Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 15  

Cristina pegou o papel e ficou por um bom tempo com os olhos presos a imagem inconfundível da amiga. Ela olhou muito séria e desconfiada para Fernanda. Era no mínimo estranho aquela mulher ter consigo uma foto de Alicia.  

-- Você conhece essa moça da foto? -- Cristina perguntou, observando atentamente, registrando cada reação de Fernanda.   

A psicóloga se surpreendeu, arregalou os olhos e enrubesceu, o que fez com que ficasse ainda mais bonita.   

Houve um momento de silêncio. Cristina esperou até que a estranha se explicasse.  

-- Conheço-a do Hospital do Coração -- respondeu após uma brevíssima hesitação -- Eu estava internada e ela entrou no meu quarto por engano -- Fernanda sorriu, com embaraço.  

Cristina olhou-a de um jeito inquisidor, depois, baixou os olhos para a foto.  

-- E o que você quer com ela?  

Fernanda olhou para as mãos, sem saber direito o que dizer.  

-- Ouça, sinto muito tudo isso que aconteceu. Talvez vir até aqui não tenha sido uma boa ideia -- admitiu -- Você deve estar pensando que eu sou uma louca que...  

-- Que está apaixonada pela Alicia.  

Fernanda levantou a cabeça e encontrou um par de olhos zombeteiros.  

-- Não... não é isso!  

-- Então o que é? -- Cristina olhou-a nos olhos de um jeito suave, mas, ao mesmo tempo, inflexível -- Sem essa! Você não é a primeira - ela riu - Alicia é bem procurada. Se é que me entende.  

Nervosa, Fernanda enfiou as mãos nos bolsos da calça. Pensou em fugir dali, mas mudou de ideia. Enfrentaria o desafio.  

-- Você quer dizer alguma coisa? -- Insistiu, a médica -- Pode confiar em mim -- enquanto falava, Cristina se perguntava por que estava sendo tão compreensiva com aquela estranha. Ela podia ser uma psicopata, uma golpista, uma... sabe-se lá o que.   

Fernanda acreditou nas palavras da moça. Sua voz, seu sorriso, lhe transmitiam uma estranha emoção, um sentimento tão forte, que chegava a parecer como um soco em seu coração.  

-- Eu só quero conversar com ela -- disse Fernanda meio constrangida -- É sério.   

Naquele instante, o rosto de Cristina suavizou-se num delicioso sorriso, que lhe transmitiu segurança para continuar.   

-- Eu não sei explicar. Por favor, não pense nada de ruim ao meu respeito. Nem eu mesma sei o que estou fazendo aqui. Desculpa! -- a brisa perfumada da tarde roçou seu rosto trazendo o aroma das flores dos canteiros que enfeitavam os arredores do hospital. Se virou para ir embora, um pouco decepcionada, mas orgulhosa de si por sua coragem.  

-- Espera -- Cristina desviou o olhar para a sua mão, alisando o papel -- Essa foto é sua.  

Fernanda virou-se para fitar Cristina, que estava cabisbaixa.  

-- Eu acredito em você -- a médica estava olhando para a foto e seus lábios estavam levemente entreabertos -- Também não sei explicar, mas sinto somente sentimentos positivos emanando de você, sua alma brilha e ilumina -- era estranho, aquela mulher a fez sentir uma conexão instantânea muito boa. Era como se a conhecesse de outras vidas. Se sentiu confortável e confiou logo no primeiro momento, parecia alguém que já confiou e gostou no passado.  

Fernanda estava com os nervos mais retesados que as cordas de um violão.   

-- Me chamo, Fernanda. Obrigada por confiar em mim -- a voz dela estava trêmula e nervosa.   

-- Me chamo, Cristina. Sou médica e melhor amiga da Alicia -- Cristina observou-a por alguns instantes - Espero não me arrepender, mas vou ajudá-la a se aproximar de Alicia.  

-- O que você pretende... -- No mesmo instante, Fernanda foi interrompida por uma voz feminina.  

-- Cristina!  

As duas se viraram em direção a voz e Cristina mudou completamente de atitude. Ela olhou de soslaio para Fernanda, dobrou a foto de Alicia e sem sorrir, disse:  

-- Eu compreendo perfeitamente a preocupação da senhora. A doutora Alicia estará afastada do hospital por uma semana, mas vou entrar em contato com ela e pedir para que me passe as informações sobre o seu marido -- Cristina ficou muito orgulhosa de si mesma ao notar que sua voz havia soado razoavelmente normal -- Pode, por favor, me passar o número de seu telefone?  

Com a voz trêmula e sob os olhares curiosos da mulher que se aproximou delas, Fernanda falou o número para Cristina.  

-- Obrigada. Prometo entrar em contato hoje mesmo -- entregou a foto dobrada para Fernanda e sorriu.  

-- Algum problema? -- perguntou, Natália.  

-- Sem problemas, Fernanda é a esposa de um dos pacientes da doutora Alicia. Já está tudo resolvido. Não é mesmo?  

Fernanda permanecia completamente imóvel. Depois baixou as pálpebras inspirou rápido demais, chegando a engasgar. Ela não era baixa, e ainda estava usando salto alto, mas, mesmo assim, tinha de erguer a cabeça para olhar para Natália.  

-- Claro. Obrigada doutora.  

-- Vamos! -- disse Cristina à Natália e as duas voltaram para o hospital.  

Fernanda caminhava absorta em seus pensamentos, mas quando chegou no estacionamento, Suélen imediatamente a fez voltar a realidade.  

-- Quem são as duas dondocas?  

-- Será que podemos conversar no carro? Estou cansada,  

-- Claro, mas me deixa cobrir o banco com uma toalha.  

-- Por que?  

-- Porque deve estar toda cagada -- Suélen ergueu as sobrancelhas de modo zombeteiro e segurou a porta aberta para que a psicóloga entrasse.  

Fernanda achou graça do comentário.  

-- Não cheguei a tanto, mas quase. Agora, vamos sair logo daqui. Eu te conto tudo no caminho.  

Cléo entrou na sala com um catador de fezes de cachorro na mão e foi logo falando:  

-- Depois que conheci a doutora, sou um novo gay. Antes não acreditava nem em vida após o casamento. Agora sou um gay espírita, acredito em encarnação, reencarnação, azaração, ah, isso não. Já estou toda confusa.  

Alicia ergueu as sobrancelhas de modo zombeteiro.  

-- Nunca ouviu falar sobre espíritos ou sobre a Doutrina Espírita?  

-- Eu tinha um bofe que dizia que os homens roncam para espantar os maus espíritos e proteger as suas esposas. Outro, que dizia que aqueles estalos que os móveis fazem de madrugada são os espíritos batendo com o mindinho neles.  

-- Eu não aguento! -- Alicia se levantou e olhou ao redor -- Onde está o Yuki?  

-- Siga o rastro de merd*.  

-- Como assim? Você está recebendo um salário gordo para preparar o café para o meu dejejum e limpar a merd* pelo apartamento, e ainda não está dando conta?  

-- Não me pressione doutora. Não funciono muito bem quando pressionado. Olha que posso ficar nervoso e preparar merd* para o seu dejejum e limpar o café pelo apartamento.  

Alicia bufou, cansada.  

-- Sabe aquele momento que você percebe que o melhor a fazer é levar o cachorro pra passear no parque? Pois é, esse é o momento.  

-- Ótima ideia, mas não esqueça de levar os saquinhos para fezes, eles são 100% biodegradáveis e com cheirinho de lavanda. Comprei também porta saquinho e refil. São higiênicos e ecológicos. Não demore muito na rua, pra ele não pegar sereno e friagem. Essas coisas que tem a noite, não é bom porque ele pode pegar um resfriadinho.   

Fernanda ergueu o rosto para olhar pela janela, a lua enorme e alaranjada que surgia no céu.  

-- Você já teve a sensação de viver uma situação que já viveu antes?   

-- Um Déjà-vu? -- perguntou Suélen.  

-- É. O encontro com Cristina me deu essa impressão. Parecia que estava em contato com nossas vidas passadas. Houve uma conexão positiva imediata. Sinto que já confiei e gostei dela no passado. E o interessante é que ela pareceu sentir a mesma coisa com relação a mim.  

Suélen observou-a por alguns instantes.  

-- Depois que te conheci só tenho escutado coisas esquisitas. Credo, chego a ficar arrepiada -- declarou Suélen, esfregando a mão no braço arrepiado -- Será que ela vai cumprir o que prometeu?  

-- Tenho certeza que vai -- ela apressou-se em dizer -- Se por um lado, com a doutora Cristina houve uma conexão positiva imediata, com a doutora Natália a conexão negativa também foi imediata. Sabe aquela famosa frase "não sei exatamente o porquê, só sei que não gostei dela". Pois é, foi bem assim.  

Suélen ficou em estado de alerta quando perguntou:  

-- Será que ela é a namorada da doutora Alicia?  

Fernanda a olhou, assustada, e após um breve esforço mental, conseguiu lembrar de alguns detalhes.  

-- Verdade. Por um segundo posso jurar que ela ficou possessa. Seus olhos castanhos brilharam de maneira tão estranha que me fez ficar arrepiada. E outro detalhe, a doutora Cristina fez questão de falar que eu sou casada.  

-- Viu, ela quis deixar bem claro que você não é um risco para ela. Percebeu, que está brincando com fogo, amiga?  

-- Quem está brincando com fogo? -- Salomão perguntou da porta.  

Fernanda e Suélen viraram a cabeça bruscamente na direção da voz.  

-- Credo, Salomão! Você parece um fantasma.  

Suélen acariciou a mão de Fernanda e sorriu de modo tranquilizador.  

-- Como estava dizendo, antes de Salomão chegar, você está brincando com fogo, amiga. Não deveria ficar comendo empadinhas, pode não fazer bem para você.  

-- Você está comendo empadinhas, Fernanda? -- perguntou Salomão, muito irritado.  

Cristina entrou no elevador, e apertou o número do andar de Alicia. Quando a porta abriu, encontrou Cléo, muito sorridente, o cabelo todo bagunçado, como se tivesse acabado de sair de uma briga.  

-- O que houve? Você está péssimo!  

-- Aquela pestinha está me deixando louco!  

-- O cachorro da Alicia?  

-- Quem mais poderia ser? Aquela tábua de lavar roupa não sossega um minuto -- ele resmungou, indignado.  

-- Filhote é assim mesmo -- Cristina deu dois passos e se virou -- Está indo embora?  

-- Estou, o Yuki está dormindo -- disse, já com um pé dentro do elevador, preparado para apertar o botão -- A fábrica de produzir cocô está fechada por hoje. Amanhã eu volto.  

Cristina sorriu e balançou a cabeça. Cléo era divertido e estava sempre de bom humor, o que fazia com que Alicia se sentisse do mesmo jeito. Era uma ótima companhia; principalmente, para uma pessoa que acabara de passar por uma situação tão traumática.  

Bateu à porta do apartamento de Alicia e ficou esperando. Por algum tempo, nada escutou. Depois, ouviu uma voz sonolenta.  

-- Quem é?  

-- Sou eu, a Cristina.  

A porta foi escancarada violentamente e Alicia apareceu diante dela com os cabelos despenteados, o rosto impaciente e um roupão vestido às pressas.   

-- Entra -- ela disse coçando a cabeça. Esperou Cristina entrar e trancou a porta -- Onde anda a Natália que não te leva pra cama? -- Alicia jogou-se no sofá e colocou a mão na nuca, girando a cabeça em um esforço para relaxar os músculos.  

-- Natália está de plantão -- rindo, ela se sentou de frente para a amiga -- Seu apartamento está uma bagunça.   

-- Assim que o Cléo virou as costas, o Yuki tirou todos os meus sapatos do armário, destruiu várias revistas, espalhou ração pela cozinha e tirou todos os brinquedos da caixa.  

-- Você tem que impor regras, caso contrário, ele vai ficar um cão muito mal-educado.  

-- Eu sei -- virando-se, ela colocou os pés para cima -- Já tenho tudo esquematizado. A partir de amanhã vou começar a passear com ele pelo parque.  

Cristina sorriu de leve. Naquele momento uma ideia surgiu em sua mente, fazendo com que ela se inclinasse para frente quase involuntariamente.   

-- A que horas vai levar ele para passear?  

-- A veterinária falou que cães são animais de rotina, então estabelecer um cronograma é importante para que sua vida seja calma e ele seja um animal equilibrado e feliz. Vou passear com ele sempre às 08:00 da manhã. O sol não está tão forte e é o horário que eles estão cheios de energia.  

Fernanda andava de um lado para o outro, impaciente, ignorando Salomão que, sentado à mesa, a observava com estranheza.  

-- Permita-me perguntar -- Salomão falou -- Quero saber algumas coisas. Por exemplo, o que você está escondendo de mim?  

Fernanda titubeou antes de responder:  

-- Que cisma! -- ela retrucou, irritada -- Não estou escondendo nada de você.  

-- Como não? Está parecendo um animal enjaulado. Andando de um lado para o outro, pensativa.  

Fernanda ficou imaginando o que ele diria se soubesse em que ela estava pensando -- Acho que vou tomar um café -- Ou, quem sabe, um banho gelado surtisse melhor efeito", corrigiu-se em pensamento. Então, o celular apitou. Murmurando, correu para ver a mensagem.  

-- Quem é? -- perguntou o rapaz, desconfiado.  

-- É a Doutora Cristina.   

Salomão franziu o cenho. Fernanda apressou-se em esclarecer.  

-- Ela está me lembrando que tenho uma consulta agendada para amanhã às 08 horas.  

Fim do capítulo