Capítulo 2
Diálogo com os Espíritos -- Capítulo 2
Terça-feira 08:00
Segura teu filho no colo
Sorria e abrace teus pais enquanto estão aqui
Que a vida é trem-bala, parceiro
E a gente é só passageiro prestes a partir
Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá
Laiá, laiá, laiá, laiá, laiá
Embora nunca tivesse sido uma pessoa preguiçosa, Thais odiava acordar cedo. Deixar o paraíso que era a sua cama estava ficando cada vez mais difícil.
Perdida em pensamentos, Thais não percebeu a chegada de Alicia, a não ser quando dois braços a agarraram pela cintura.
-- Ai bebê, que susto! -- ela se virou depressa -- Eu não ouvi você chegar.
-- Estava quietinha, ouvindo você cantar -- Alicia segurou-a de encontro ao corpo, beijando-a suavemente -- Eu vou sofrer muito de saudades de você, amor. Só Deus sabe o quanto você me faz falta.
-- Também vou sentir saudades, bebê -- ela disse, acariciando o rosto de Alicia e olhando em seus olhos com ternura -- Se tudo correr conforme o previsto, eu volto amanhã pela manhã.
Alicia beijou-a na boca com delicadeza.
-- Não lembro a última vez que ficamos longe uma da outra.
-- Eu lembro. Foi quando a minha tia faleceu -- sorriu divertida -- Você me ligou a noite inteira dizendo que não estava conseguindo dormir.
Alicia também sorriu.
-- Agora eu sou grande, não faço mais isso -- disse, ainda sorrindo.
-- Acho que dessa vez quem vai passar a noite ligando, será eu -- Thais foi até a cafeteira e encheu duas canecas -- Estou tão assustada -- a oncologista disse, os olhos castanhos estranhamente assombrados.
-- Thais, meu amor -- Alicia pegou suas mãos frias -- Vai dar tudo certo. Você vai ver a sua filha, vai pegá-la no colo e a cobrir de beijos.
Lágrimas súbitas inundaram os olhos da morena.
-- É muita injustiça o que estão fazendo comigo. Por que o juiz deu a guarda ao Jean e não a mim?
Alicia tirou as canecas das mãos de Thais e as colocou sobre a mesa. Depois, a abraçou com carinho.
-- Aquele juiz é um homofóbico -- Alicia disse, acariciando o rosto dela e olhando em seus olhos com ternura -- Nós vamos recorrer e ganhar, você vai ver.
Alicia abraçou-a ainda mais forte. Ficaram assim por um longo tempo. Thais fechou os olhos e encostou a cabeça no peito dela.
-- Eu te amo, Ali -- Thais sussurrou com a voz rouca -- Sempre vou te amar.
Hospital do Coração 09:00
Deitada no leito da ala de cardiologia do Hospital do Coração, Fernanda observava o sol brilhante que entrava pela janela aberta. Mais um dia naquele ambiente que já era tão familiar. Mais um dia de espera.
O tique-taque do relógio sobre a porta, o ruído dos passos dos enfermeiros pelo corredor, o som dos instrumentos cirúrgicos na sala de esterilização, não mais incomodava.
A porta se abriu e dona Matilde entrou sorridente.
-- Bom dia, meu amor -- a senhora caminhou sobre o piso branco e curvou-se sobre o leito para beijar o rosto da filha -- Você parece bem melhor hoje.
Fernanda ajeitou-se contra os travesseiros.
-- Já passou -- ela balançou a cabeça -- Fico depressiva cada vez que a cirurgia de transplante é cancelada.
Matilde passou a mão pelos cabelos de Fernanda. Amava demais a filha, sem pensar duas vezes trocaria de lugar com ela e ficaria doente no seu lugar. Infelizmente não podia, e apenas restava lutar ao seu lado e orar a Deus para que a proteja.
-- Você tem que estar bem para quando o seu novo coração chegar.
-- Eu sei mamãe, mas é tão difícil -- Fernanda fez uma pausa para respirar profundamente -- Tenho passado por momentos de angústia. Isto porque quanto mais espero por um doador, mais as chances de viver vão diminuindo.
-- Bom dia! -- a porta se abriu e doutor Daniel entrou no quarto acompanhado de um enfermeiro -- Como vai a minha paciente preferida?
-- Não se empolgue, querida. Ele fala isso pra todas -- disse o rapaz, com desdém.
-- Não dê ouvidos ao José...
-- Jô, por favor.
-- Jô -- corrigiu o médico -- Ele é bem desagradável.
Doutor Daniel riu, José fez uma careta.
A risada dele pareceu contagiá-la e logo Fernanda ria também.
-- Bem, Fernanda -- afinal, quando parou de rir, ele a encarou com expressão de seriedade absoluta -- Me contaram que você está muito desanimada.
Fernanda suspirou e balançou a cabeça. Doutor Daniel prosseguiu:
-- Ontem, estávamos na esperança de acontecer um transplante. Um dos familiares aceitou que fosse doado o coração, mas outros familiares não concordaram. E como você sabe, precisamos ter total compreensão de todos para poder ser doado.
Fernanda abaixou a cabeça.
-- Eu espero que as pessoas sejam mais compreensivas em saber doar.
-- Também espero, Fernanda.
-- Não existe outra forma do doador garantir que o seu desejo de doação seja respeitada? -- indagou, Matilde.
-- Apenas a família do falecido pode autorizar a doação de órgão, o que dificulta o processo em muitos casos. Não adianta deixar em cartório, porque se a família disser não, nós temos que respeitar.
-- Seis pacientes tiveram mortes encefálicas no estado durante o período que estou internada, doutor. O problema foi que na maioria dos casos as famílias deles não aceitaram doar os órgãos.
-- Muito triste, pois, não é apenas o coração que perdemos. São mais de dez órgãos que podem ser transplantados: coração, pulmão, fígado, pâncreas, intestino, rim, córnea e osso, entre outros -- disse José, com pesar.
-- Eu sei que é muito frustante, Fernanda, mas vamos ter que aguardar -- o médico sorriu e deu um tapinha no ombro dela -- Enquanto isso, o José vai coletar sangue para realizarmos os exames de rotina.
Fernanda esticou o braço e fechou os olhos. Fazia tempo que orar, esperar e confiar, eram as suas prioridades de todos os dias, é o que a fazia se manter firme.
10:30
-- Até amanhã, amor. Te amo muito! -- disse Thais, acariciando os cabelos dourados de Alicia.
A ortopedista ficou quieta, olhando-a entrar no veículo e desaparecer na primeira curva. Depois fechou olhos e sussurrou:
-- Se algum dia eu perder o seu amor, então temo que não terei mais razão para viver.
Logo depois entrou no carro e saiu cantando os pneus em direção ao hospital.
Hospital da Barra 16:00
Doutora Cristina meneou a cabeça, fazendo um gesto negativo.
-- Podem parar. Não há mais nada o que fazer por ele -- a médica olhou para o jovem sem vida -- Paciente Vinícius Ferrari. Hora do óbito: 16:01.
Cristina saiu da sala de emergência e foi direto para o conforto médico. Encontrou Alicia sentada na poltrona do canto com uma caneca de café na mão.
-- Sabe o que realmente me estraga o dia?
-- Não -- respondeu Alicia, olhando fixamente para ela.
-- Ver um jovem, cheio de vida e sonhos, morrer dessa forma tão trágica, não é fácil aceitar. Isso me destrói. Sem contar que tenho dificuldade em comunicar a família.
-- É natural que a morte de um paciente nos provoque dor, Cris. Principalmente os jovens. Emocionar-se é uma grande capacidade do homem e não deve ser inibida pelo profissionalismo. Compartilhar a dor com os familiares nos torna mais humanos.
Cristina soltou um suspiro e sentou-se no sofá ao lado dela.
-- E a Thais, como está?
-- Em guerra com o ex marido. Nesse momento ela deve estar implorando para ver a menina e, isso me revolta.
-- Uma mãe nunca deveria ser separada do seu filho, é desumano.
-- Também acho -- Alicia tomou um gole de seu café, pousou sua caneca cuidadosamente sobre a mesa e se levantou -- Vou visitar os meus pacientes da Ala B. Vem comigo?
-- Não posso. Tenho que voltar ao PS.
-- Então tá -- Alicia caminhou até a porta e a abriu -- Amanhã tenho plantão, mas se quiser ir jantar com a gente, ficaremos muito felizes. E pode levar a Natália, se quiser.
Cristina riu com ironia e se reclinou melhor no encosto da poltrona.
-- Jamais! Sabe muito bem que a Natália é apaixonada por você.
-- Deixa de ser boba, ela está com você e é com você que ela vai ficar.
-- "É só você fazer assim. Que eu volto" -- Cristina estalou os dedos e riu -- Não esquenta, eu não me importo. Quando comecei a namorar a Natália, sabia que estava pisando em terreno perigoso.
-- E eu sou a pessoa mais apaixonada do mundo. Para mim só existe uma mulher no mundo: Thais.
-- Eu sei, doutora, mas, mesmo assim, caso aceite o convite, prefiro não levá-la comigo.
Alicia sorriu e saiu do conforto médico. Adorava Cristina, era a sua melhor amiga. Infelizmente, o destino prega peças e ela foi se apaixonar justo por Natália, sua ex namorada.
-- Doutora Alicia!
Ela não tinha percebido o quanto estava perdida em seus pensamentos até ouvir seu nome ser chamado tão alto que a fez pular.
-- Senhor Hans, que susto! -- disse e respirou fundo, ainda se recuperando do sobressalto -- Não dei alta para o senhor? O que ainda faz por aqui?
-- Em 27 de abril de 1941, deixamos a Alemanha fugindo da implacável perseguição nazista. Não havia outra opção. Era fugir ou morrer nos campos de concentração e extermínio que já se espalhavam pelo continente europeu àquela altura da Segunda Guerra Mundial -- ele disse, na penumbra do corredor.
Alicia passou a mão pela testa.
-- Senhor Hans, acho melhor voltar para o quarto. Vou chamar uma enfermeira para ajudá-lo. Não devia ficar andando por aí com o pé quebrado.
O idoso de 99 anos, se virou e sumiu na escuridão. Alicia balançou a cabeça e sorriu amavelmente.
-- Que vovô danado -- Alicia deu meia volta e, rapidamente, se dirigiu ao balcão de enfermagem -- Raquel!
A enfermeira se virou para fitá-la.
-- Sim, doutora.
-- Por que não me avisaram que o senhor Hans voltou?
Raquel ficou parada, olhando-a por alguns instantes, depois caminhou até ela sem entender.
-- O senhor Hans foi para casa ontem. Foi a doutora quem o liberou, lembra?
Alicia empalideceu por um momento, atônita.
-- Impossível...Eu... -- ela olhou em direção da porta do corredor. Como podia? Tinha certeza que era o senhor Hans -- Bem, devo ter me enganado. Desculpa, Raquel.
-- Você me assustou, doutora.
Alicia deu risada, mas Raquel pode perceber que ela não estava achando engraçado.
-- Melhor eu ir embora. Amanhã, estarei de plantão apenas à tarde, caso algum parente quiser conversar comigo, avise que passarei pelos quartos depois das 16:00.
-- Quando a doutora Thais voltará de Niterói?
-- Amanhã de manhã. Por isso estou saindo mais cedo -- Alicia sorriu com satisfação -- Vou passar na floricultura e comprar um buquê de rosas azuis.
-- Hum, rosas azuis que significam: Amor profundo e espiritual, sentimento de transcendência e harmonia.
-- Meu amor merece. Também vou comprar empadinha de frango, de queijo, de camarão, de palmito...
-- Nossa!
Alicia riu.
-- Acredite, ainda não conheci nessa vida alguém que gostasse tanto de empadinhas como Thais!
-- Percebi -- comentou Raquel, divertida.
Alicia balançou a cabeça, acenando com uma das mãos, em um gesto de despedida -- Até mais.
O celular assobiou com uma mensagem no WhatsApp. Sem deixar de caminhar, pegou o aparelho e verificou quem tinha mandado a mensagem.
100Palavras
Cristina, Raquel, Alicia, Thais, Sérgio...
04 de junho de 2019
Angelina
Domingo é o niver do chefão. Vou levar um bolo
17:50
Cristina
Estou de regime
17:51
Sérgio
Levo refri
17:52
Natália
Regime, de novo?
17:52
Sérgio
Cristina
Estou de regime
Sobra mais pra nós
17:53
Alicia
Levo salgadinhos
17:54
Thais
Levo uma torta gelada
17:55
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
perolams
Em: 04/06/2019
Já vi que a história promete muitas emoções, começando com a partida de Thais. Uma das minhas maiores curiosidades depois desses dois capítulos é o que acontecerá com a filha dela. Algo me diz que o caminho dessa criança vai cruzar com o de Fernanda.
E Raquel hein? Se tivesse o dom de Alícia, teria ainda que conviver com o senhor Hans.
Resposta do autor:
Olá perolams
Que prazer te encontrar por aqui! Muitas emoções mesmo. Pensa o espírito do senhor Hans dia e noite atrás da Raquel. Coitada.
Beijos. Até amanhã.
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Mille
Em: 04/06/2019
Ola Vandinha
Muito triste a Thais ter que se humilhar para ver a filha, só espero que esse Jean trate a filha bem.
Será que choque para a Alicia perder a esposa, mais ela como médica irá permitir a doação dos órgãos.
Deve ser horrível essa espera, a esperança vai se escorrendo a cada dia que não aparece um doador.
Bjus e até o próximo capítulo
Resposta do autor:
Olá Mille
Ainda existem milhares de pacientes que morrem antes do transplante acontecer, tendo em vista que 47% das famílias brasileiras se negam a doar os órgãos de um parente falecido, aliado a que, até mesmo pessoas em vida tem receio de fazer a doação dos mesmos. A espera é angustiante.
Beijos. Até amanhã.
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Karu Dias
Em: 04/06/2019
Estou amando essa nova estória!
Coração apertadinho com essa viagem da Thaís...
Como será a (não)aceitação da Alicia com a partida da sua amada?
E a filhinha de Thaís, será que é feliz longe dela?
Ela ficarácom o pai após a morte de sua mãe?
Se um dia chegar a partir,mainha sabe que quero doar o que for possível e dar uma nova chance a alguém que quer muito viver e continuar seu caminho.
Resposta do autor:
Olá Karu Dias.
Doar é muito mais que um ato de coragem. É um ato de bondade. É permitir que outras pessoas possam continuar a viver. O que levaremos depois de nossa morte? E o que podemos deixar? Podemos deixar como lembrança o que fizemos pelos nossos semelhantes. E com toda a certeza, a família e o receptor dos órgãos serão gratos.
Parabéns por sua atitude de amor ao outro e de desapego.
Beijos. Até amanhã.
Paz e Luz.
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zilla
Em: 04/06/2019
Estou adorando essa sua nova história Vandinha!
Mas, ñ sei estou com leve pressentindo de que vai acontecer algo muito ruim com a Thais nessa viagem snif!
Já estou de coração partido pela a Alicia!
E a Fernanda (in)felizmente ficará bem com isso que irar acontecer!
Bjs e até o próximo capítulo sua linda haha!
Quais serão os dias de postagens?? Ou ainda não tem dias certos Van!?!?!?!
Resposta do autor:
Olá minha querida, zilla!
Que bom que esteja gostando.
Doação de órgãos: "a vida que se refaz da dor". A alegria de salvar vidas ajuda a superar o luto da perda.
Até 15 de junho, postagens todos os dias.
Beijos.
Paz e Luz.
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NovaAqui
Em: 04/06/2019
Por isso todos em minha família estão avisados que sou doadora de órgãos. Não tem conversa. É para doar o que for possível e se for possível.
Será essa foi a última mensagem?
Vamos ver
Abraços fraternos procês aí
Resposta do autor:
Olá NovaAqui.
Parabéns pelo ato de amor ao próximo.
Para entender a importância da doação, basta se colocar no lugar dos que precisam. Como nos sentiríamos se fossemos nós na fila de transplantes? A ansiedade e angústia na espera do telefone tocar com a possibilidade da doação.
Abraços, querida.
Até amanhã.
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