Capítulo 5
Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 5
Sexta-feira 08:00
A sala estava lotada. Um grupo de pessoas, funcionários do hospital, aproximaram-se da urna funerária.
-- Por que não tem flores nem velas e a urna funerária está fechada?
Raquel olhou séria para o colega de trabalho.
-- A doutora Alicia me contou que em relatos espíritas é comum, depoimentos de pessoas que se incomodaram com flores sobre seu corpo. Então, é recomendado um lençol até a cintura. Também dizem que é correto manter a urna funerária fechada, para que fique gravada a imagem em vida física. Em velórios espíritas não são colocados crucifixos, objetos de estimação e nem mesmo velas, pois são simbolismos sem utilidade real.
-- Velas e flores são exteriorizações de sentimentos, não fazem mal, mas não ajudam o desencarnado. O que ajuda são orações, o amor sincero, bons pensamentos, fé e certeza da continuidade da vida -- comentou Joana.
-- Você está certa Joana -- Cristina tocou o ombro da enfermeira -- A oração cria um ambiente de paz, tranquilidade e ajuda a todos os envolvidos.
-- É a primeira vez que compareço a um velório espírita. É muito estranho, tenho a sensação de estar cercado por espíritos.
-- Cala a boca, Sérgio -- repreendeu, doutora Fátima -- Nunca vi uma cerimônia tão tocante e notável pela simplicidade. Sala simples onde só as flores da sinceridade se encontram, não o exagero que o dinheiro compra, mas o coração não participa.
15:00
Alicia estava com muita sede, foi até a cozinha da capela mortuária e encheu um copo com água bem gelada. Ela bebeu todo o líquido refrescante e jogou o copo plástico no lixo.
-- Doutora, Alicia!
Com um suspiro de susto, Alicia se virou e deu de cara com uma senhora de meia idade, semblante carregado e olhos vermelhos.
-- Sim, sou eu mesma -- respondeu desconfiada. Ultimamente seu cérebro não conseguia diferençar o real do irreal -- O que deseja?
A senhora com feições sofridas e enrugadas, deu alguns passos em sua direção.
-- Me chamo Maria Bueno, sou a mãe do Thiago.
O nome causou-lhe verdadeira surpresa. Alicia franziu o cenho, sem saber como interpretar a inesperada abordagem de uma mulher que não conhecia, mas assentiu, porque não lhe ocorreu razão alguma para não ouvir a senhora.
-- Não estou aqui para o velório. Vim vê-la com um propósito concreto, que espero que não considere reprovável.
Alicia a fitou com olhos verdes água e a típica atitude paciente. Não pôde evitar perguntar:
-- Reprovável? -- a médica perguntou devagar, sem tentar ocultar sua curiosidade.
-- Não sabe quem é o Thiago Bueno? -- ela perguntou como se fosse algo inadmissível.
-- Não, não sei quem é -- respondeu, tentando dar um tom normal à voz.
-- Thiago é o rapaz que dirigia o carro que colidiu de frente com o carro de Thais -- na boca de sua visitante apareceu algo que só poderia ser descrito como um tremor de desespero -- Thiago foi enterrado essa manhã. Ele era um menino bom, educado, trabalhador. Nunca...
Alicia balançou a cabeça, acenando com uma das mãos, em um gesto para ela se calar.
-- Um menino bom que conduzia embriagado, em alta velocidade e avançou o sinal vermelho.
-- Meu filho era um menino de ouro. Não tinha vícios, ele não fez por maldade.
-- Quer que eu diga quem era a Thais? -- Alicia encarou a mulher -- Thais era uma mulher maravilhosa, médica competente, mãe zelosa, cheia de sonhos, com toda vida pela frente, amada por onde ela passou. Uma falta inestimável para a sociedade. Quem era o Thiago, mesmo?
Dona Maria Bueno ficou sem saber o que dizer, os lábios trêmulos, os olhos cheios de lagrimas.
-- Thiago é o meu filho, querido -- a mulher pegou o celular e mostrou a foto do filho -- Sei que é difícil perdoar a quem nos fez muito mal, mas o perdão nos livra de um fardo que entristece a nossa alma e nos tira a paz. Meu filho não pode mais pedir perdão, por isso eu estou aqui, implorando humildemente que você o perdoe.
Alicia engoliu em seco, tentando digerir o assombro que acelerava seu coração, enquanto olhava para a foto. A foto do rapaz do banheiro.
-- Seu desespero trouxe o espirito do seu filho até aqui.
-- O que? -- a mulher franziu o cenho -- Não estou entendendo.
-- Eu bem que queria ser forte, e perdoar. Mas eu sou humana e não sou perfeita, não consigo simplesmente passar uma borracha e deixar para trás. Hoje eu não sou capaz de perdoar, mas quem sabe um dia eu consiga, eu seja forte o bastante.
-- Por Deus, doutora Alicia...
Médium Juarez entrou na cozinha e se aproximou de Alicia.
-- Com licença. Desculpa atrapalhar a conversa de vocês, mas Alicia, é chegado o momento. Gostaria de fazer uma homenagem ao espírito da Thais?
Alicia balançou a cabeça concordando. Depois, olhou para Maria Bueno e disse com pesar:
-- Sinto muito!
15:30
Alicia parou ao lado do caixão e repousou a mão na lateral de metal frio. O silêncio dominou o ambiente e foi quebrado apenas pela voz serena da ortopedista.
-- Vou ser breve, meu amor. Eu sei que se encontras entre nós, e nos vê e nos ouve, pois apenas deixaste o corpo perecível, que logo será reduzida a poeira.
Quero que saibas que perto ou longe, separadas neste ou em outro mundo, o nosso amor resistirá. Ele não desvanece com o tempo nem com a distância. A morte, para os homens, é apenas uma separação momentânea. Eu tenho que continuar aqui, cumprindo os deveres que Deus designou a mim, mas te seguirei pelo pensamento, até o momento em que nos seja permitido juntar-me novamente contigo, como agora te reúnes aos que te precederam. Perdoa, pois, a todos os que possam ter cometido faltas para contigo, como aqueles para os quais erraste também te perdoem.
Você se foi e eu aceito. Choro, mas aceito. Porque tenho certeza de que um dia estaremos todos reunidos num mundo melhor.
Você foi perfeita. Você foi o melhor presente que Deus me deu!!
Boa viagem de volta pra casa, meu amor.
"Que a vida é trem-bala, parceiro
E a gente é só passageiro prestes a partir"
Após essas palavras, Alicia e seus amigos se retiraram sem ruído, sem ostentação, sem emoção dolorosa e como se tivessem vindo acompanhar alguém que empreende uma longa viagem, em todas as condições desejáveis de bem-estar e segurança.
Hospital do Coração 16:10
Fernanda ouviu uma voz, mas não tentou abrir os olhos para ver quem era.
-- Acorde Fernanda -- disse doutor Daniel, apertando a mão de sua paciente -- Acorde Fernanda -- ele insistiu.
Ela abriu os olhos com dificuldade e piscou várias vezes, até que a visão clareou e ela viu o homem de branco cuja silhueta se delineava.
-- Olá -- ele disse baixinho -- Como está se sentindo? -- quis saber.
-- Sentindo-me pesada -- Fernanda respondeu, fechando os olhos por causa da luz -- Me sinto fraca.
-- É normal sentir fraqueza muscular e dificuldade respiratória, devido à inatividade prolongada antes da cirurgia -- disse o cirurgião, feliz.
O olhar de Fernanda se moveu pela sala, avaliando cada detalhe. Então, como se lembrasse alguma coisa realmente importante, os olhos se arregalaram, cheios de medo.
-- Está sentindo dor, Fernanda? -- perguntou, doutor Daniel.
-- Não estou sentindo dor, mas -- ela puxou o ar com dificuldade -- Onde está a minha filha?
Doutor Daniel olhou para ela, confuso.
-- Filha? Pensei que ainda não fosse mãe!
Fernanda fixou os olhos no teto, em sinal de desespero, e se pôs a sussurrar.
-- Mas que droga! Não sei de onde tirei essa ideia de filha.
O médico caiu na risada.
-- Já ouvi muito disso de homem, mas de mulher é a primeira vez.
Fernanda deu um meio sorriso.
-- Até quando ficarei presa a esses tubos?
-- Esses tubos são para garantir o seu bem-estar. Você vai permanecer com a sonda vesical, os drenos no peito, os cateteres nos braços e a sonda no nariz para se alimentar, pelo menos até amanhã. É ou não é uma boa notícia?
O sorriso dela se alargou.
-- Ótima -- sussurrou.
-- Quem está louco para vê-la é o seu noivo. Posso pedir para ele entrar?
O sorriso dela desapareceu, e seus olhos escureceram. Um silêncio constrangedor se abateu e o médico logo percebeu que havia algo errado.
-- Algum problema em pedir para o Salomão entrar?
-- Não -- ela sussurrou cansada -- Apenas gostaria de descansar um pouco mais. Estou sem forças até para respirar.
Doutor Daniel, balançou a cabeça concordando.
-- Você tem razão, me desculpe. É que o rapaz está tão ansioso para entrar que, até eu me empolguei -- ele disse, meio sem jeito -- Vou sair e deixar você descansar.
Fernanda fechou os olhos lentamente. Cristo, o que havia de errado com ela?
Salomão se levantou assim que viu o doutor Daniel passar pela porta da UTI.
-- Então, doutor? Posso entrar?
Doutor Daniel passou uma mão pela nuca e respirou fundo pensando em uma forma menos dolorida de falar que a noiva não estava afim de vê-lo.
-- A Fernanda já acordou, está bem, mas muito cansada. Prefiro que ela não receba visitas por enquanto.
-- Então, não posso vê-la? -- indagou, decepcionado.
-- Ela está isolada dos outros doentes porque o seu sistema imune está fraco e, poderá facilmente contrair qualquer doença, principalmente infeção, pondo em risco a vida dela. Só depois de estar estável é que vou transferi-la para o serviço de internamento.
Salomão fez cara de assombro.
-- Poxa! Queria tanto vê-la.
-- Você poderá vê-la em breve. Quem sabe amanhã -- o médico fitou o rapaz com afeto -- Vá para casa, guarde suas energias para quando ela for transferida para o quarto.
-- Não consigo deixá-la sozinha.
-- Pois eu digo que, ela não está sozinha. Tudo o que Fernanda precisa agora é da presença dos enfermeiros da UTI -- Daniel colocou a mão sobre o ombro do rapaz -- Confie em mim. Qualquer mudança no estado dela, nós comunicamos - ele completou a frase sorrindo.
-- Se o doutor está dizendo, então eu vou -- desgostoso, ele olhou para o chão -- Amanhã eu volto.
Mesmo contrariado, Salomão foi para casa.
20:00
Alicia cruzou os braços e olhou para Cristina. Com as mãos nos bolsos, a amiga continuava examinando-a insistentemente, preocupada pelo fato de que ela estava pálida e com os olhos vermelhos.
-- Aceita um suco? -- ela ofereceu, levantando-se para ir à cozinha.
-- Há alguma coisa para comer? -- Cristina a seguiu -- Estou morta de fome.
-- Empadinha de palmito, de camarão, de queijo, de calabresa...
-- Empadinha e refri vão bem. E um pouco de mostarda e maionese.
-- Algo mais? -- Alicia adotou um tom típico de garçonete.
-- Não, só isso -- Cristina se sentou à mesa -- É bom ocupar-se com alguma coisa.
-- Não acho que servir empadinhas para você, seja uma boa ocupação.
-- Não quis dizer isso, ô mané. O que quero dizer é que não fará bem para você ficar sozinha em casa.
-- Obrigada pelo conselho médico -- ela retrucou, colocando as empadinhas em pratinhos -- Estou bem, não vejo nenhum problema em ficar sozinha.
Cristina pegou uma empadinha de camarão.
-- Obrigada -- ela devorou o salgadinho com entusiasmo, como se não comesse nada havia dias -- Delicioso!
Alicia se levantou e caminhou silenciosamente até a porta da cozinha.
-- Você viu isso?
-- O que? -- ela também se ergueu da cadeira e aproximou-se da amiga, estudando o seu rosto.
-- A luz da sala acendeu sozinha...
Casos interessantes de pessoas que teve órgãos transplantados e junto vieram lembranças:
Sonny Graham
A trágica história de Sonny Graham começou em 1995, após ele passar por um transplante de coração. Ele recebeu o órgão de um homem chamado Terry Cottle - que havia cometido suicídio dando um tiro no próprio pescoço.
Alguns anos mais tarde, Graham acabou conhecendo a viúva de seu doador, Cheryl, depois de escrever a ela cartas de gratidão. Então, os dois se conheceram pessoalmente, se apaixonaram e, em 2004, decidiram se casar. Entretanto, em 2008, Graham começou a apresentar um comportamento depressivo - e, assim como Terry, se matou disparando um tiro contra o próprio pescoço.
Fim do capítulo
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Brescia
Em: 29/06/2019
Oi de novo.
Perdoar é evolução, mas não é fácil, acho que o coração tem que está sereno e pleno de paz. Tenho certeza que ela o perdoará no momento certo.
Parece que a Fernanda sente emoções e sensações que pertenciam a Thaís .
Baci piccola .
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Karu Dias
Em: 11/06/2019
Oxi , luz acendeu sozinha?! Acho que daria um treco se acontecesse comigo.
Pobre Salomão, sinto muito pelo o que provavelmente vá lhe acontecer,aFernanda já não é mais a mesma .
Genteee mas que fofinho a Fernanda querer ver (sua) a filhinha !
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perolams
Em: 07/06/2019
Coitado do noivo, não pensei que Fernanda acordaria com esse efeito pos cirurgico
Li a parte da mãe com os pelos eriçados. Admiro muito a forma como os espíritas enxergam a vida, o que mais me chama atenção é a capacidade de perdoar e se doar. Já li várias histórias com essa temática aqui, mas nenhuma de forma tão aprofundada, peço desculpas antecipadas, porque sei que vou te aborrecer com perguntas.
Resposta do autor:
Bom dia perolams
Fique a vontade, meu anjo. Estou a disposição e ficarei muito feliz se puder esclarecer suas duvidas e. ou, curiosidades.
O fenômeno de memória celular, mesmo ainda não é considerado como 100% cientificamente validado, é apoiado por vários cientistas e médicos. Os comportamentos e emoções do doador adquiridas pelo receptor são devido a memórias combinatórias armazenadas nos neurônios do órgão doado. Transplantes de coração são os mais suscetíveis à memória celular onde o receptor do órgão experimenta uma mudança drástica em sua personalidade.
Paz e Luz.
Beijos.
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Mille
Em: 07/06/2019
Ola Vandinha
Nanda acordando e lembrando da filha da Thais, e não gostou de saber do noivo, Salomão você dançou. Acho que ele logo vai notar que não essas mudanças na ex noiva.
Alicia no momento ela não está aberta a perdoar, quem sabe depois ela perdoe o Tiago.
Bjus e até o próximo capítulo
Resposta do autor:
Olá Mille.
O fenômeno de memória celular, mesmo ainda não sendo considerado como 100% cientificamente validado, é apoiado por vários cientistas e médicos. Os comportamentos e emoções do doador adquiridas pelo receptor são devido a memórias combinatórias armazenadas nos neurônios do órgão doado. Transplantes de coração são os mais suscetíveis à memória celular onde o receptor do órgão experimenta uma mudança no coração.
O desencarne da Thais é muito recente. Quem sabe com o passar do tempo ela não perdoe o Thiago.
Beijos Mille.
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Keilaspm
Em: 07/06/2019
Oiê primo obrigada pela outra explicação no outro cap
Amei esse cap ela acordando perguntando sobre a filha não querendo ver o noivo ansiosa aqui pelos próximos caps
Até beijão parabéns pela escrita sempre maravilhosa
Resposta do autor:
Olá Keilaspm!
Obrigada, você é uma fofa!
Beijos!
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NovaAqui
Em: 07/06/2019
Alicia vai ter trabalho com esses espíritos que estão no entorno. Ainda bem que ela é Espírita e vai saber resolver com a ajuda dos dirigentes espirituais
Gostei da Nanda querer ver a filha e o noivo parece-me que vai dançar
Abraços fraternos procês aí!
Resposta do autor:
Bom dia NovaAqui
"Não devemos evocar nenhum Espírito, é preferível esperar que eles se comuniquem. Como terá certeza que é o Espirito da Thais que está se apresentando? Estamos sempre rodeados de Espíritos, na maioria das vezes inferiores, que anseiam por se comunicar. Você pode estar abrindo a porta a todos que querem entrar. E bem sabemos o que disso resulta".
Esse é o conselhio que Cristina deu para Alicia e ela não seguiu. Então...
Beijos.
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