom que veio!” Camila a recepciona com um sorriso.
“Mais uma vez, mil duzentos e cinquenta e cinco pedidos de desculpas...”
“Eu entendo. Hoje foi um péssimo dia. Até entenderia se não nos víssemos, você deve estar cheia de coisas para arrumar...”
“Bem, é sempre bom termos algo positivo no dia. Pelo menos me distraio um pouco de toda essa situação. Viu, eu deixei meu carro em um estacionamento já perto do mercado. Vamos?”
“Vamos!” As garotas começam a caminhar pela noite paulistana. “Lembro que primeiro você disse que um dos seus irmãos estava de ressaca com 13 anos... sua mãe é de boa com isso?”
“Na verdade ele é filho da namorada da minha mãe. Mas é como se fosse um irmão para mim. A mãe dele não sabe, mas espero que ele tome consciência que ele é um pirralho ainda para isso.”
“Bem, apesar de eu parecer liberal com todas essas tatuagens, eu concordo plenamente com você. Ele é muito criança para isso. E ainda acho que você deveria ter contado para a mãe dele.”
“Vou dar o benefício da dúvida. Mas vamos ver.” Helena dá de ombros.
“E sobre os seus irmãos gêmeos? Meus pêsames pela sua outra madrasta...” Camila se encolhe um pouco, sentindo um arrepio.
“Eu mal a conhecia... mas fiquei triste pelo meu pai e pelos bebês. Escuta, você não está com frio, não?”
“É que no estúdio tem aquecedor, e eu acabei ficando com essa saia. Às vezes esqueço que a noite a temperatura cai sem dó.” Camila dá uma risada tímida.
“Toma meu casaco. Não ajuda com as pernas, mas aquece um pouco o corpo.” Helena tira a própria blusa de frio e a entrega para a garota.
“Não precisa, não precisa! Agradeço muito.” Camila nega com gentileza, enquanto elas adentram no mercado. “Vamos passar ali no corredor de bebidas rapidinho? Prometi para meus amigos que levaria uma garrafa de vodka.”
“Certo. Bem que eu queria beber também, mas aparecer bêbada na casa do meu pai com toda essa situação seria uma má ideia.” Helena suspira. “Vou pegar alguns cereais e doces, já que não posso abusar do álcool, vou abusar da glicose.”
“Você precisa estar mesmo na casa do seu pai daqui a pouco? Senão lhe convidaria para conhecer meus amigos. São gente boa, eu juro.”
“Agradeço o convite, mas devo ir mesmo.” Helena sorri e ambas realizam as compras rapidamente.
Helena deixou a garota na estação e vai para seu carro. Respirou fundo, ligou o som –desta vez do seu pen drive, e ficou olhando para o céu aberto, sem estrelas, com o carro parado do lado de fora do estacionamento. As ruas voltando a ficar movimentadas pelos jovens que se aventurariam noite à fora. Pegou uma barra de chocolate e começou a saborear. Colocou em uma playlist antiga, de meses atrás. Uma música aleatória começou a tocar, e o coração de Helena disparou. Baby, he's got to be crazy...Living like he's John Wayne...A garota já conhecia a banda, mas quem lhe apresentou a música foi alguém que ela não gostaria de ter lembrado naquele momento. Always facing the world and chasing the girl...Ela respirou fundo e pegou o celular. Passou rapidamente pelos contatos. Engoliu a seco e tocou na tecla de discar.
“Alô? Isabel?” Com a voz trêmula, Helena pergunta.
“Helena?!”
“Desculpa estar ligando esta hora...” Ela respira fundo. “Eu... eu queria saber como você está.”
Um silêncio de poucos segundos, que mais pareciam uma eternidade, pairou naquele momento.
“Eu estou bem.” Isabel finalmente responde. “E você?”
“Meus irmãos nasceram. Minha madrasta faleceu hoje.”
“Sua madrasta? Aquela professora de matemática?”
“Não... a namorada do meu pai. A que teve os bebês. Ela faleceu dando à luz a eles.”
“Meus pêsames, Helena... nem sei o que dizer.”
Outro silêncio se instaurou.
“Eu sinto sua falta, Isabel.” Helena confessa.
“Lena...” Escuta-se um engolir de saliva trabalhoso. “Eu estou com outra pessoa...”
“Entendo.” Helena segura o choro. “Desculpa ter ligado. Desculpa mesmo.” Ela desliga o celular rapidamente e então desaba em prantos. Isabel tenta ligar novamente, mas a garota recusa a chamada.
‘Helena, desculpa ter sido assim. Espero que esteja bem.’ Isabel manda uma mensagem, mas a garota apenas lê e logo apaga. Ela enxuga as lágrimas, joga a embalagem do chocolate debaixo do banco do carro e dá partida.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:

rhina
Em: 02/09/2020
Espera! Isabel está com alguém? Desde da faculdade ou depois que chegou a sua cidade que acho que foi a 1 dia?????
E dizia amar a Helena.....como??????
Juro que não entendo. Se tivesse passado um tempo razoável .....tudo bem.
Ela não consegue ficar sozinha?
Tudo bem que todos os personagens da história nenhum deles consegue passar um dia sozinho.....mas Isabel., Cara.....
Ainda tinha fé nela.
Rhina

SaraSouza
Em: 08/07/2019
Que raiva dessa Isabel ...aff
Helena, filha acorda.. deixa essa exu no passado..
Resposta do autor:
hahahahaha verdade!
Fica aí o conselho universal: quem vive de passado é museu! Helena provavelmente aprendeu a lição.
Beijão Sara e obgg pelo comentário s2
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lidi
Em: 06/07/2019
Quando é que a Helena vai arrumar uma mulher maravilhosa? Pois essa Isabel é uma vaca sem um pingo de caráter, o tipo de pessoa que faz a vida andar pra trás.
Resposta do autor:
Quem sabe nos próximos capítulos?
;)
Realmente a personagem retratou um atraso na vida da nossa protagonista. Ótima observação!
Beijão e aguardo feedback nos próximos capítulos ;)
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