Capítulo 3
Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 3
Quarta-feira 07:00
Alicia tinha acordado mais cedo, queria deixar o café pronto e a mesa arrumada para quando Thais chegasse. Ela havia acabado de sair de Niterói, mesmo assim, precisava se apressar.
Estava acostumada a acordar com a voz melodiosa do seu amor. O cafezinho pronto, o pãozinho quente. Hoje tinha a oportunidade de retribuir o carinho. Então, mãos à obra.
Rapidamente preparou tudo, café quentinho, empadinhas de vários sabores, suco de laranja, colocou as rosas em um vaso e se sentou no sofá com o celular na mão. Thais havia enviado uma mensagem as 06:30. Estava atravessando a ponte e logo chegaria em casa. Disse que estava tudo bem, mandou um beijo, disse ‘te amo' e depois não visualizou mais o WhatsApp.
-- Está faltando a sua música preferida -- lembrou. Pegou o controle do micro system e colocou a música para tocar -- Agora sim.
Segura teu filho no colo
Sorria e abrace teus pais enquanto estão aqui
Que a vida é trem-bala, parceiro
E a gente é só passageiro prestes a partir
Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá
07:45
Alicia repetiu a música umas cinco vezes. E nada de Thais chegar em casa.
-- O que aconteceu? -- ela estava a ponto de chorar. Consultou o relógio novamente, ligou novamente, nada. Nenhuma resposta -- Não é nada, não -- dizia para si mesma, tentando desesperadamente reprimir o desespero.
Alicia caminhou em direção ao quarto, com os olhos marejados de lágrimas. Sim, algo não ia bem. Havia alguma coisa errada, podia sentir isso até nos ossos.
Ligou para a mãe de Thais, mas só serviu para deixar a coitada em prantos. Sentou na cama sem saber o que fazer.
Lá fora, nuvens pesadas cobriam o Rio, deixando a manhã escura e triste.
Apertou os lençóis, tomada pelo desespero.
Quando o telefone tocou, levantou-se num salto e foi atendê-lo na sala. Tinha as mãos úmidas e trêmulas.
-- Alô! -- Sua voz soou estranha -- Thais, amor. É você? -- ela não conseguiu disfarçar sua ansiedade.
Tudo ficou em silêncio, do outro lado da linha.
-- Não senhora -- respondeu uma voz masculina -- Eu faço parte da equipe de socorro da concessionária. Infelizmente a senhora Thais Murtha sofreu um grave acidente.
-- Não! -- ela balbuciou, movendo a cabeça num gesto de incredulidade -- Não é verdade! -- Alicia tremia -- Para onde levaram ela?
-- Para a Santa Casa.
A ortopedista sentou-se, respirou profundamente e, com gestos lentos, encerrou a ligação. Branca como cera, ela olhava para o celular. Da sua boca, saía apenas um nome:
-- Thais -- murmurava, completamente perdida, como se chamar por ela trouxesse algum alívio. Tremendo muito, enviou uma mensagem para Cristina:
05 DE JUNHO DE 2019
Oi Cris. A Thais sofreu um acidente
Estou indo para a Santa Casa
08:30
Voltou ao quarto, lutando para conter as lágrimas. Diante do closet, ela ficou parada por um longo tempo. Inconscientemente, escolheu uma calça jeans e uma camiseta. Quando acabava de se vestir, o celular voltou a tocar.
Alicia correu atender na esperança que fosse alguém desmentindo a notícia. Mas era Cristina, preocupada e querendo ajudá-la.
-- Eu passo aí em dez minutos, Alicia.
-- Não posso esperar. Se quiser, pode me encontrar na Santa Casa.
-- Promete que vai chamar um táxi?
-- Prometo -- ela gostaria que Cristina desligasse logo o celular. Não conseguia controlar as lágrimas; sabia que ia explodir no choro a qualquer momento -- Te encontro lá.
Santa Casa 09:00
Poucos minutos depois, o motorista estacionou o táxi em frente ao Pronto Socorro da Santa Casa.
Quando entrou na recepção, Cristina já estava lá. A amiga deu alguns passos em sua direção.
-- Meus Deus, Alicia. O que aconteceu?
-- Thais sofreu um acidente na saída da ponte -- ela falou de supetão -- O carro capotou várias vezes. Eu não sei os detalhes.
-- Meu pai está de plantão, hoje. Acabei de falar com ele.
-- O que o seu pai disse? Ela está viva?
-- Está na sala cirúrgica, neste momento -- Cristina pegou no braço de Alicia e a levou na direção do corredor -- Vamos aguardar na sala de espera.
-- Eu preciso vê-la, Cris -- disse com fúria.
-- Agora não dá, Ali. Quando ela sair da sala de cirurgia, eu falo com o meu pai e ele libera a nossa entrada.
Cristina abriu a porta da sala de espera e levou-a até uma cadeira.
-- Vamos esperar aqui.
Alicia dessa vez estava do outro lado. Nunca havia sentido aquela sensação assustadora que pairava na Unidade de Acidentes.
Após algum tempo, Alicia olhou para o relógio de pulso.
-- Que demora. Eu não vou suportar essa espera.
-- Eu vou ver o que está acontecendo -- Cristina foi até o balcão de enfermagem e logo voltou -- Ela não sabe de nada. Vamos ter que esperar.
12:32
Alicia pulou da cadeira quando viu os enfermeiros saírem do centro cirúrgico empurrando uma maca pelo corredor.
-- É ela -- Alicia correu até eles. Um lençol branco a cobria até os ombros, e uma máscara de oxigênio cobria-lhe a boca e o nariz -- Você ficará bem, meu amor -- lágrimas encheram os olhos da ortopedista -- Eu ficarei com você. Não sairei de perto um minuto sequer, prometo.
-- Deixe os enfermeiros a levarem, Alicia -- ela sentiu uma mão em suas costas. Não precisou virar-se para saber que era o pai de Cristina -- Não há nada mais a fazer. Sinto muito.
As duas palavras pareceram ecoar na cabeça de Alicia.
-- NÃO!!! -- ela berrou. Uma raiva incontrolável invadiu a ortopedista observando o médico balançar a cabeça com tristeza -- Ele está errado, meu amor. Eu não vou desistir de você. Me ajuda Cris, me ajuda... -- Alicia acariciava os cabelos de Thais, beijava o seu rosto.
Cristina nada disse. O que havia a ser dito? Seu pai já dissera tudo.
Alicia ainda lutava contra a realidade. A dor aumentava, formando ondas de crescente agonia.
-- Façam alguma coisa. Estamos perdendo tempo.
-- Alicia -- Doutor Paulo parou ao lado dela, depois de fazer um sinal para os enfermeiros levarem Thais -- Constatamos a morte cerebral -- o toque de compaixão na voz do médico era visível.
Alicia se virou para ele, cheia de esperanças.
-- Existem critérios rígidos para definir morte encefálica. Pelo menos seis horas em observação, dois médicos diferentes devem realizar o exame clínico, vários testes, vários exames, eletroencefalograma, angiografia cerebral...
-- Eu sei de tudo isso, Alicia. E vamos seguir o protocolo -- disse o médico, virando-se para enxergar os olhos verdes da ortopedista -- Sou neurologista há 20 anos, especialista em medicina intensiva e de emergência. E você...uma ótima médica, nós dois sabemos quando uma lesão cerebral é irreversível.
Alicia enfiou as unhas nas palmas das mãos.
-- Não posso... -- ela parou, sem conseguir concluir a frase. Não admitiria a derrota.
-- Podemos levá-la, doutor Paulo? -- perguntou um dos enfermeiros.
-- Alicia, vem comigo -- pediu Cristina -- Vamos deixá-los prosseguir com os procedimentos.
Com dificuldade, Alicia se afastou para dar espaço a maca empurrada pelos enfermeiros.
-- Vamos sentar -- Cristina caminhou em direção as cadeiras da sala de espera enquanto Alicia jazia, prostrada.
-- Não vou perder a esperança -- afirmou a médica, com um sorriso melancólico.
Hospital do Coração 14:05
Fernanda abaixou a cabeça, enquanto a enfermeira colocava a bandeja a sua frente.
-- O que aconteceu? Você parece ter chorado.
-- Não é nada, não -- respondeu a psicóloga, tentando desesperadamente esconder a tristeza -- Estou com saudades de casa.
-- Isso é normal -- ela sorriu -- Não esqueci do seu copinho de leite!
-- Obrigada! Sei muito bem que não é sua obrigação.
-- Não precisa agradecer. Não me custa nada. Está tranquilo hoje, posso me dar ao luxo de visitar meus amigos.
Fernanda tentou sorrir. Durante toda a manhã, havia feito o possível para disfarçar a angústia que lhe invadia a mente e o coração, mas manter o sorriso, estava cada vez mais difícil.
-- Bem, dentro de meia hora termina o meu turno -- Suelen consultou o relógio -- Vou dar uma passadinha pelos quartos depois, vou embora.
Fernanda evitou encarar a enfermeira. Estava com a sensação ou o pressentimento de que algo aconteceria.
Suelen caminhava em direção a porta, mas parou de repente e se virou.
-- Alguma coisa não está bem, não é mesmo, Nanda? Não quer me dizer de que se trata?
Com os olhos marejados de lágrimas ela foi sincera.
-- Sim, estou com a sensação que algo vai acontecer.
Suelen voltou e parou ao lado da cama.
-- Algo ruim?
-- Não sei. É uma sensação estranha, um aperto no peito, uma dor esquisita.
-- Quer que eu chame o médico?
-- Não! -- ela riu, balançando a cabeça -- Não é físico, é algo espiritual.
-- Hum -- Suelen sentou na cama -- Não entendi muito bem, mas acredito em pressentimento. Quer que eu fique um pouco com você? Estou louca pra contar umas coisinhas a meu respeito. Quer ouvir?
-- Adoraria -- Fernanda ajeitou-se na cama.
-- Eu tenho uma namorada -- Suelen esperou por alguma reação de Fernanda -- Algum problema?
-- Imagina! Pode continuar.
-- Ela é um amor de...
Santa Casa 18:40
Doutor Paulo parou diante de Alicia.
-- Infelizmente, mesmo depois de seis horas em observação, Thais apresenta lesão irreversível no cérebro, temperatura corporal acima de 35 graus e anormalidade no grau de saturação arterial. Ela foi submetida aos exames de morte encefálica e constatado parada irreversível da respiração e de todas as funções do cérebro, incluindo o tronco.
-- Não, não pode ser -- Alicia tentava desesperadamente fugir da realidade. Não conseguia acreditar que aquilo tivesse realmente acontecendo. Era um sonho mau, do qual precisava acordar!
-- Alicia -- Cristina fez uma pausa, procurando as palavras apropriadas, então concluiu: A Thais não vai mais voltar, meu anjo.
Alicia parecia distante, o seu olhar perdido, como se não estivesse vendo ninguém à sua frente. Então, sussurrou em meio ao choro:
-- Posso me despedir dela, doutor?
-- Claro -- doutor Paulo, apontou para a porta que levava à UTI -- Vamos, eu te levo até ela.
19:03
Alicia se despediu do seu amor. Abraçou, chorou, gritou. Pensar que Thais já não pertencia a este mundo era uma ideia insuportável.
-- Amor! -- sussurrou, imersa em desespero, acariciou os cabelos negros -- Não pode ser! Não me deixe, meu amor. Eu sei que está me ouvindo. Não me deixe, eu te peço. Quem vai cantar para mim? Quem vai me chamar de bebê?
Apesar de conviver com situações de vida e morte frequentemente, era a primeira vez que Alicia sentia na pele a dor de perder alguém tão próximo, tão amada.
Uma leve batida na porta. Cristina, entrou, fechando a porta silenciosamente.
-- Alicia -- ela se aproximou e colocou o braço nos ombros da amiga -- Eu sei que é um momento de dor extrema, mas temos que conversar sobre uma coisa muito importante.
Alicia não desviou o olhar do rosto de Thais.
-- A mãe dela autorizou a doação dos órgãos, porém, ela precisa também do seu consentimento.
Alicia fechou os olhos com força por um instante, mas o gesto não foi suficiente para impedir que as lágrimas caíssem com abundancia.
-- Nós conversamos várias vezes sobre doação de órgãos. Era o seu desejo então, vamos respeitar.
Cristina acariciou o rosto de Alicia com ternura, depois beijou o rosto pálido de Thais.
-- Não podia esperar outra coisa de duas pessoas tão lindas como vocês.
Cristina saiu da sala. Alicia se inclinou sobre Thais e sussurrou em seu ouvido:
-- Hoje, eu cantarei para você -- ela deu um beijo de leve nos lábios de sua amada e recostou a cabeça em seu ombro -- Até breve, meu amor.
Não é sobre ter todas as pessoas do mundo pra si
É sobre saber que em algum lugar alguém zela por ti
É sobre cantar e poder escutar mais do que a própria voz
É sobre dançar na chuva de vida que cai sobre nós
É saber se sentir infinito
Num universo tão vasto e bonito, é saber sonhar
Então fazer valer a pena
Cada verso daquele poema sobre acreditar...
Segura teu filho no colo
Sorria e abraça os teus pais enquanto estão aqui
Que a vida é trem-bala, parceiro
E a gente é só passageiro prestes a partir
Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá
100Palavras
Cristina, Natalia, Raquel, Alicia, Thais, Sérgio...
05 DE JUNHO DE 2019
Cristina
Olá pessoal.
Infelizmente foi confirmada a morte encefálica da nossa querida Thais. Dentro de algumas horas os aparelhos serão desligados.
23:30
Raquel
Meu Deus! Que tristeza.
23:32
Natalia
Estou indo até aí
23:33
Sérgio
Alicia deve estar destruída. Tadinha
23:35
Fim do capítulo
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Brescia
Em: 29/06/2019
Boa tarde mocinha.
Não é fácil quando se perde alguém, mas como os espiritas nos doutrinam, estamos aqui para melhorar e temos o nosso tempo para fazê-lo . Até na tristeza podemos doar alegrias.
P.S: capitulo emocionante.
Baci piccola escritrice.
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Morena37
Em: 05/06/2019
Boa tarde,Vandinha adoro suas histórias.
O capítulo foi emocionante,a despedida nunca é fácil,e nessa hora não pensamos que reecontraremos,a pessoa que amamos,só que bate e a dor é o desespero.
Amanha faz exatos quatro meses que perdi minha esposa,foi por causas "naturais", a doação de órgãos descartada.
Gostando muito da história,como t disse adoro sua escrita.
Bjs e abraços fraterno...
Resposta do autor:
Bom dia, Morena.
Os que partiram estão mais próximos de nós do que possamos imaginar. E não nos esqueçamos dos que partilham conosco da mesma dor e de idêntica saudade. Em nome do amor, não nos tomemos egoístas. Não nos isolemos, nem ficamos ainda mais os que, ao nosso lado, aguardam pela migalha do nosso carinho, o sorriso da nossa ternura, nutrindo-se do nosso afeto.
A dor é grande, mas devemos seguir e cumprir a missão que Deus nos designou.
Um beijão, meu anjo. Força e Luz.
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Mille
Em: 05/06/2019
Ola querida Vandinha
Aj ai, eatou com lágrimas nos olhos.
Muito triste e ela cantar a música que Thais gosta ai que a emoção falou mais alto.
Bjus e até o próximo capítulo
Resposta do autor:
Bom dia, Mille.
A vida é feita de momentos, momentos pelos quais temos que passar, sendo bons ou não, para o nosso aprendizado. Nada é por acaso.
Beijão, meu anjo.
Paz e Luz.
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Karu Dias
Em: 05/06/2019
Chorei aqui.
Forças Alice! Não é uma despedida para nunca mais,mas sim um até breve rumando a novos reencontros.
""Quando se ver a beira do desânimo,acelere o passo para frente proibindo parar.
Ore ,pedindo a Deus mais luz para vencer as sombras.
[...] Guarde convicção de que todos estamos caminhando para adiante , através dos problemas e lutas ,na aquisição de experiência,e de que a vida concorda com as fases do refazimento de nossas forças,mas não se acomoda com a inércia em algum momento." - André Luiz
Resposta do autor:
Bom dia, meu anjo!
Nossas preces alcançam os seres amados onde quer que estejam, levando até eles nossas melhores vibrações.
E, para que possamos sentir as vibrações enviadas pelo pensamento dos amores que hoje vivem em outras dimensões, aquietemos nossas mentes e corações. Com certeza, experimentaremos algum conforto.
A prece é mecanismo abençoado que nos aproxima de Deus e dos afetos que estão distantes.
Beijão.
Paz e Luz!
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NovaAqui
Em: 05/06/2019
Lágrimas nos olhos na hora que Alicia cantou....
Uma vida se vai, novas esperanças surgem para outras pessoas que aguardam ansiosamente por uma doação
Abraços fraternos procês aí!
Resposta do autor:
Bom dia, meu anjo!
"Doar órgãos é fazer com que a vida tenha continuidade, é sofrer com a perda de alguém e transformar isso em força para ajudar alguém".
Um dia maravilhoso para nós.
Beijos.
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