Cronologia Criminal Dia 5 – Quarta-feira, 18/04/2018, 15:12
– Tente não demorar tanto, Honora. Meu dia está cheio hoje. – O Sr. Nickolai advertiu.
Ele observava todos os procedimentos feitos pela filha para tratar a ferida do seu subordinado. O homem - de aparência jovial, física e mental, apesar de seus mais de 60 anos – estava sentado em uma confortável poltrona, nos fundos do cômodo que tinha reservado para essas pequenas providências. Era uma espécie de ambulatório improvisado, mas que continha instrumentação cirúrgica básica e uma estrutura mínima capaz de tratar dos integrantes da “família” que por ventura apareciam feridos.
– Sabe o que mais me deixa abismada, pai? – A mulher manifestou-se, após revirar os olhos, impaciente com seu progenitor – É que o senhor é tão inteligente e se mostra tão ignorante para determinadas coisas! Eu sou formada em Psiquiatria, não sou cirurgiã. Quantas vezes terei que repetir para que entenda? Faço o que posso, com o conhecimento que tenho. Onde está o seu médico? Não me venha com a desculpa de que ele não atendeu ao telefone dessa vez. Essa lorota é velha!
– Não sei o motivo de tanta reclamação. Está trabalhando porque quer. Quem mandou atirar em mim? Agora aguenta! – Andrey, boquiaberta com a ousadia e petulância do bandido à sua frente, sem dó nem piedade, apertou as bordas ainda ensanguentadas do ferimento na perna de Danny – Ai, porr*! – Sua careta de dor foi motivo de divertimento para a tatuada – Toma cuidado! – Outra fala abusada e mais um apertão fora dado – Merda, chefe! Sua filha quer me matar!
– Honora...
– O que foi? A donzela não se aguenta e sou eu quem tem culpa? Nas suas próximas contratações procure um macho para ser seu capanga porque esse aqui, pelo visto, deve usar tanguinha cor de rosa. – A mulher prendeu o riso do semblante raivoso do rapaz.
O “velho” riu, meneando a cabeça em negativa.
– Você não vale nada, minha filha.
– Está no sangue, papaizinho.
Andrey deu de ombros, continuando a alternar entre a limpeza com solução fisiológica e o passar das gazes para limpar o sangue coagulado, ignorando totalmente os choramingos de dor de Danny. Quando finalmente percebeu que a ferida estava limpa o suficiente, pegou a pinça de dentro de sua maleta.
– Vai usar essa coisa aí pra quê? – O jovem inquiriu.
– Não é para enfiar no seu rabo, infelizmente, seu idiota. – A criminosa bufou – Eu vou remover a bala, imbecil. Vai doer... eu espero. – Ela respondeu, fulminando Danny com seu olhar de ódio.
– Ah, qual é, doutora? Não tem uma anestesia aí não? Por favor! – A essa altura, ele já estava demasiado desesperado.
– Huuumm... vejamos... Talvez eu tenha esquecido a anestesia em casa, bem ao lado do cão que você entupiu de tranquilizante. – Honora sorriu, debochada.
– Qual é, Honora? Não foi minha culpa. Fala pra ela, chefe! Por favor! – O bandido implorou.
A tatuada parou imediatamente a sua ação, olhando para o seu progenitor, que desviou o olhar do celular, totalmente irritado com Danny por ter mencionado o assunto.
– Algo que eu deveria saber, pai? – Ela indagou.
O homem revirou os olhos, estalando os dedos para um funcionário que estava por perto, a postos, pronto para lhe servir.
– Traz um Odyssey puro. – Nickolai ordenou, mantendo-se calado a encarar a filha, que permanecia estática aguardando a sua resposta. Quando o capanga trouxe sua bebida, o “chefe” sorveu todo o líquido de uma só fez, esticando o braço como indicativo de que queria mais. Só então, com a segunda dose de wisk na mão, é que suspirou e dirigiu-se à Honora – Fui eu quem ordenou que eles fossem até a sua casa procurar por uma pessoa.
– Quem?
– Você sabe... A policial que te prendeu.
– A azarada que estava por perto quando você tentou me matar? Já tinha me perguntado sobre isso e eu já tinha te respondido. Bom, você e seus escudeiros idiotas se foderam duas vezes, não? Primeiro porque tentaram me atingir e acabaram assassinando outra pessoa, e segundo porque constataram viram que não tinha ninguém na minha casa, quer dizer, ninguém além de mim e da minha namorada.
O homem mostrou um sorriso incrédulo, desconfiado, ao mesmo tempo em que franziu o cenho.
– Está falando sério. Seu olho esquerdo não tremelicou.
– Pai, eu não sou idiota. Sei bem os motivos pelos quais quis me matar, mas eu quero viver. Eu não seria idiota de mentir para você a essa altura do campeonato. Me perdoe pela minha impulsividade. Sabe bem que não quero atrapalhar os negócios da família. Isso tudo aqui também é meu. – A tatuada gesticulou, apontando para vários pontos do cômodo – Eu sei que mais cedo ou mais tarde herdarei essa cadeira em que está sentado e que tenho que me comportar como uma Andrey de verdade, mas... Pai, você me enlouquece às vezes, você me subestima, me humilha. Eu não suporto isso. Me deixe trabalhar do meu jeito e pronto! O que não podemos é ficar eternamente nesse pé de guerra, tentando nos matar. Você quer deixar o seu império para quem? Para um idiota como esse aqui... – Ela apontou para Danny, que estreitou os olhos, bravo - ... ou para alguém que é sangue do seu sangue e que move seus negócios? Vai, diz que é mentira! Não sou eu quem faz isso tudo isso funcionar além do senhor? Eu sou a inteligência desse lugar. Eu só quero um pouco de paz, um pouco de vinho e muitas fodas com a minha mulher. Só isso. Chega de atritos, por favor.
Uma coisa era fato: se Honora Andrey não fosse uma criminosa profissional, poderia seguir carreira nas artes cênicas. Ela tinha ciência de seu problema quanto a mentiras desde pequena. Sempre que faltava com a verdade, seu olho esquerdo tremelicava e a denunciava. Mas ela era esperta e inteligente demais para treinar seu sistema nervoso e fingir, com maestria, que nada mudara. Vez ou outra tremelicava o olho de propósito, a fim de manter-se crível.
Aquilo sempre funcionou, e naquele momento, carregando sua fala de filha arrependida com um “quê” de emoção, junto com a lágrima solitária que escorreu pelo seu rosto – a cereja do bolo – convenceu primorosamente o seu pai de que se lamentava realmente. Coitado! Mal sabia ele que o sorriso deliciosamente sarcástico da criminosa – sua marca registrada - imperava dentro dela.
– É aquela ruiva, a tal de Olga, não é? A que você não parava de falar sobre o quanto era maravilhosa?
Nickolai mudou o assunto, como se nada tivesse acontecido. Então Honora teve mais um indicativo de que sua encenação havia funcionado perfeitamente, pois esse era o jeito de seu pai de dizer que estava tudo bem e que deveriam seguir em frente.
– Como sabe que é ela? – A tatuada deu um breve sorriso constrangido, voltando a lidar com o ferimento de Danny, mesmo com o rapaz pressionando uma mordaça para não deixar o grito gutural escapulir e segurando firme nas beiradas da maca.
– Sabendo, instintos de pai. Foi uma pena não tê-la conhecido antes, quando estiveram juntas no passado, mas se essa mulher é quem está colocando um pouco de juízo na sua cabeça, preciso cumprimenta-la pessoalmente.
Andrey engoliu em seco com a fala de seu progenitor. Aquilo não estava nos seus planos e seria uma grande merd* se ele insistisse em conhecer a maldita namorada falsa. Preparando-se para retirar a bala, com a mão um pouco trêmula, fora interrompida por Danny, apavorado.
– Calma! Calma! Calma! Cadê a anestesia?
Honora estreitou os olhos, encarando o maricas ridiculamente desesperado que estava suando de dor.
– Foda-se a anestesia. Foda-se se você foi até a minha casa por conta própria ou a mando do meu pai. Ninguém maltrata o meu cachorro e sai impune, seu filho da mãe! – Ela disse lentamente, enquanto cravava a pinça, agarrava a bala e a puxava, sob o berro estridente do rapaz.
A criminosa já estava no processo de sutura quando deu por fé de que Nickolai não rendera o assunto “conhecer a namorada de minha filha”. Entretanto, para o seu azar, assim que ela terminou com Danny e começou a organizar as coisas para ir embora dali, seu pai manifestou-se outra vez.
– Quer saber? Darei uma festa, aquela festa. Vai ser uma boa oportunidade para firmarmos a paz entre nós e para que eu conheça minha futura nora.
– Deixa de idiotices, Sr. Andrey. Velho já é, só falta ficar gagá, quer dizer, pelo visto não falta nada. De onde tirou a insanidade de que um dia terá uma nora? Gosto de Olga, mas não quero nada sério. – Honora terminou de guardar suas coisas dentro da maleta, colocando-se frente ao homem, depois de dar um tapa bem dado na perna ferida de Danny.
– Ai, sua filha da puta!
Divertida, a tatuada apontou para o rapaz que se contorcia atrás dela.
– Vai deixar ele falar assim comigo?
– Daniel, pare de show e cale a sua boca.
– Mas... – Nickolai apenas olhou para seu subordinado que, imediatamente, obedeceu.
– Bom, não é da minha conta a forma como conduz seus relacionamentos. Sexta traga Olga aqui. Vou garantir que sua namorada se sinta em casa. E não aceito nãos e desculpas como resposta.
Andrey sorriu, mesmo com a preocupação e a temeridade correndo em suas veias. Como poderia levar Laura para dentro do ninho de cobras? Isso seria assinar a sentença de morte de ambas. A ideia da mentira era abrandar os nervos de seu pai para que ele não a atormentasse mais com as invasões de seus capangas em sua residência, mas, pelo visto, o tiro havia saído pela culatra, ricocheteado e a atingido em cheio.
Não podia arriscar a vida da detetive e nem tampouco a sua, mas, em contrapartida, não podia negar o convite de seu pai e levantar suspeitas. As opções eram escassas e, ao que parecia, só havia uma saída: enfrentar seu inimigo de frente, usando das mesmas armas, tal como a mulher destemida que sempre fora.
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– Quantos já matou?
– O que? – A pergunta repentina e fora de contexto de Liam tomou Randik de sobressalto.
– Quantas pessoas você já matou? – O homem desviou a atenção da televisão, passando a encarar a mulher, agora ruiva, sentada ao seu lado no sofá. Esta, por sua vez, manteve-se calada, imóvel, direcionando o seu olhar para a televisão, mas claramente não prestando nenhuma atenção na cena do filme que se dava naquele momento – O que foi? Não achou que eu ia permitir que você ficasse tão próxima da minha prima sem eu ter feito a lição de casa direito, achou? Não precisa se preocupar. Não vou te dedurar para ninguém, menos ainda para os seus amigos tiras, por motivos óbvios. – Liam riu.
Laura permaneceu calada por um longo tempo. Aquele homem a conhecia de uma forma que ninguém deveria conhecer. Ele sabia de coisas que ninguém deveria saber. Ele possuía informações sobre atos cometidos que a detetive escondia de si própria, justamente para não ter que lidar com sua face mais obscura. E lá estava ela, escancarada, exposta e sangrando, como sua ferida recente.
Randik poderia mentir, mas Liam sabia a verdade. Randik poderia negar uma resposta, mas Liam – se fosse como Honora – a persuadiria de qualquer maneira para que abrisse o jogo. Só restava então a honestidade, já que não tinha mais nada a perder.
– 53.
– Você anota?
– Até certo tempo atrás, anotava sim.
– Por que parou?
– Porque os nomes desses bandidos deixaram de ser um troféu para mim. Eu apenas os mato por prazer agora.
Um sorriso satisfeito formou-se nos lábios do homem, iluminando a sua face.
– E se eu te disser que eu faço isso até hoje, acreditaria?
Antes que pudesse responder, a policial e o criminoso ajeitaram-se no sofá ao ouvirem o barulho de chaves e do trinco se movendo.
Ainda do lado de fora, enquanto tentava destrancar a porta, Honora pôde ouvir alguns murmurinhos e o som da televisão. Ela franziu o cenho de imediato, estranhando o fato de que, o que quer que estivesse acontecendo lá dentro, parecia ser algo amigável.
Apenas confirmou suas suspeitas quando adentrou em sua residência e viu que assistiam a um filme onde um cara encapuzado matava um homem a facadas enquanto uma mulher berrava desesperada, presa pelos pés e mãos em grossas correntes.
– Ah, mas é muito inteligente mesmo. Fica gritando e chamando a atenção do cara. – Laura comentou.
– Mas sempre tem uma idiota pra foder com tudo. Vai morrer rapidinho, quer apostar? – Liam acrescentou.
– Olá! Perdi alguma coisa? – Desconfiada, a criminosa anunciou a sua chegada, seguindo para a cozinha a fim de colocar as sacolas de compras nos seus devidos lugares.
– Só o sequestro de um ônibus e umas três ou quatro mortes. – Seu primo respondeu – Mas foi tudo muito morno até agora. Ainda não vi nada de emocionante, como disse a crítica. Senta aqui, vem assistir o filme com a gente.
Quando Honora retornou para sala, aproximou-se do sofá e pôs-se de frente para a detetive, só então pôde vislumbrar seu novo visual. Na verdade, o trabalho de Liam estava tão bem feito que aquela mais parecia outra mulher. Seus cabelos, antes longos e castanhos, agora encontravam-se acima dos ombros e na cor vermelha. Seu rosto parecia mais jovem e suas feições estacam totalmente transformadas: seus lábios um pouco maiores, seu nariz mais afunilado, as maçãs de seu rosto mais protuberantes. Estava linda! Não que não fosse antes, claro que não. A beleza de Laura era intrínseca, mas aquela transformação havia ressaltado, ou melhor, resgatado o brilho, a sensualidade, a feminilidade que perdera por conta de seu exaustivo trabalho.
– Uau! Você está... Uau! – A tatuada não conseguiu conter um sorriso deslumbrado.
– Obrigada! – A outra, mesmo constrangida, também sorriu.
– Eu lhe devo essa, Liam. Realmente devo. – Andrey comentou, ainda sorrindo e sem desviar os olhos de Randik.
– Me deve a vida das duas, isso sim. Nossa modelo está irreconhecível. Acho que vou mudar de profissão.
– É... bom... – A bandida pigarreou, saindo de seu transe momentâneo – Que tal dar um trato no meu visual também, agora?
– Oi? – O homem estranhou aquela indagação com ares de pedido – Não era para eu voltar amanhã trazendo... trazendo aquelas coisas.
– Sim, você precisa voltar, mas quero mudar um pouco também e nesse instante. Está com a tintura loira aí, não está?
– Sim, eu... bem... – Liam gaguejava, incrédulo – Você me mandou comprar todos os tons que existiam no mercado, eu trouxe. Depois mandou aquela mensagem estranha, em cima da hora pedindo para deixar a Laura ruiva. Então, sim, tenho loiro e mais umas dezenas de outros tons. – Ele se levantou, indo até a maleta com os produtos e pegando a caixa – Honora, afinal, o que está havendo?
– Céus! Nada demais! Apenas antecipando algo que faríamos amanhã. Essa ideia de fazer uma transformação na Laura foi a única saída que encontrei para o nosso impasse. Ninguém podia descobrir que uma policial estava aqui e se mudássemos o visual dela, as chances de a reconhecerem seriam bem menores. Só que meu pai já sabia que tinha uma pessoa estranha na casa. Danny deve ter visto algo e contado para ele ou... Sei lá. Só sei que tive que fazer uma encenação e ele engoliu. Sem querer o filho da mãe acabou me dando uma carta coringa. Ele se lembrou de Olga e... Voilá! Aqui está ela. – Andrey gesticulou, apontando para a detetive – Não ficaria bem se nós duas fôssemos ruivas, então, quero um platinado.
– Quem é Olga? – Randik inquiriu, um tanto tonta com as informações e com o estômago revirando por ouvir falar do seu maior inimigo.
– Depois eu te explico. – A tatuada sentou-se no sofá ao seu lado, dando um leve tapinha em sua coxa – Li, pode cortar o meu cabelo também? Quero algo bem diferente, quero me sentir renovada. O que enfrentaremos daqui para frente não vai ser brincadeira e aumentar a minha autoestima pode ajudar um pouco.
– Ajudar a morrer bonita. Essa é a Honora que eu conheço. – O homem murmurou, rindo e meneando a cabeça em negativa – Ande logo! Vamos fazer lá no banheiro. A não ser que você queira que eu, acidentalmente, suje o seu tapete persa ou o seu sofá de jacquard...
– Vai brincando! Eu te corto inteiro com um estilete se ousar manchar o meu sofá. – A criminosa levantou-se rapidamente, caminhando em direção ao outro cômodo – Ficará bem, anjo?
Tamborilando os dedos na própria perna, Randik bufou e revirou os olhos ao mesmo tempo, assim que ouviu aquele maldito apelido. Essa era a diversão da outra, que soltou uma gargalhada alta antes de sumir casa adentro.
A detetive não teve noção do quanto sua transformação havia demorado até prestar atenção no tempo em que Andrey e Liam estavam lá dentro. Com o filme pausado, a mulher pegou um livro qualquer na biblioteca particular da bandida para ler. Como o enredo não a cativou, abandonou a leitura quando chegou à trigésima nona página, caindo em um sono profundo. Acordou assustada, minutos ou horas depois; ela não tinha certeza e nem fez questão de verificar.
Começou a ficar entediada. Precisava ocupar sua mente para que não virasse uma oficina ainda maior do diabo. Tudo ali remetia as lembranças de Laura ao seu passado sombrio. Tudo ali era como um espelho que refletia o lado mais nefasto de sua alma. A policial estava sentada na sala da filha do homem que matara o seu pai da maneira mais vil, cruel e sórdida que existia. Randik havia trans*do com uma pessoa no qual o sangue de um monstro corria nas veias. Entre tantas, foi cair nos braços justamente daquela mulher. E o pior de tudo é que nunca tinha se sentido tão bem, nunca tinha sido tão intenso e prazeroso. Era como uma maldição. Deveria odiar Honora, e odiava, por tudo o que ela fazia e era. Mas, em contrapartida, não poderia esquecer jamais o orgasmo que a tatuada lhe proporcionou, o tesão que a fazia sentir. Uma droga! O que a bandida ajudava a fabricar certamente tinha uma boa dose de sua essência, pois era viciante como tal.
“Merda! Eu vou enlouquecer aqui dentro! Meu Deus, por que está fazendo isso comigo? Por que justo ela? O que eu faço agora com esse maldito prestes a me matar? Eu preciso fazer alguma coisa primeiro. Pensa, Laura. Pensa!”
A detetive levantou-se, passando a caminhar de um lado para o outro em claro sinal de nervosismo. No entanto, sua declaração de desespero mental fora interrompida por um pigarreio. Quando a mulher virou-se para trás, não teve outra reação senão a de ficar estupefata. À sua frente estava Honora, com seus cabelos ainda curtos, mas em um corte muito mais moderno. As madeixas, agora platinadas, ressaltaram seus olhos verdes. Estava linda! Tão linda que Randik, por alguns segundos, quase esqueceu o processo automático de respirar. Ao lado da prima, Liam mantinha um sorriso satisfeito em seu rosto, obviamente orgulhoso de seu feito. Tinha acabado de executar o trabalho de um ótimo profissional, potencializando a beleza das duas mulheres que se encontravam naquela sala.
– Não vai dizer nada, anjo? – A tatuada provocou.
– Eu não posso... – A outra respondeu no automático, só se dando conta do que havia falado depois que as palavras já tinham sido proferidas – Ow...quer dizer... você está linda! Muito... linda! – O nervosismo e o desconcerto diante de Andrey era aparente, por mais que ela tentasse disfarçar.
– Meu trabalho de cabeleireiro terminou, portanto, podemos continuar vendo o filme, não? – Liam refestelou-se no sofá, buscando pelo longa-metragem.
– Ok... – A criminosa sentou-se ao lado do primo – Vamos ver esse bendito filme, mas adoraria que me respondesse uma coisa... – Ela direcionou o seu olhar para a policial que havia acabado de se sentar na outra ponta do móvel - Desde quando você fica assistindo filminho e ainda comenta sobre ele com policiais? – Honora indagou, rindo de toda aquela situação.
– Ah, quer saber? Essa daí até que não é das piores! Ela é bem fofinha! Estou até pensando em adotar! – Liam zombou.
– Mas é você quem vai alimentar e limpar a sujeira? – A bandida completou a zombaria.
– Poxa, eu tenho sentimentos, se é que alguém aqui se lembra disso. – Randik entrou na brincadeira, fingindo estar magoada.
Ainda rindo, o trio passou a prestar atenção às cenas. No fim das contas, “Youtuber.com” não era tão ruim quanto parecia. O enredo girava em torno de um youtuber, psicopata, que tinha um canal sobre crimes e que escolhia suas vítimas conforme os comentários que elas faziam em seus vídeos. Aquele o último filme de uma trilogia adaptada dos livros de uma escritora brasileira famosa internacionalmente.
– Eu li muitas críticas sobre esse filme e os outros da sequencia. Falavam que não fazia jus aos livros, mas é muito bom. – Liam comentou.
– Eu tenho os livros, mas estão no plástico ainda. Comprei porque li outra obra da autora e simplesmente adorei. – Honora espreguiçou-se enquanto falava.
– Qual é o nome dela? – Laura inquiriu.
– Olívia. Olívia Hayes. Ela é brasileira. Escreve alguns romances lésbicos, mas o seu forte mesmo são os suspenses e os enredos de terror.
– Se eu soubesse disso antes, tinha escolhido algo dela para ler enquanto esperava por vocês. – A policial balbuciou.
– O que acham de maratonarmos os outros dois da trilogia? – O bendito fruto entre as mulheres perguntou.
– Oh, meu querido primo, eu ia adorar, mas acho melhor você ir embora.
– Embora? Por que? – Liam entreabriu a boca, alternando o olhar entre Randik e Andrey – Ah, entendi, vão trans*r.
– Não! – A tatuada negou veemente – Quer dizer, a não ser que o anjo aqui queira. – O rolar de olhos da detetive fez a outra gargalhar – Estou brincando. Meu pai... Ele vai precisar de você. Se ficar e se distrair não atendendo o celular é bem capaz de ele vir te procurar aqui e nós não queremos uma visita surpresa, não é mesmo?
– E por que raios meu tio vai precisar de mim.
– Festinha, sexta-feira, drogas, bebidas e orgia, como sempre.
– Merda! – O homem esbravejou.
– Merda nada que o senhorito é o primeiro a aproveitar, principalmente a parte da orgia.
– É, mas o trabalho que dá para organizar isso tudo nem sempre vale a pena. – Ele bufou ao se levantar – Bom, vejo vocês outra hora. – Liam pegou o seu casaco na poltrona próxima, seguindo em direção à porta principal – Até mais, meninas.
– Tchau! – A criminosa acenou.
– Até mais, Liam. – Laura imitou os gestos da outra, acrescentando um breve sorriso. Assim que o primo foi embora, Andrey voltou a sua atenção para a mulher ao seu lado, sorrindo de canto para a policial, que a encarava de volta um tanto desconcertada – O que foi? – Ela questionou.
– Nada, em absoluto. Só estou tentando entender melhor como meu primo e minha namorada se deram tão bem. – A tatuada brincou.
– Você tem que parar com isso. Ele acreditou, sabia? – A detetive a repreendeu.
– Aham, sabia. – Andrey desdenhou – Devemos ser bons em fingir quando enganamos os inimigos, mas ainda melhores quando engamos os aliados.
– Falou a ganhadora do Oscar... – Laura bufou, fazendo a outra rir – E como foi com o seu... – A policial engoliu em seco, sem coragem de pronunciar a expressão “seu pai” – Deu tudo certo?
– Oh, mais ou menos. Posso te contar tudo em detalhes depois? Eu vou preparar o nosso jantar. Por que você não sobe, toma um banho e descansa? Esse dia de beleza te fez muito bem, mas não podemos esquecer que ainda está ferida.
– É! Estou um pouco sonolenta mesmo.
– Então vá. Eu te chamo assim que ficar pronto. – A criminosa levou a destra até o braço são da outra, alisando-o.
Randik direcionou o seu olhar para o local onde era tocada. Aquilo fez a detetive arrepiar e sentir como se uma mistura de fogo e gelo estivesse fazendo estrago dentro de sua barriga. Era uma sensação estranha, nova, que a agradava e incomodava em certos graus. Queria o toque, mas não podia permiti-lo. Tanto por isso, levantou-se subitamente, consternada.
– Até mais tarde.
A passos largos e apressados, subiu as escadas em direção ao seu quarto. Assim que fechou a porta, desabou em um pranto desmesurado. Ter descoberto quem era o pai de Honora, quem estava infiltrado no departamento no intuito de ajuda-lo com seus esquemas e, ainda mais, prejudica-la, mata-la era demais para Laura. Ela estava se se segurando há muitas horas, estava se corroendo por dentro, com milhares de pensamentos desconexos a atormentando, a enlouquecendo. Não sabia como agir, qual passo dar para salvar a si. Não sabia se o melhor caminho era contar para a criminosa ou se guardar o segredo seria sua arma vital.
A detetive tinha certeza que Andrey não fazia ideia do que havia se sucedido, não fazia parte dos esquemas do pai. No fundo, entendia que ela era mais uma vítima dele, sendo pior, pois a tortura do homem se dava desde que a filha nascera. Randik não podia dizer que um dia deixaria de detestar a bandida, mas havia se conectado, havia criado um vínculo precoce e inesperado que a levava a acreditar que Honora não era uma pessoa tão ruim quanto parecia ser. A policial não sentia somente tesão, sentia que existia algo que ela não conseguia entender, portanto, definir.
Por dentro, entendia agora que as duas eram como dois lados de uma mesma moeda enferrujada. Ambas tinham suas manchas, apenas com uma face diferente.
Laura foi até o banheiro e passou a mirar a sua imagem no espelho, enxugando algumas lágrimas no canto de sua bochecha. Estava diferente, tão diferente que ela mesma não se reconhecia. Sua aparência mudara, se transformara em outra pessoa. Os cabelos vermelhos e os tratamentos estéticos agora escondiam quem ela realmente era por fora, mas não resolveram o fato de que não havia como esconder-se de si mesmo.
A detetive lembrou-se da amiga, Tessa, por conta da cor rubra de seus fios, e foi então que um sorriso surgiu em seu semblante amargurado, choroso. Sentia falta dela, do seu abraço, do seu cheiro. Em meio a tantos acontecimentos perturbadores, só então é que se deu conta da saudade absurda que corroía seu peito, saudade do amor que nutria pela ruiva. Randik debulhou-se em lágrimas novamente, enojando-se com a dor e o desespero crescente ao imaginar que o desejo experimentado por Honora – uma criminosa perigosa do qual ela deveria manter distância – era uma das piores traições que poderia cometer com Tessa.
Repentinamente uma vertigem fez a policial amparar-se na bancada da pia. Temendo uma queda, devagar, ela foi caminhando até a cama, onde deixou seu corpo cair, esgotado pelas emoções.
Quando tinha se tornado tão chorona? Aquela já era a segunda vez em tão pouco tempo que se pegava chorando sem um motivo aparente, apenas pelas memórias que iam e vinham o tempo todo.
Talvez fosse o medo. Laura não queria admitir para si mesma, todo o medo que aquela situação trazia e transformava aquilo em pranto. O medo de que Andrey fosse ser a sucessora do pai a acabar com sua vida. O medo que tudo aquilo fosse uma farsa para conseguir sua confiança e depois atacá-la.
Parar de chorar foi difícil. Somente o sono acalmou suas lágrimas. Acordou mais tarde, abraçada pela escuridão do quarto. Por um segundo, sentiu-se de volta à sua primeira madrugada ali, perdida e ferida, sem saber o que estava acontecendo. A situação era diferente agora, pois ela sabia exatamente onde se mantinha e o que acontecia, desejando estar em qualquer outro lugar, menos ali.
A detetive levantou-se, ainda sonolenta e cambaleando. Tateando o escuro, tentou direcionar-se até o interruptor, mas acabou esbarrando o braço machucado na quina da cômoda que ficava perto da porta.
– Porr*! Porr*! Porr*!
A dor lacerante a fez suar. Sua visão enturveceu-se junto com as outras sensações de desmaio. Pensou em gritar por Honora, mas perdeu as forças até para isso. Com dificuldades, conseguiu sair dali. Não sabia ao certo o que fazer, só queria que aquela dor parasse. Ao olhar para o outro lado do corredor, notou que a porta do quarto da criminosa estava entreaberta.
“Ela deve ter algum medicamento no banheiro. Não vou arriscar chamar essa doida e ganhar um monte de agulhadas”, pensou a policial, que contorcia-se em padecimento.
A sorte parecia estar ao lado de Laura. Em uma mesinha, que ficava próxima da janela, ela encontrou embalagens de remédios e morfina recém compradas. Suspirando um tanto aliviada pela possibilidade de interromper seu sofrimento, pegou uma cartela, um frasco e uma agulha. Não seria nada agradável aplicar a injeção em si mesma, mas qualquer coisa era melhor do que outra pessoa aplicando.
Já em seu quarto, sem nenhuma preocupação com os procedimentos de higiene – somente com o cessar da dor – fez a aplicação intramuscular dos 10 ml da substância. Temendo não sutir efeito pela sua ignorância na forma de se medicar, Randik resolveu tomar um comprimido. Tola e inconsequente. A detetive não sabia que a interação medicamentosa e os efeitos colaterais da morfina poderiam ser deveras incômodos e severos, em alguns casos. A dose normal já era um perigo, imagine o excesso.
Mas aquilo pouco – ou nada – lhe importava. As pontadas no braço ferido não passavam, eram insidiosas. Começavam, apertavam até atingir um altiplano e permaneciam ali. Parecia que estavam enterrando uma faca em sua carne. Depois de alguns minutos sentindo aquela dor, mas já deitada de costas na cama, o teto começou a girar e a policial teve a certeza de que aquilo era pior do que a morte.
Aos poucos a dor foi melhorando, junto com seus sentidos que se esvaiam, mas as pontadas ainda não tinham ido embora. Estavam lá, no fundo, tal como unhas afiadas prontas para beliscar a pele, assim que o efeito do analgésico diminuísse.
Batidas na porta chamaram sua atenção, seguidas pelas patas de Hans batendo no piso, inquieto por algum motivo. Andrey adentrou o recinto mesmo sem ter autorização, forçando a detetive a virar para o lado da parede. Não queria ter nenhum tipo de conversa, nem dar indícios do que havia acontecido consigo.
Sem se importar com a péssima receptividade, a bandida aproximou-se, sentando na cama, ordenando que Hans deixasse o quarto pelo menos três vezes antes que ele obedecesse. Encontrando-se a sós, ela respirou profundamente, provavelmente buscando por um pouco de paciência.
– Eu trouxe sorvete. – Honora sussurrou – Me desculpe por tudo o que estou te fazendo passar. Eu tenho o costume de exceder os limites às vezes.
Aquela fala fez a outra virar-se imediatamente, encarando-a.
– Às vezes? – A tatuada sorriu.
– Vamos fingir que sim.
– E você acha mesmo que sorvete resolve todos os problemas do mundo? – A policial tentava transparecer normalidade ao se ajeitar na cama, mas por dentro ainda carregava os resquícios do mal que passara há pouco. Queria chorar pela dor, reclamar, esbravejar, mas de certo ouviria um sermão e seria repreendida, sabe-se lá de que forma. Preferiu, então, emudecer-se sobre isso – Ainda mais sorvete sem calda?
– Você dormiu bastante, daí imaginei que estivesse com fome. Separei seu prato do jantar, está no forno, mas como a noite está bem quente, supus que sorvete fosse melhor do que massa. – Honora deu de ombros, oferecendo a vasilha contendo a sobremesa e uma colher - Não sou boa em pedidos de desculpas. O único que saiu bem planejado foi cuidar desse machucado no seu braço.
– Não vou dizer que ele funcionou cem por cento. - A policial declarou, tentando se sentar e arquitetando uma maneira de conseguir tomar o sorvete com uma mão só.
– Não pode dizer que não tentei.
Randik apenas rolou os olhos e apanhou a vasilha, colocando-a sobre suas pernas esticadas para tentar pegar uma colherada do sorvete. A tatuada percebeu a dificuldade e se dispôs a segurar o recipiente, enquanto a outra conseguia apanhar um pouco na colher.
– Obrigada.
– Não por isso. – Ela suspirou - Ainda não me disse se estou desculpada.
Laura terminou de saborear o sorvete, antes de voltar a falar.
– Talvez...
As duas ficaram um breve período em silêncio, enquanto a policial devorava a sobremesa e a psiquiatra apenas assistia. De forma surpreendente, era bem menos desconfortável ficar em silêncio do que foi nos dias anteriores.
– Laura...
– Hum...
– E se eu conseguisse te tirar daqui, sã e salva, e você voltasse para me prender?
– Ow! Essa era a sua intenção quando me salvou? – A detetive semicerrou os olhos.
– Não. É apenas um devaneio que acabou de passar pela minha cabeça. Bom, mesmo que não queira me prender, eu ainda quero te tirar daqui.
– Quem te conhece além da máscara “Honora Andrey, a criminosa”, se surpreende, não é mesmo? Você é um coração de manteiga em uma embalagem de chumbo. – Randik riu brevemente, interrompendo o ato por conta da pontada de dor que sentiu.
– Deixa de ser ridícula. – A tatuada sujou o dedo de sorvete, passando no nariz da outra.
– Mas que... que merd* você fez?
Honora começou a gargalhar. Aquele som era demasiado gostoso e contagiante para Laura enervar-se com a brincadeira.
– Agora você está uma ridícula completa.
Sem condições de protestar, a policial riu conforme suas condições permitiam.
– Acho que ficar tempo demais aqui já me enlouqueceu. Olhe só para mim! Estou rindo, sóbria, em uma conversa com você. – Ela exprimiu.
– Talvez você não pense mais que “o criminoso só é bom quando ele está morto”. Quem sabe o seu pensamento agora seja “criminosa boa é aquela que cuida do meu machucado, que trans* gostoso comigo e me traz sorvete quando estou triste”. - Andrey sugeriu, umedecendo os lábios sensualmente.
Randik percebeu suas intenções, mas nem se quisesse seu estado físico permitiria pensar coisas com conotação sexual.
– Não se engane. Ainda não me tornei fã de bandidos. – A detetive afastou o vasilhame, voltando a se deitar.
– Que bom, porque eles também te odeiam. - Com o sobrolho esquerdo erguido e uma frustração nada latente por cauda da negativa da outra, a psiquiatra levantou-se, caminhando até a porta.
– Preciso goz*r. Vou estar no meu quarto caso necessite de alguma coisa. Boa noite, detetive.
Fim do capítulo
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Brescia
Em: 25/05/2019
Boa tarde mocinha.
Foi bem interessante a interação entre a Laura e o Liam, a dor inraizada nos corações, faz com que se respeitem e são até engraçados. Não será fácil esse jantar.
Baci piccola.
Resposta do autor:
Laura e Liam são dois polos opostos que deveriam se manter distantes, mas que se atraem por essa dor comum, pelo fato de cometerem os mesmos erros, mas sob angulos diferentes e lutarem contra seus fantasmas. Mundos diferentes que se colidem, assim como a nossa detetive e a nossa criminosa.
Quem sabe o Sr. Nickolai poupe a vida desses queridos e nos deixe ter mais cenas assim?
Essa festa não será nada fácil mesmo, só vamos torcer para que ninguém saia ferido, não?
Baci mia cara ragazza!
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