Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 8 

Segunda-feira 08:00 

Alicia foi até a cozinha, a fim de preparar café. Mal acabou de ligar a cafeteira e a campainha tocou. Quem será a essa hora? Indagou-se, aborrecida com a pessoa inoportuna, fosse ela quem fosse, era bem sem noção. 

-- Já estou indo! -- gritou, e foi atender a porta. Olhou no olho mágico e franziu a testa ao ver que era Natália. Encrenca logo cedo, eu não mereço, pensou, tentando dominar a irritação. Girou a chave e abriu -- Entre, Natália -- ela disse cordialmente, gesticulando para convidá-la ao interior de seu apartamento. 

Para surpresa de Alicia, Natália enroscou seus braços ao redor do pescoço dela, e beijou seus lábios de leve. Alicia ficou tensa e apressou-se em afastar-se da médica. Natália era tão segura de si e confiante, que fazia com que ela se sentisse como uma colegial. 

-- Como vai, Alicia? 

-- Vou levando -- ela respondeu, desviando o rosto -- Vem pra cozinha, estou preparando o café. 

Natália seguiu-a até a confortável cozinha. 

-- Você está com uma aparência terrível! -- ela disse, com franqueza rude, e Alicia sorriu com amargura. 

-- Obrigada pela delicadeza! 

-- Desculpe; mas é verdade. 

Sabia que o olhar penetrante de Natália não deixava passar nada despercebido. 

-- Estou exausta não preguei o olho a noite inteira. Fui para Itatiaia para relaxar e acabei voltando ainda mais estressada -- Sente-se, Natália -- disse Alicia, mas ela ignorou, ficando em pé ao lado do balcão de pia. 

-- Tudo em Itatiaia faz lembrar de Thais. Você deveria procurar outros lugares. Lugares novos que não façam parte do passado de vocês duas e não tragam tantas recordações -- seus dedos frios seguraram o queixo da ortopedista e Natália encarou-a com firmeza -- Thais não gostaria de te ver assim. Já pensou nisso? -- ela perguntou, ainda sem se resolver a sentar. 

Alicia afastou o cabelo da testa e olhou-a com indisfarçada ironia. 

-- Claro, que sim, mas não sou de ferro -- respondeu, sem conseguir disfarçar a irritação -- Quer café? 

-- Quero -- Natália, finalmente sentou à mesa -- A Cris me disse que vocês trocaram o plantão de hoje a tarde. 

-- Sim, trocamos. Ela vai buscar a mãe no aeroporto -- ela comentou finalmente, pondo as canecas de louça sobre a mesa -- Mas, isso você já deve saber. Não é mesmo? -- Alicia perguntou, curiosa 

Natália ergueu as sobrancelhas. 

-- Ela não me falou nada. 

As duas trocaram um olhar, sem dizer nada. Alicia serviu o café e Natália tomou um gole. 

-- Que horror! -- ela correu tomar água -- Quer me matar? 

Alicia olhou para Natália com um ar de indiferença e depois sorriu. A cara dela estava muito engraçada. 

-- Se quer melhor, faça você mesma -- disse rindo. 

-- Pode ter certeza que farei! -- ela ligou a cafeteira e sentou-se -- Não entendo como uma ortopedista que consegue reconstruir uma perna destruída, não consegue fazer um simples cafezinho -- Natália levantou os olhos para aquela linda mulher a sua frente e sorriu gentilmente -- Certas coisas nunca mudam. 

Alicia riu sem jeito, balançando a cabeça. Natália tinha uma beleza clássica, irresistível. Mas quase ninguém percebia que por trás daquela beleza, havia uma personalidade bem menos atraente. 

-- Algum problema de ter trocado o plantão com a Cris? -- Alicia perguntou, mudando de assunto. 

-- Temos a transferência de um paciente cardiopata para o Hospital do Coração. Gostaria que o médico que está de plantão no setor de internação acompanhasse. 

-- Precisa ser um cardiologista? 

-- Não -- terminou de fazer o café, encheu duas canecas e entregou uma para Alicia -- O paciente está estabilizado. 

A ortopedista pegou a caneca e deu de ombros. 

-- Obrigada -- havia diversão na voz dela -- Veio até aqui para me dizer que tenho uma transferência para fazer? 

-- Não -- ela fez uma pausa, procurando a resposta apropriada, então concluiu com: -- Vim preparar o seu café. 

10:00 

Fernanda acordou bem melhor naquela manhã. Um pouco mais tarde fez os exames de rotina e pelo resto da manhã alegremente recebeu a visita dos pais, da irmã e dos tios. 

Salomão não saiu do seu lado em momento algum. Ele é um homem bom e decente. Um homem capaz de amá-la, respeitá-la e que merece toda a sua consideração. Fernanda repetia para si tentando se convencer de que era o certo. 

-- Em que está pensando? -- Suélen entregou-a um copo com água e alguns comprimidos. 

-- Que o Salomão não merece a minha ingratidão -- Fernanda tomou os comprimidos e ingeriu de uma só vez a água. Em seguida entregou o copo vazio para a enfermeira -- Cedo ou tarde, todo casal passa por uma crise; é absolutamente inevitável. A crise é um sinal de evolução em um relacionamento e, por isso, não deve ser temida, e sim, compreendida. 

-- Quanta besteira! -- Suélen, suspirou fundo -- Tirou isso de onde? Do Blog, dez passos para salvar o seu relacionamento? -- disse irritada. 

-- Não posso simplesmente terminar o noivado sem ao menos buscar maneiras de reacender o fogo. 

-- Acho correto, porém, se já está assim antes de casar, imagina quando os problemas conjugais começarem a aparecer. O charme da paixão desaparece e a pessoa começa a ver o parceiro como ele realmente é. Isso significa vê-lo com todas as suas fraquezas e hábitos, muitas vezes, desagradáveis. E como se supera tudo isso? Com amor, muito amor. Não com gratidão. Gratidão eu tenho até pelo seu Pedroca da padaria, ele não me deixa um dia na mão. Todas as manhãs têm pãozinho quente. 

-- Estou falando sério, Suélen -- Fernanda cruzou os braços sobre os seios. 

-- Também estou, meu amor. Pense bem, ser honesta com ele é a melhor forma de demonstrar a sua gratidão e consideração por tudo o que vocês viveram até hoje. 

-- O que não entendo é que até dias atrás, eu era louca por ele. De repente do nada começo a vê-lo tão somente como um irmão. 

Suélen fez um trejeito com a boca. 

-- Você é tão estranha, Fernanda -- a enfermeira balançou a cabeça e saiu empurrando o seu carrinho com medicações. 

13:00 

-- Você trouxe a mala de transporte? Conferiu se tem Fentanila o suficiente? E Midazolam? Pode ser que você precise entubar o paciente... 

Alicia lançou um olhar gelado para Natália. 

-- Natália, eu perdi a conta de quantas transferências já fiz. Por que todo esse cuidado, agora? -- ela ergueu-se para fica a altura da chefe e colocou as mãos nos quadris. 

-- Desculpa! -- pediu ela, colocando as mãos na nuca -- Só estou fazendo o meu trabalho. 

-- Fala sério que cada vez que tem uma transferência, você vem até aqui fiscalizar. 

Natália deu de ombro. Ficou sem palavras. 

-- O contato lá no Hospital do Coração foi feito com o doutor Daniel. Ele é cirurgião cardiovascular. 

-- É só o que eu preciso saber -- Alicia entrou na ambulância, sentou no banco ao lado da maca e fechou o cinto de segurança -- Podemos ir -- disse ao motorista. 

Natália afastou-se automaticamente, deixando que o motorista fechasse a porta da ambulância. 

13:30 

-- Por que você é tão teimosa, Fernanda? -- o noivo ficou ali, olhando-a. Parecia ultrajado. 

-- Não insista Salomão. Você não vai me dar banho e ponto final! 

Ela cruzou os braços na altura do peito, forte indicativo de que não adiantava insistir. Era um gesto defensivo. Salomão era perito em ler a linguagem corporal, principalmente a de Fernanda. 

-- Eu só estou querendo te ajudar, Nanda. Você ainda está fraca, tenho medo que caia no banheiro -- o rapaz enfiou a mão no bolso traseiro de seu jeans e deu um sorriso maroto -- Além do mais, não tem uma parte do seu que eu ainda não tenha visto. 

-- Sai daqui -- ela disse, indignada -- Sai daqui, já! 

A porta se abriu e Suélen apareceu empurrando uma cadeira de rodas. 

-- O que está acontecendo? Algum problema? 

-- Nenhum problema! -- ele apressou-se em dizer, afastando-se de Fernanda. Salomão mal podia crer que a noiva estava sendo tão radical por causa de uma bobagem. Sempre lembrou dela como uma mulher carinhosa e gentil. Desde quando ficou assim, tão arisca? -- Estou apenas tentando convencer a minha noiva de que devo acompanhá-la ao banho. 

Suélen só faltou bocejar. 

-- Deixe-me adivinhar...E ela não quer -- a enfermeira deixou escapar um risinho. 

-- Não, Fernanda me irrita com essa teimosia. 

-- Tenho os meus motivos e os meus direitos -- a psicóloga rebateu, irritada. 

-- Não discutam por causa de picuinhas. Eu trouxe a cadeira de rodas para levar a Nanda até o banheiro. Lá dentro tem barra de apoio, ela pode se virar sozinha. 

Salomão sorriu, assentindo, acatando aquela sugestão com ar de pouco-caso. 

-- Vou até a lanchonete tomar um café -- ele escancarou a porta e saiu. 

Suélen aproximou a cadeira da cama e travou as rodas. 

-- Vamos que eu não tenho o dia inteiro. A paciente do quarto ao lado amanheceu atacada. Está me chamando a cada dois minutos. 

A enfermeira levou Fernanda até o banheiro e ajudou-a a tirar a roupa. 

-- Tem vergonha do noivo e não tem da enfermeira lésbica? 

-- Você é uma profissional, é diferente. 

-- ENFERMEIRAAA... 

-- Meu Deus, dai-me paciência -- Suélen abriu a torneira do chuveiro para esquentar a água. Fernanda aproximou-se e entrou no boxe -- Precisa de ajuda para se lavar? 

-- Espero que não -- Fernanda resmungou ofegante. 

-- ENFERMEIRAAA... 

-- Droga! -- irritada, Suélen fechou a porta do boxe -- Eu vou lá ver o que ela quer e já volto. Tudo bem? -- Suélen perguntou do lado de fora. 

-- Sim, obrigada. 

Fernanda fechou os olhos e suspirou de prazer no instante em que a água quente a cobriu. 

-- Ai, que delícia! -- sentia-se segura, pois Salomão não estava por perto e, mesmo se estivesse, ela não acreditava que ele seria capaz de espioná-la. Com muita calma, esfregou o corpo, passou o xampu, creme e deixou-se ficar por alguns momentos na água que escorria por suas costas. De olhos fechados sentiu vontade de cantar: 

Não é sobre ter todas pessoas do mundo pra si 

É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti 

É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz 

É sobre dançar na chuva de vida que cai sobre nós 

Segura teu filho no colo 

Sorria e abrace teus pais enquanto estão aqui 

Que a vida é trem-bala, parceiro 

E a gente é só passageiro prestes a partir 

Alicia caminhava pelo corredor do hospital com passos rápidos e silenciosos. O paciente já estava instalado e aos cuidados do doutor Daniel. Missão dada, missão cumprida! 

Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá 

Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá 

-- Thais? -- com o coração aos pulos, ela parou diante da porta entreaberta, em seguida, empurrou-a e entrou -- Thais? 

Alicia sentiu-se como se estivesse entorpecida, flutuando na direção daquela voz. 

Fernanda abriu os olhos, assustada e teve a nítida impressão de ouvir alguém do lado de fora do banheiro. 

-- Suélen, é você? -- ela abriu a porta do boxe e saiu -- Já estou toda enrugada... Ahhhhh!!! 

Fim do capítulo