Capítulo 59
Capítulo 59 - Caroline
Meu despertador tocou no ápice das 5h40 das manha. Meu corpo não queria levantar, mas fazer o que a vida chama. O Pingo, que estava na cama, apenas olhou pra mim e se enroscou todo em volta da Fernanda, que o máximo que fez foi passar o braço no cachorro e voltar a dormir. Eu dei risada da cena. Me arrumei rapidamente e parti em direção ao hospital. Meu carro está estacionado na rua lateral da casa de pedra, o que anda facilitando bem minha locomoção até o hospital. Hoje é meu último dia de trabalho antes de sair de férias, a Fernanda oficialmente saiu ontem, mas hoje ainda vai passar no hospital para resolver uma coisinha ou outra. Eu viciada em trabalho como sou, acabei marcando duas cirurgias não muito complicadas para hoje.
O clima de Portugal está começando a ficar frio de novo, depois de um verão de fritar os miolos, estamos entrando no período congelante para a região norte do país. No caminho até o hospital dá uns 15 minutos de carro, mas eu acabei no caminho fazendo uma somatória desse último ano da minha vida, acreditam que já faz um ano que estou morando aqui, vivendo com a Fer? As vezes nem eu acredito nisso. Nos haviamos combinado que iriamos viajar sempre que possível e conhecer Portugal todo, somos tão boas no nosso trabalho que a primeira viagem será hoje a tarde. Não conseguimos tirar um final de semana livre desde que o hospital abriu.
E a Fer, caraca, vou te dizer, se tornou uma administradora de ponta. Ela está puxando a coordenação do hospital com a Marcela, eu só dou palpites na parte clínica, que é a minha função mesmo, cuidar de número e dessas coisas não é pra mim não, eu sou da cirurgia, da criança nascendo, do mundo. Desde que inauguramos, já nasceram 3.000 crianças na nossa maternidade, sem contar os atendimentos de câncer que estamos tendo. O hospital está de vento em popa, a coisa ruim é que não temos mão para atender a todos, mas dentro da nossa possibilidade, damos nosso melhor. A Fer se mostrou uma pessoa super dedicada e apaixonada pelo trabalho dela, sem contar que como namorada ela está de parabéns. Claro que às vezes tem aqueles desencontros de informação e umas alfinetadas, mas posso dizer que isso é quase zero, sério, estou me sentindo muito bem depois que vim pra cá.
Chegando ao hospital deixei minha bolsa no meu consultório e subi para o andar da internação para passar visita em algumas pacientes. Duas delas eu consegui liberar de alta e outras três vão ficar para um colega meu liberar entre amanhã e depois, já que a partir do meio dia de hoje eu não quero mais ver bisturi ou pacientes por pelo menos 3 semanas. Depois disso subi ao centro cirúrgico, que fica no penúltimo andar do pequeno prédio. Nesse tempo que estou aqui consegui montar uma equipe cirúrgica de qualidade, que eu confio para trabalhar. Uma anestesista portuguesa, Eva, que fala bem puxado, um ginecologista brasileiro, o Costa, e uma instrumentadora espanhola, a Madá. Pensa como é difícil a comunicação nessa sala, mas vou dizer que do nosso jeito nós quatro nos entendemos muito bem. Eu e o Costa, já somos capazes de nos comunicar com olhares nas cirurgias, isso é essencial.
Foi complicado no começo, como qualquer início de relação, sempre tem aquele medo, adaptação. E o fato de eu ser diretora clinica deu uma dificultada, demorou um pouco para eles entenderem que quero tudo com qualidade, não por causa do cargo, mas pela maneira como cuido das minhas pacientes. E a dona Fernanda, caraca, marcava território a todo momento. Em geral eu quase não vejo ela no hospital, o que eu acho bem saudável, mas nesse começo ela passava na sala cirúrgica de tempos em tempos. Teve um dia que acabei indo almoçar com essa equipe, super de boa, e ela se auto convidou para ir. Entendi o lado dela, de querer se mostrar presente, mas acabei tendo que conversar e dar um toque, com o tempo ela melhorou.
Quando cheguei para o procedimento de hoje eles já estavam na sala cirúrgica, apenas esperando eu chegar para começarmos o procedimento. Assim que eu entrei na sala, a anestesista avisou os outros:
- Chefe em sala - é um código médico antigo, sempre usamos para avisar, óbvio, que o chefe ou o mais velho está na sala cirúrgica. Isso é mais usada por médicos jovens, os residentes, mas acabam usando pra mim também, eu acho graça.
- Bom dia. Vamos trabalhar? Como vocês estão? - perguntei aos três.
- Tudo certo chefe. Vamos trabalhar que tem gente que sai de férias hoje. - a anestesista respondeu.
- Finalmente. Cara, não tem um dia que fico sem operar nesse lugar, preciso de um tempo de descanso. Vamos, vou pegar a paciente e vocês vão se arrumando. Meio dia tenho que estar longe daqui. - Eu saí da sala seguida pela anestesista, enquanto o outro ginecologista e a instrumentadora foram se organizando para começarmos. Quinze a vinte minutos depois, eu já estava com o bisturi na mão, pronta para começar. - Lamina 10! - Esse é o código que falamos ao pedir o bisturi e toda a mágica começar.
A cirurgia foi rápida, era só para tirar o útero, nada que eu já não tenha feito algumas muitas vezes. O procedimento em si foi bem tranquilo, quando eu estava terminando de tirar o útero, eu escutei a instrumentadora falando: “Chefe em sala”. Se a chefe já está em sala, só pode ter uma única outra chefe, no caso a Fer. Eu continuei minha cirurgia, como se ela não tivesse chego, tanto porque esse é um momento importante do procedimento. Primeiro eu sai da zona crítica, depois eu levantei a cabeça. Quando consegui olhar, ela estava encostada na porta da sala, vestida com a roupa privativa do centro cirúrgico e com a máscara. Só seus olhos estavam visíveis, e posso dizer que quando eu olhei, começaram a brilhar, como se mostrasse que estava sorrindo debaixo da máscara. Continuei operando enquanto conversava com ela:
- Fala doutora. Estou em cirurgia.
- Sério?! Nem percebi. - eu dei risada por baixo da máscara - Quanto tempo pra terminar essa? Queria falar com você.
- Mais uns 10 minutos pra eu fechar a cavidade. Espera?
- Sim. Posso ficar aqui na sala?
- Pode. - e voltei toda minha atenção a cirurgia que eu estava terminando. Essa é uma habilidade muito boa em mim, o mundo pode estar acabando lá fora, eu fico completamente centrada na cirurgia e na minha paciente. Terminei o resto da cirurgia, quando faltava apenas dar os pontos da pele, olhei para o assistente cirúrgico, o outro ginecologista, ele entendeu a mensagem e falou “ Eu fecho chefe”, se referindo a ele dar os pontos finais e terminar a cirurgia.
Eu sai de campo, ou seja sai da área estéril da cirurgia. Fui até perto da Fernanda, sem nenhuma palavra ela se esticou, na ponta dos pés, e soltou o nó de cima do meu avental cirúrgico, perto do pescoço, me liberando daquela roupa quente e pesada. Sempre que ela vem ver alguma cirurgia minha eu peço para ela fazer isso no final, já que segundo ela mesmo, seus pensamentos vão as nuvens quando me tira do avental cirúrgico. Se ela gosta, quem sou eu para não deixar.
- Costa, vou canetando tudo. Qualquer coisa estou no conforto. E faz um ponto bonito aí, nada daquelas coisas tortas. - e assim avisei que estaria no conforto médico escrevendo a parte burocrática da cirurgia. - Doutora, vamos?
A Fernanda foi comigo andando até o final do corredor, onde estava a sala do conforto médico, um pequeno espaço com dois sofás, uma geladeira e algumas comidas. Sentei em um deles, com a prancheta na mão e vários papéis do prontuário. Assim que finalmente me acomodei, a Fer começou a falar.
- Sabe como eu acho sexy você operando? Caraca e tirar aquele avental me leva a lua.
- Eu sei amor, por isso virei pra você soltar. Não sabia que vinha no hospital hoje.
- A Marcela me ligou, pedindo pra eu assinar os papéis da compra dos novos leitos. Ela quer resolver isso na próxima semana já. Aí aproveitei e vim ver você operando, sabe que eu adoro. Tem mais cirurgia ou já vai embora?
- Tenho mais uma agora. Vou escrever o burocrático e já coloco a paciente em sala. Deve levar mais uma horinha. Antes do meio dia chego em casa.
- Eu espero princesa, porque o voo está marcado para as 14h. Não atrasa, por favor.
- Não vou atrasar amor. Só se der algo muito errado na cirurgia.
- Então faz certinho. Cara, você fica linda toda concentrada e mais ainda vermelha quando te elogio. Comeu alguma coisa hoje?
- Nem comi nada, vim direto. Você nem se mexeu de manhã, aí não fiz barulho.
- Vou pegar algo pra você comer. E não reclama. - ela falou isso levantando e indo até a estufa que ficava na sala, pegou um salgado e um copo de suco, voltou ao sofá, entregando a comida pra mim - Na próxima semana você vai comer certinho dona Carol, vou pegar no seu pé. Nada de ficar o dia todo sem comer, onde já se viu.
- Nossa, quanto cuidado comigo. Sei que tem alguma coisa por baixo disso, te conheço Fer.
- Claro que tem, você precisa estar bem pra eu usar seu corpinho todos os dias.- A parte do “todos os dias” ela falou lentamente e baixinho, fazendo eu ficar super sem graça. - Vai, caneta esse papel todo e vai operar. Eu te espero em casa, tudo bem?
- Tudo bem amor, vou tentar não me atrasar. Te amo linda. - Ela me deu um selinho e foi saindo do centro cirúrgico. Eu terminei de comer o lanche que ela pegou pra mim, eu realmente estava com fome, a barriga chegava a fazer barulho. Eu sempre fui de operar a noite, final do dia, mas aqui em Portugal acabo funcionando muito melhor pela manhã, não sei o porque, então só acabo me alimentando a noite, com exceção de quando tenho essas visitas da Fer.
A segunda cirurgia do dia era uma coisa mais leve, na verdade mais rápida, mas que se desse algo de errado iria levar um certo tempo para resolver. E claro, como tenho horário marcado, claro que deu errado. O mioma, o que eu tinha que retirar, estava colado em uma parte do intestino, o que me gastou um tempo bem maior para separar o intestino do mioma e depois retirar ele. Não foi assim muito tempo, mas a cirurgia que era para ser de 40 minutos, acabou durando quase duas horas. Teve uma hora que o Costa estava mais impaciente que eu por causa do horário, tive que acalmar o camarada.
- Chefe, é que se você atrasar, a doutora vai vir me dar bronca. Não pode não chefe.
- Costa, sossega aí e segura esse sangramento. A Fernanda não vai aparecer aqui, te garanto e nem estou atrasada.
Quando saí do hospital já passava das 11h30, daria tempo de chegar em casa, mas não ia rolar um banho antes da viagem. Vou chegar em Algarve, nosso destino, com cheiro de sangue e bisturi elétrico. Estacionei meu carro na rua lateral da casa de pedra e fui andando até em casa. Se tem algo que aprendi nesse último ano é abrir a porta de casa bem devagar, assim se o Pingo estiver comendo ou dormindo, algo bem provável,ele não vai escutar a porta se abrindo e não vai me derrubar.
Assim que entrei, bem em silêncio, encontrei a Fernanda deitada no sofá, já vestida para a viagem, uma calça azul de algum pano não jeans e um moletom, com o pescoço esticado, quase jogado para trás do sofá. Deixei minha bolsa na poltrona ao lado e cheguei pertinho, com calma e beijei-a. Ela realmente estava dormindo, se assustou com o beijo, mas abriu aquele sorriso lindo que ela tem.
- Amor, você está dormindo. Estamos atrasadas, vai arrumar sua mala - eu lancei isso pra ela.
- Eu estou pronta princesa. Quem está atrasada é você. Vai tomar um banho, está com cheiro de cirurgia.
- Eu me atrasei um pouquinho, não vai dar tempo de eu tomar banho. Jura que sua mala já está pronta?
- Bonitona, eu sou organizada. Tá na hora de entender isso. E vai tomar um banho que dá tempo.
- Vem junto?
- Claro que não Carol, banho rápido. Você sozinha toma banho rápido, nós duas no chuveiro significa perder o avião. Vai! - eu sai dando risada, mas rebol*ndo, eu gosto do jeito que ela me olha quando faço isso. O banho foi rápido, quando entrei no quarto não pude deixar de me surpreender com a organização dela pré viagem. Eu sei que não devo comparar a Fernanda ao meu passado, mas se fosse a louca da Christiane o quarto estaria destruído de bagunça e ela iria nos fazer perder o voo. Por isso eu amo a portuguesa, isso e outros mil motivos. Coloquei uma calça de couro, uma bota e uma camisa, sei que em Algarve é quente, mas em Urros, sempre é frio.
- Banho rápido hein gineco. Lavou toda a área de diversão? - cheguei pertinho dela, que ainda estava reclinada no sofá e sentei em seu colo. O beijo foi rápido, mas bem gostoso. Isso é algo que adoro na Fer, todo momento é momento de cafuné e beijinho.
- Tudo lavado. Onde está o Pingo - falei ainda sentada no colo dela.
- Já está no hotel.
- E seu carro?
- Já está na garagem. Está tudo organizado amor, é só você sair de cima de mim e a gente ir.
- Caraca, por isso eu te amo, toda trabalhada na organização. Partiu então, antes que a gente perca esse vôo sagrado - sai de cima do colo dela e estiquei a mão para ajudar ela levantar. Claro que quando ela levantou dei mais um ou dois selinhos nela, vocês não tem ideia de como estou empolgada pela nossa primeira viagem juntas, não sei explicar, mas estou super ansiosa. Neste ano passeamos bastante claro, mas sempre aqui perto, nada de irmos juntas a um hotel ou coisa assim, pode ser bobagem, mas estou empolgada.
- Você leva o carro ou quer que eu dirija? - ela me perguntou logo depois de u guardar as duas bolsas de viagem no porta malas do meu carro.
- Pode dirigir amor. Estou destruída da cirurgia da manhã.
- Sei. Você sempre usa essa desculpa. Mas tudo bem, eu faço esse favor de dirigir. Entra aí - falou pra mim já entrando no meu carro e mexendo no rádio, no banco, nos espelhos. Por mais que isso irrita muita gente, eu não sou super apegada ao carro, até deixo dirigirem ele de boa. E vou dizer que adoro ver a Fer dirigindo, ela fica toda séria, concentrada. Eu fico sempre fazendo carinho na perna dela, mas ela foca na direção, as vezes até rola um cafuné, mas não é sempre.
De Urros a Maçores rolou nos habituais 40 minutos, a Fer estacionou o carro na fazenda Ganate, onde já tinha um táxi nos aguardando para ir até o aeroporto. Mais 15 minutos de estrada de terra e chegamos ao pequeno aeroporto da cidade, só não digo que era particular porque geral pode usar o espaço, mas tinha tanta gente lá que mal dava para encher um ônibus. A Fer acabou reservando o jato do “Azeite Ganate” para nos levar até Algarve, a viagem vai ser de uma hora e meia, no máximo 2 horas.
Ficamos na sala de espera do gigante aeroporto mais de meia hora, não que eu não saiba esperar, mas teve uma hora que eu soltei:
- Amor, esse jato vem? Ta atrasado não está? Não querendo encher sua paciência, mas está atrasado. Já passou das duas da tarde
- Princesa, relaxa a bisteca. Nós que estamos adiantadas. O voo está reservado para as três da tarde.
- Você me falou duas Fernanda. Dava tempo de eu ter tomado um banho com mais calma. Porque falou a hora errada?
- Eu falei duas e você chegou em cima da hora. Se eu falasse três, você iria se atrasar mais. Te conheço já gostosa, iria até ter três cirurgias ao invés de duas. E nem vem brigar comigo por isso, fiz de propósito, você sempre se atrasa.
- Hahahah, falou a pontualidade em pessoa. E eu atrasei porque a última cirurgia foi difícil, o utero estava aderido ( colado) no intestino. Deu trabalho pra soltar.
- Cara, como você mexe nisso? Sabia que tem fezes nisso. Sai coco. Credo! Imagina, está mexendo lá de boa e do nada sai alguma coisa, que nojento.
- Fernanda, você é médica. Como tem nojo disso?
- Eu sou médica de criança, fofinhos e bonitinhos. No máximo catarrentos, imagina colocar a mão na barriga de alguém, tô fora.
- E na faculdade? Fugiu do estágio de cirurgia?
- Nossa, eu dei altos perdidos. Acabei entrando em uma ou duas. Eu não tinha problema em instrumentar, mas operar eu achava horrível. Credo. Ainda bem que tem quem gosta, eu tô fora.
- Amor, o Costa ficou todo preocupado com o meu atraso. Tive que parar a cirurgia pra falar com ele. Toda hora ele soltava " chefe, você está atrasada" ou " a chefe vai vir aqui e a culpa vai ser minha" - falei imitando a voz do outro ginecologista - ele tava desesperado de eu atrasar e você brigar com ele.
- Bom garoto, sabe bem das coisas. Ele é gente boa, gosto dele operando com você. Já a sua anestesista, quando ela vai parar de te secar?
- Ela não faz isso Fer. Para de bobagem.
- Ah não, eu também não seco você. Ela até me olha torto. O tempinho que eu fiquei lá, ela te secou sem pena, quase te ofereci uma água, pra dar um toque. Deixa ela comigo, corto as penas dela em dois segundos - a Fernanda ficou brava mesmo, até fechou a cara.
- Para com isso amor. Se ela olha ou não olha, "tô" nem aí. Eu namoro com você e todo mundo sabe disso, então para de estresse. Estamos saindo de férias, pra curtir, não pra ter ciúmes. Vem cá, deixa eu te abraçar até esse avião chegar. - mesmo ela resistindo, passei meu braço por ela, obrigando ela a se aninhar em mim, segundos depois já estava soltinha colada no meu corpo. Quando o jatinho finalmente chegou, nosso celular apitou, solicitando que fossemos para a área de embarque.
Acho tão bonito a maneira como ela anda comigo, sem esconder quem é, cheia de si, com orgulho. Pegou na minha mão e foi comigo até o embarque, as malas já haviam sido despachadas. Entramos no aviãozinho, dessa vez não havia ninguém a bordo.
- Onde quer sentar princesa? Sozinha ou em dupla?
- Hahaha, pega aquele banco ali, podemos sentar em dupla - falei dando risada. Assim que sentamos a aeromoça deu uma explicação daquelas coisas de segurança e tudo mais. Como eu detesto avião, assim que sentei já coloquei o cinto e enrijeci o corpo. Essa é a primeira vez que pego avião com a Fer, dava pra ver na cara dela a vontade que estava de rir de mim e do meu medo, mas ao invés de me depreciar, segurou a minha minha mao e me abraçou, fazendo com que pelo menos até o avião estar efetivamente no ar eu ficasse bem mais calma. Quando os cintos puderam ser soltos, automaticamente desfivelou e levantou do banco.
- Eu preciso ir ao banheiro.
- Mas você acabou de ir.
- Ora ora princesa, és a controladora dos rins? - falou claramente irônica, abriu um sorriso, me deu um beijinho e saiu da minha linha de visão. Uns cinco minutos depois já estava de volta, esticando a mão para que eu pegasse uma taça de vinho branco. Posso dizer que esse aviãozinho que ela pede é bem caro, mas o conforto em voar com ele é maravilhoso. A Fer sentou novamente ao meu lado, mas dessa vez jogou o corpo em cima de mim, reclinando. Passei meu braço sobre ela, enquanto com a outra mão ela começou a ganhar cafunés.
Depois de um tempo bati o olho e ela já estava dormindo, achei que estava só com os olhos fechados, mas rolou uma respiração profunda, então deve realmente ter dormido. Mesmo ela dormindo eu continuei fazendo carinho. Nesse ano que passou, a Fernanda se mostrou cada vez mais uma mulher atenciosa, cuidadosa, muitas vezes ciumenta, mas nada de loucuras. Sempre me esperando com um sorriso lindo, as vezes puta da vida, eu sou bem difícil quando quero.
Eu tive que ir ao Brasil uma vez, quando houve o julgamento dos envolvidos com o sequestro, tive que ir dar meu depoimento, pedi que ela não fosse. Para ela já estava sendo uma situação bem complicada, com o envolvimento da Milena. Foi realmente uma situação bem deprimente, eu contando como foi meu sequestro, abalada emocionalmente e a moça lá do tribunal, uma advogada, tentando de todo modo mostrar que eu estava mentindo, para salvar o Puca e o outro imbecil lá. Quanto a Almanço, rainha do azeite, eu nem sabia como estava sendo o processo, se não me convocaram, não quero nem saber.
Quando eu voltei a Portugal, uma semana depois, percebi que a Fer estava mais cabisbaixa, desligada, até longe de mim. Perguntei algumas vezes o que foi, mas ela não soltou nada. Um dia cheguei mais cedo do hospital, peguei ela chorando em casa. Foi quando consegui fazer ela se abrir. A Milena acabou se matando depois que saiu a sentença dela aqui pela justiça portuguesa. A Fer estava bem abalada com tudo, um misto de “estamos livres, ela morreu”, acompanhado de “é culpa minha, eu entreguei ela”, que ficou bem pior pelo passado que as duas tiveram, pelo tempo que namoraram e pela amizade de infância. Levou um tempo para a bonitona voltar ao normal, precisei encher ela de carinho e dar muita atenção.
Nesse período ela começou a se dedicar mais ao hospital, mergulhar fundo na carreira. Parece que ligou alguma coisa nela. O desejo de fazer ele crescer é forte, está se dedicando mesmo a isso. Várias noites eu fui dormir e ela ficou estudando, dedicada. Eu acho isso encantador.
- Senhora, desejas a refeição?
- Sim. Claro, estou verde de fome. Fer, acorda amor, quer almoçar? - ela fez um drama absurdo para levantar, como se estivesse na sala de casa.
- Me ve o cardápio.
- Que drama todo para levantar hein?!
- E perder de ficar no seu colo? Até parece.
- Já devemos estar quase chegando, já tem quarenta minutos de viagem. Até Algarve é 1h30, logo vamos chegar.
- Sim, espero que você goste do hotel que separei pra gente. A idéia é que seja especial.
- Senhoritas, o cardápio.
- Obrigada. - esperei a mulher ir embora e continuei - Especial?
- Claro, é uma viagem de férias - ela mudou rápido o tom, como se fosse um conversa normal. Está aprontando algo, conheço. - Hum, adoro comida requentada de avião, vou pegar um peixe.
- Nem é tão ruim assim, pelo menos aqui serve refeição.
- Pela facada que cobram, pelo menos o curativo.
O avião abriu as portas no aeroporto de Algarve e o calor tomou conta de tudo. Algarve fica mais ao sul de Portugal, na altura de Sevilha, Espanha, ou seja um clima um pouco mais ameno que o Nordeste brasileiro, pra mim parece bem com São Paulo no verão. Antes mesmo de sair do avião a Fer já havia tirado o moletom, ficando apenas com a camiseta do bob esponja que ela vestia. Juro que tentei segurar a risada, mas não deu.
- Qual a graça Caroline?
- Sua camiseta. Caraca, bob esponja?
- Qual o bugg? Melhor que camiseta da faculdade.
- Aff, não falo nada. - E dei risada dela, temos essas alfinetadas como nossa marca. Eu gosto porque em seguida vem um... - Aí, em público Fer?
- O que? Foi só uma apertadinha -... apertadinha de bunda. - Vem, vamos pegar um táxi. - Pegar o taxi foi tranquilo, mas ficar nele os 20 minutos, foi complicado. Em geral os portugueses lidam bem com casais homoafetivos, em geral tenho bem menos problemas que no Brasil, mas hoje especificamente o motorista ficou todo o tempo nos olhando, sabem aquele olhar julgador, sacudindo a cabeça como se não concordasse. Não que eu me importo, mas é bem sem graça. A Fer nem percebeu, ficou olhando a paisagem, toda empolgada, falando dos pontos turísticos e tudo mais.
Descemos de frente para recepção do hotel, naquele momento eu percebi que a Fernanda deve ter gasto bem mais que o nosso combinado de “não gaste muito comigo”. Antes mesmo de entrarmos, havia uma parede caindo água, linda, com o nome do hotel. Eu entrei meio sem graça, de mãos dadas com ela. Imediatamente, um recepcionista ou algum nome chique pra essa profissão veio nos receber.
- Boa noite senhorita, posso ajudá-la em algo? - pude perceber a maneira superior como ele olhou para a blusa de bob esponja da minha namorada. Fiquei levemente irritada, acho que até acabei apertando a mão dela com mais força.
- Amor, senta um pouquinho enquanto eu resolvo nossa reserva. Tenho certeza que esse senhor irá lhe oferecer uma bebida. Não é mesmo? - O cara não retrucou, mas olhou pra ela de cima a baixo, me acompanhou até o sofá, mas não me ofereceu nem um obrigada. Fiquei sentada, com raiva, mexendo no meu celular até que ouvi a moça da recepção chamando o rapaz, que segundos depois me chamou.
- Senhora Ganate.- Sério? Me chamou pelo sobrenome da Fer, que brega.
- É senhorita Braga mocinho. Não somos casadas. - sorri quase que educadamente
- Claro, peço desculpas senhorita. Pode me acompanhar. - novamente dei a mão a Fernanda e seguimos o rapaz, que pegou nossas mochilas e colocou naqueles carrinhos de hotel. Eu nem olhei para o lado. Sei que a Fernanda deve ter escolhido esse hotel a dedo, mas desnecessário gastar esse dinheiro, tanto porque eu sei o quão simples ela é. Subimos um ou dois andares de elevador e depois seguimos por um corredor comprido, onde o menino abriu a porta e nos entregou o cartão de acesso.
- Tenham uma excelente estadia senhoritas. - eu apenas acenei a cabeça e entrei no quarto, sem olhar para o menino. A Fernanda deve ter dado alguma gorjeta e falou um obrigada para ele. Quando a porta fechou eu estava parada, olhando ao redor do quarto. Posso dizer que vai muito além dos meus limites, o quarto por si só já era absurdamente lindo. Uma cama de casal, muito bem arrumada, de frente a uma televisão de sei lá quantas polegadas. Um pouco mais a frente, alguns passos de distância, estava uma banheira de hidromassagem ou seja lá qual for a função dela. Andei mais alguns passos para olhar a janela ou melhor a paisagem do lugar. Assim que cheguei perto, a porta automática se abriu, me mostrando uma das coisas que mais amo nesse mundo todo, mas bem acima do esperado, o mar, a praia e claro, o sol, esse último eu já tinha visto. Andei mais um pouco e me inclinei sobre as grades de proteção, com os olhos mirando no horizonte, onde o azul prendia meus instintos, mas não meus sentimentos. As lágrimas não demoraram nem um segundo para cair.
- Gostou princesa? - instantaneamente me assustei com a Fernanda me abraçando por trás e me perguntando isso. Claro que um milésimo de segundo depois eu acabei relaxando nos braços dela depois do susto.
- Fer, esse lugar é lindo! Cara, olha essa praia? Eu amo praia, é uma das coisas que mais amo nesse mundo, sol, praia, areia. Esse lugar é lindo! Sério! Obrigada. - Ela ainda nas minhas costas, me abraçando continuou falando.
- Essa é a Praia da Falésia, continuamos na fronteira com a Espanha, mas bem mais ao sul. Imaginei que você iria gostar, sempre me falou que ama praia e calor, pensei em arriscar - virei meu corpo, ficando encostada na grades da sacada, mas de frente com a Fernanda.
- Sério, eu amei. Olha essa paisagem, é linda. Obrigada Fer, sério.
- Eu não precisava sair de Urros para ver a paisagem mais linda de todas. - Falou isso, olhando nos meus olhos, fundo, como se tentasse tocar meu corpo com o olhar. Senti a respiração dela ficar mais pesada. Puxei a cintura dela, aproximando nosso corpo. O primeiro contato foi o nariz dela no meu, olhos fechados e uma brincadeira gostosa de encher meu rosto de carinho com passadelas de nariz. Ela respirou fundo, como se o meu cheiro fosse o ar que ela precisava. Quando finalmente minha boca encostou na dela eu não tive ou promovi resistência alguma. A língua da Fer, leve e insidiosa, procurou um espaço, mas não será simples assim, puxei com os dentes a parte os lábios inferiores dela, apertando, quase que mordendo, como eu sei que ela gosta. Ela desenhou meus lábios com a língua, em uma movimentação deliciosa, provocativa, mas sem calor sexual. Aproximei nossos lábios e intensifiquei a velocidade a força, as línguas brincando, procurando quem dava mais sensações a outra. A mão enfiada no cabelo, bagunçando, cavucando, procurando. Um puxão para expor o pescoço dela, permitindo que a língua percorresse o espaço do pescoço, estimulando, exitando. O vento ao fundo refrescando tudo isso, ao mesmo tempo que por dentro eu estava quente, desejando, querendo.
Querer é poder e eu não resisto a um, inverti as posições, deixando ela presa na grade de proteção, mas essa não era minha intenção, nem um pouco. Tomando cuidado com a hidro que ficava no meio do caminho e sem soltar ela, fui puxando-a em direção a cama, sem resistência, sem pernas travadas. Eu a frente, apenas mandei: Deita! E como eu bem gosto da sensação do poder, a Fernanda deitou na cama, arrancou os tênis e foi subindo, até ficar acomodada nos travesseiros. Eu não pensei muito, ajoelhei na cama e subi, por cima dela, deixando-a debaixo, sem poder, sem posses, apenas pronta. O beijo retornou, calmo no início, carinhoso, mas em segundos, quentes e ardente, com força, pegada, língua. Minhas mãos começaram os trabalhos, procurando um espaço sobre a camiseta do bob esponja, buscando o caminho.
- Tempo! - ela olhou pra mim, com as mãos formando um T.
- O que?
- Tempo princesa - foi se mexendo para sair debaixo de mim, eu inocente, dei espaço para isso. quando percebi ela em pé longe da cama, apenas sentei incrédula.
- Fernanda?!
- Está um sol tão lindo lá fora, vamos descer na praia ou na piscina. Quero conhecer esse lugar.
- Fer, eu estava trabalhando aqui. Volta pra cama.
- Eu? Jamais. Você veio aqui pra que?
- Sexo!
- Eu não. Vou colocar um biquíni, vamos comigo? - e saiu indo mexer na mala. Juro que não acredito nisso, sério mesmo? E ainda foi ao banheiro para colocar o biquine. Eu mereço. - Vai gineco, se troca. Ah, amor, lembra que eu te pedi para trazer uma roupa mais elegante, para um jantar mais fino?
- Sim, lembro - eu estava realmente irritada, um por estar louca de vontade, dois pela expressão cínica da Fernanda como se nada tivesse acontecido, mas como se a qualquer segundo fosse gargalhar - Você até escolheu a roupa comigo.
- Vai ser hoje a noite. Então quando voltarmos, pode se arrumar para um jantar quase que de gala.
- Ok. - apenas respondi isso e levantei para trocar de roupa. Ao contrário da Fernanda que foi ao banheiro, eu me troquei ali, na frente dela, sem desviar o olhar um segundo, incomodando, provocando. Do jogo dela eu tenho pós graduação.
Fim do capítulo
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Brescia
Em: 03/06/2019
Boa noite mocinha.
Viajei muito nesse capítulo, voltei no tempo quando fui a Portugal.
Voltando ao capítulo, acho que irá rolar um pedido de casamento, a Fernanda fez tudo que a Carol merece e será em grande estilo.
P.. S: amei o hotel.:)
Baci piccola.
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