Cronologia Criminal Dia 5 – Quarta-feira, 18/04/2018, 11:23
– Por favor, Honora, eu não estou à beira da morte. – Laura protestava, enquanto a criminosa apontava a pequena lanterna para o interior de seus olhos, ordenando que ela mantivesse o olhar fixo à sua frente.
– Os medicamentos que venho te dando podem ser viciantes. Só estou checando se não exagerei na dose. Você se recusou a comer... A adrenalina não te deixou sentir dor por um tempo, mas fico com receio de que tenha uma reação pior. – Andrey suspirou ao terminar o exame físico - Não sente mesmo nenhuma tontura, visão turva, dificuldade para respirar... Nada?
– Não! – A policial negou, usando seus dons de atuação para tentar enganar a outra. Randik decidira não comentar sobre sua descoberta com a tatuada, pois acreditava que aquele não era o momento certo. Ao que tudo indicava, Honora estava inocente na história quanto aos fatos. Hipoteticamente ela era isenta de culpa quanto ao ocorrido, mas Laura não podia pisar em falso e colocar o pouco que lhe restava – sua mísera vida – em risco. Ela preferiu esconder a verdade, pelo seu bem, pelo bem de Andrey, pela sobrevivência de ambas. Afinal, a detetive era o alvo naquele momento e corria um sério risco, revelando-se – A minha falta de apetite não tem absolutamente nada a ver com meu ferimento, você sabe disso. Quanto mais vai ficar me cutucando?
– Até eu ter certeza de que nada do que estou fazendo está te causando algum mal. – Honora bufou, um tanto impaciente, guardando seu material de volta na maleta de primeiros socorros - Normalmente eu só aplico morfina nos “duendes do Papai Noel” que chegam até a mim feridos. Não podem ir a um hospital, então, me chamam quando o médico não está disponível. Nunca me importo se eles vão se foder com o que eu os mando ingerir ou não, portanto, não sou dada a calcular doses ideais.
– Ai, Senhor, eu mereço mesmo estar nas mãos dessa mulher que tem fixação por agulhas e não faz cálculos de doses farmacológicas? – A indagação cômica, fez a outra sorrir após um longo tempo mantendo-se carrancuda.
– Relaxa, anjo. Eu tenho formas melhores de te matar.
Andrey estava prestes a ser mandada para um lugar bem reservado, mas a intenção foi interrompida pelo toque de seu próprio celular. De imediato, a tatuada pegou-o no bolso de trás da calça, contorcendo o rosto em sinal de asco ao identificar o número no visor.
– Sr. Randik, quanto tempo! Algum problema? – Ela inquiriu, debochada.
Um arrepio tenebroso percorreu todo o corpo da detetive ao ouvir quem era. Instintivamente, ela arregalou os olhos em sinal de alerta, prendendo a respiração em seguida.
– Como você está, minha filha? – A voz do homem do outro lado da linha era fria e impassível.
– Estaria melhor se você, por acaso, decidisse desligar na minha cara, hum... agora.
– Quanta amabilidade! – O homem satirizou - Danny chegou aqui com algumas informações interessantes. A perna dele, inclusive, é uma informação e tanto.
– Oh, foi por isso que ligou? Quanta inocência a minha! Eu estava realmente imaginando que, ao menos uma vez na vida, tivesse recebido uma ligação do meu pai preocupado com o meu bem estar... – E mais uma vez Honora carregou a sua fala de deboche – Mandou os seguidores do diabo virem até a minha casa terminar o que você não conseguiu fazer na emboscada? – Ela bufou alto - Sim, eu atirei na perna dele e atirarei em qualquer um que invadir a minha privacidade. – A tatuada pontuou, revirando os olhos - E da próxima vez que ele ou qualquer um dos seus capangas idiotas ousar dar tranquilizantes para o meu cão, eu atiro na cabeça.
– Honora, Honora... Os anos passam e esse seu temperamento intempestivo só piora. Cuidado com essa rebeldia, minha menina.
– Ah, pai, vamos nos poupar, pelo amor de Deus. Nós dois sabemos que tentou me matar. Eu só queria entender o porquê. – Como a resposta não veio de imediato, Honora mordeu o lábio, prendendo a respiração por alguns minutos, ponderando sobre o rumo que aquela conversa iria tomar – Quer saber? Deixa isso para lá. É só uma questão de tempo para você conseguir o que quer mesmo. Não importa nenhum “porquê”... – Ela levantou-se e foi caminhando até a janela do quarto - Qual o real motivo da ligação?
– Você está totalmente equivocada, Honora.
– Estou mesmo, papai? Você ter dado um jeito de me mandar para aquele lugar, os negócios... Você sabia que eu não permitiria que ninguém estragasse todo o meu trabalho.
– Eu sei mesmo que odeia interferências. Te conheço melhor do que imagina. É inteligente e orgulhosa demais para admitir que pode falhar, ainda mais sendo por causa de culpa alheia.
– Eu sempre estraguei os seus planos, não foi? Sempre fui mais esperta que você e isso fere seu ego, o machuca.
– Deixa de bobagens. Você e nem ninguém me atinge dessa forma. Seria muita pretensão de sua parte achar que atacaria o seu pai, não seria?
Já sem nenhum resquício de paciência para o monte de baboseiras que estava ouvindo, Andrey prendeu a respiração, fechando os olhos e mordendo o lábio por alguns segundos.
– Eu não tenho tempo de sobra a perder com você. O que quer? – Ela indagou.
– Nada demais. Só quero saber se está com visita em casa. Me disseram que viram coisas suspeitas por aí. E você... Bom, você não está agindo de forma coerente.
– E como espera que eu aja depois de quase ter sido pega? – O homem do outro lado da linha gargalhou, divertido – Qual foi a piada?
– E quem precisa de DNA? Você é mesmo a minha filha. Pensa mais sobre o fato de quase ter sido pega do que de quase ter sido morta. – Ele suspirou alto – E então?
Honora, com o semblante sisudo, testa franzida e ares de preocupação, olhou para Laura, que tentava se manter impassível ouvindo a conversa. A policial prestava atenção em tudo, todas as respostas e reações da outra, tentava captar o teor do assunto que tratavam a fim de descobrir até que ponto corria perigo.
– Sim! – A tatuada respondeu de súbito – A minha namorada esteve aqui. Ficou preocupada comigo, quis me relaxar, se é que me entende. – Andrey percebeu o desconcerto da detetive ao ver seu peito arfando.
– Mais uma vagabunda, Honora?
– Vagabundas são as putas que te rodeiam. Ela é minha namorada. Não vou morrer solteira como você. Não se preocupe, ademais, se ela souber dos esquemas, tenho certeza que vai manter mais segredo do que seus queridinhos. – Argumentou a criminosa.
– Será mesmo? Por que não marcamos um jantar? Adoraria ver pessoalmente como ela mantém a boca ocupada para não falar besteiras.
– Não quero amaldiçoar a vida dela.
– E a policial?
– O que?
– Não tinha uma policial te acompanhando quando foi presa?
A postura de Andrey modificou-se ao mesmo instante em que sua respiração ficou ofegante. Ela havia entrado na defensiva com as indagações do pai por não saber até onde ele tinha conhecimento dos fatos e o que pretendia.
– Está morta. – Foi a primeira coisa que pensou em responder.
– Como sabe? Não foi embora do local? – O Sr. Andrey era demasiado esperto.
– Não sei. Suponho. Quem atirou contra nós não economizou balas. Eu escapei porque tinha uma vantagem a mais que ela: sabia com quem estava lidando.
A psiquiatra pôde notar o corpo de Randik ficando tenso ao ouvir aquilo. Entendia perfeitamente o que se passava na mente da policial. Imaginava que lhe ocorriam todas as ideias possíveis sobre como fugir dali agora. Mesmo com sua sagacidade, aquela conversa e o fato de o pai desconfiar de que alguém estava em sua companhia dentro da mansão, era tal como uma admissão de culpa.
– O que mais sabe dela? Sei que fez uma pesquisa minuciosa acerca dessa policial.
– Eu não sei nada. Não tive tempo nem de pensar. Como eu disse, estava ocupada... trans*ndo.
– Me parece muito tranquila, Honora, mas devia se preocupar. A mulher sumiu. Não tem corpo, não tem sinal dela. Se ela não aparecer, quem pagará por isso será você, sabe muito bem.
– Que se dane.
– A que horas virá aqui tratar o estrago que fez no Danny?
– Hora nenhuma. Se ele não tivesse invadido a minha casa e dopado o meu cachorro, não estaria nessa situação.
– Você tem uma hora para aparecer, se não quiser que eu vá te buscar.
– Desgraçado. – Andrey sussurrou.
– O que disse?
– Nada.
– Imaginei. Até daqui a pouco.
Honora encerrou a chamada e grunhiu de ódio. A ideia de atravessar a cabeça do seu progenitor com uma bala estava longe de ser concretizada, mas era terrivelmente atraente.
– Ele acreditou nas asneiras que disse? – A policial perguntou.
– Acho que sim. Minha vida sexual é bem ativa, então, se fosse verdade, não seria absurdo dizer que estou com a minha namorada.
– O que vai fazer agora? – Laura cobriu-se com o edredom, sentindo calafrios.
– O que mais gosta de comer? – A bandida questionou, ignorando a pergunta.
– Qualquer coisa, mas o que tem a ver?
– Só quero saber. Talvez eu passe no mercado outra vez.
– Por que? Como assim?
Randik preocupou-se em demasia, engolindo em seco. Não queria ficar sozinha ali, no território inimigo, sem a mínima condição de se defender. Teve sorte mais cedo, mas e se não tivesse uma segunda chance?
– Eu vou ter que ir tratar o ferimento do infeliz que euacertei. Se eu não for vai levantar ainda mais suspeitas. Hans ficará contigo no quarto. Não se preocupe. Não vou demorar. Quando ele acordar, poderá te proteger.
De fato, a detetive tinha sido pega de surpresa, sem uma chance de contestar ou de responder. Só entendia que, mais uma vez, estaria sozinha na casa de uma criminosa onde era provado que vários outros iriam invadir.
– Quanto tempo isso pode demorar? – Indagou.
– Não sei. É um tiro na perna. Preciso remover a bala, suturar a ferida e administrar os remédios. – A psiquiatra explicou – Acredito que com duas horas, no máximo, estarei de volta.
– Sério? Tudo isso? Se com meia hora já entraram aqui e fizeram um grande estrago, imagine o que não farão com duas horas. – A policial reclamou.
– Fique tranquila que estou pensando em tudo, anjo. Vou pedir que Liam venha até aqui e te ajude mudar o seu visual. É a coisa mais certa que está se passando pela minha cabeça agora. Se conseguirmos fazer um bom disfarce, talvez teremos um pouco mais de tempo. Você passará a ser oficialmente a minha namorada. – A tatuada percebeu de imediato a expressão de desaprovação da outra – O que foi? Não gostou da ideia? Quando gozou na minha boca parecia estar gostando. – Laura pigarreou, constrangida, o que fez Honora rir brevemente, meneando a cabeça em negativa – Eu já vou indo. Quanto mais cedo sair, mais cedo retornarei.
E foi assim que Randik se viu trancada no interior da casa, mais uma vez, com Hans adormecido, com seu ferimento latejando e sua cabeça a mil, pensando em tudo o que havia descoberto, em tudo o que estava prestes a viver... ou morrer.
Após ajeitar-se na cama, em uma posição que favorecia o alívio do incômodo do curativo, a mulher fechou os olhos, uma vez que aquilo era tudo o que podia fazer no momento. Contudo, alguns minutos depois, batidas firmes na porta fizeram seu coração disparar.
“Céus!”
**********************
Tessa estacionou a viatura do outro lado da rua, alguns metros longe da casa que o GPS indicava. Por instinto, ela estava agindo sem comunicar seus atos ao seu superior direto, o capitão Daniel. Ela confiava no homem, decerto, uma vez que trabalhavam juntos há anos no mesmo departamento. A desconfiança em questão era sobre quem estava cercando o seu território: o capitão Yan.
Desde que o vira pela primeira vez, quando deram início àquela operação, era como se um dispositivo em seu cérebro – parecido com o de um despertador enguiçado – ficasse martelando “tem algo errado com esse homem”. Tessa não sabia dizer se era um devaneio, uma implicância gratuita por conta de seu semblante demasiado sisudo, mas a mulher sabia bem que, não confiar em seu sexto sentido, podia ser um erro fatal, afinal, nunca estivera errada em toda a sua vida.
Assim, logo quando fora sinalizada no sistema a liberação dos resultados de algumas provas colhidas na cena do crime onde encontraram o camburão, a policial tratou logo de agir antes que os seus colegas de trabalho vissem. Burlou os arquivos para que eles fossem apagados da listagem geral da perícia, usou bancos de dados nos quais oficialmente não poderia ter acesso, usou de sua “inteligência cibernética” para hackear programas sem um mandado expedido. Ela não tinha tempo para provar causalidades e ceder a formalidades que demandariam horas e horas para conclusão. Laura não podia esperar. Tessa precisava salvá-la e não o faria parada, exprimida entre quatro paredes sufocantes, tal como era a clausura chamada de Departamento de Homicídios.
Com algumas investidas e pouco mais de uma hora, a detetive conseguiu buscar imagens de uma câmera de segurança no centro da cidade, datando de mais ou menos o horário do suposto crime, onde um Pajero marrom circulava em velocidade alta pelas vielas, esquecendo-se de qualquer lei de trânsito. Sagaz, ela escarafunchou cada quadrante do vídeo e teve a certeza de que aquele era o carro, ou um dos que participou do atentado ao furgão onde sua amiga estava. Ao congelar a imagem, ela pôde perceber as marcas de batida, compatíveis com as que marcavam o veículo da polícia.
Buscando pelos registros do carro, Tessa descobriu, obviamente, que a placa estava adulterada. Entretanto, em um golpe de sorte, conseguiu um frame mais limpo, onde o rosto do motorista apareceu parcialmente, mas foi o suficiente para uma varredura no banco de dados. Christopher Jonathan Nolan, esse era o nome do filho da puta que provavelmente havia atirado contra Laura.
O problema é que a detetive não encontrou nada a respeito do cara, nenhuma passagem, nenhum registro de seguro saúde, nada que pudesse a levar até ele.
Quando estava prestes a desistir, ampliou mais uma vez a imagem congelada e ficou mirando para o rosto daquele infeliz por longos minutos. E ainda bem que o fez. De súbito, Tessa lembrou-se de um caso, há uns anos, em que estavam investigando o assassinato de um figurão do tráfico internacional que fora encontrado em sua jurisdição. O rosto daquele motorista assemelhava-se muito com um dos interrogados. Era difícil de acreditar, mas a policial tinha memória fotográfica, ainda mais em se tratando de faces com características tão marcantes, tal como as dos homens em questão. Eles tinham traços de descendência nórdica, mas a pele era demasiada bronzeada para serem europeus ou pertencentes ao hemisfério norte.
Pesquisando nos arquivos, Tessa conseguiu encontrar o nome que procurava: Daniel Jefferson Nolan. A deduzir pelos sobrenomes, provavelmente os bandidos eram parentes, ou até mesmo, irmãos.
Ainda com o universo conspirando a seu favor, a policial conseguiu mais um nome, juntamente com um endereço do outro lado da cidade, e era onde estava naquele exato momento. Antes que qualquer um no departamento desconfiasse de suas ações, ela saiu em disparada, em busca de pistas sobre o paradeiro de Laura.
Prezando pela sua integridade física, enquanto ainda estava dentro do carro, a ruiva conferiu suas armas e as algemas. Posteriormente, foi caminhando lenta e cautelosamente em direção à porta.
Por dentro, revirava os olhos para si mesma por conta do impulso inconsequente. Podia estar seguindo em direção à sua sentença de morte, já que fora até o local em uma viatura, sem reforços e não fazia questão nenhuma de esconder o que era. Mas havia feito uma promessa a si mesma e Tessa não era mulher de quebrar promessas: encontraria e salvaria a amiga, nem que isso lhe custasse a vida.
Uma, duas, três batidas na porta e a impaciência já reinava na detetive. Seus dedos destros tamborilavam no coldre, ao passo em que a mão esquerda se apoiava no batente de madeira. Respirando fundo, ela torcia para ser atendida e poder descobrir algo de relevante, mas em contrapartida, torcia para não receber um tiro bem no meio da sua testa.
Quem abriu a porta, depois de um pouco mais de insistência, foi uma loira de seios avantajados, cabelos curtos, muito sensual, bem parecida com Scarlett Johansson.
“Oooww!”, Tessa exclamou em pensamento ao mirar a mulher de cima a baixo, boquiaberta.
– Em que posso ser útil? – A voz da loira era vacilante, denunciando um “quê” de nervosismo, provavelmente por estar de frente para uma policial.
– Detetive Bale. – Tessa saiu de seu breve devaneio, respondendo a outra com seu tom impositivo enquanto mostrava sua identidade funcional – Por acaso você é Amy Nolan?
– E por que você quer saber? Estou sendo acusada de alguma coisa?
A detetive teve que prender o riso daquela suposta negativa afirmativa.
– Por enquanto não está sendo acusada de nada, mas nunca se sabe, não é, senhorita? Estou investigando um caso de desaparecimento, talvez um possível assassinato. – Ela pontuou.
– E o que eu tenho a ver com isso?
Usando de seus dons de análise psicológica e de sua experiência com a linguagem corporal dos suspeitos que já interrogara, a policial Bale pôde perceber um rastro de pavor na resposta da linda mulher estática na porta. Os olhos dela não paravam de saltar entre a detetive e algo que estava ao seu lado, na parte de dentro da residência. Atenta, Tessa desviou o olhar daquele par de seios que pareciam querer saltar e bater em sua cara, direcionando a visão para as mãos inquietas da loira, que se abriam e fechavam, limpando o suor das palmas nas pernas que começaram a tremelicar repentinamente. Decerto que ela escondia algo.
– Conhece algum Daniel Jefferson Nolan? – A outra negou com um movimento veemente da cabeça – Ah, não? E por acaso conhece Christopher Jonathan Nolan? – Outra negativa – Engraçado... Seus sobrenomes são iguais. Tem certeza de que não são parentes?
– Eu não conheço ninguém com esse nome. Eu não sei de nada. – A loira fez menção de fechar a porta, mas foi impedida por Tessa.
– Um Pajero marrom que esteve envolvido em um acidente tem o registro em nome de Christopher. As informações do banco de dados da polícia ligam esses dois caras diretamente você. São irmãos, não adianta negar. E, por burrice ou azar, uma câmera de segurança registrou a hora em que você estava passeando ontem com esse mesmo carro. Foi fazer compras no shopping, Srta. Nolan? O tem para me dizer sobre isso?
A mulher entreabriu a boca para tentar balbuciar algo, mas o que saiu foi apenas um soluço um tanto desesperado demais, beirando a falsidade. A suspeita caiu em prantos, cobrindo o rosto com ambas as mãos. Tessa revirou os olhos ao mesmo tempo em que soltou um longo e profundo suspiro de tédio. Já vira aquela ceninha patética milhares de vezes, e nem se fosse gay ou um homem hetero, se deixaria levar por lágrimas falsas e por aqueles seios tão assimétricos e convidativos.
– Me perdoe, por favor. A culpa foi minha, mas não tive a intenção de machuca-la. Eu não queria, mas não podíamos deixar a coitada morta daquele jeito, meu Deus...
– O que... O que está dizendo? Morta? Quem está morta?
– Eu não sei quem ela é, está bem? Chris e Danny são meus irmãos. O dia em que estive com o carro eu tinha pegado escondido para dar umas voltas. Caramba! Eu não devia ter feito isso. Mas eles não a viram. Ela simplesmente estava vindo na contramão, acho que queria bater de propósito. Danny não teve tempo nem condições de reagir. Ele virou o volante e conseguiu fazer o carro bater só na lateral, mas o impacto foi muito forte. O carro dela capotou e começou a pegar fogo. Eu não sei como ele conseguiu reunir forças para ligar para a gente. Eu e Chris fomos lá. Estávamos em uma estrada auxiliar, uma daquelas que fica na saída da cidade, sabe? Raramente passa alguém ali e... foi sorte. Eu surtei, tinha bebido umas doses com umas amigas, fiquei com medo de ele ser preso. Nós nos ajudamos, nos protegemos... Oh, meu Deus!
Uma nova onda de choro compulsivo, mas dessa vez, Tessa não demonstrou impaciência, e sim, agonia e apreensão.
– Você quer continuar, por favor?
– Não tem o que continuar. A enterramos por ali, viemos embora para casa e estamos tentando esquecer aquela cena horrível, só que é tão difícil!
Antes que a mulher retornasse à sua encenação de quinta categoria, Tessa a interrompeu com um gesto.
– A que horas isso aconteceu, Srta. Nolan?
– Por volta de 01:00, 02:00 da manhã. Eu não sei dizer. Tudo virou um emaranhado confuso na minha cabeça.
– E qual foi o dia?
– Hã... Acho que na madrugada de domingo para segunda.
Conforme a outra ia falando, a detetive ia sentindo seu estômago revirar. A possibilidade de ser Laura naquele carro tentando fugir de quem queria mata-la era por demais dolorosa. O nervosismo e a respiração desregulada estavam ficando bem aparentes e, pelo protocolo, não poderia demonstrar nenhuma emoção diante da suspeita.
– E seu irmão? Onde está?
– Não sei. Ele saiu cedo e não voltou ainda.
– Acha que ele conseguiria me dar uma descrição da mulher que estava no carro que colidiu com o dele?
– Não! Não! Ele estava assustado, aconteceu tudo muito rápido.
– Tem certeza?
“Meu Deus! E se for a Laura? Pode ser como pode não ser. Não dá pra ficar com essa dúvida...”, Tessa pensou, ao instante em que sentiu algo como um soco em seu abdômen.
– Está tudo bem, policial? – A loira indagou, limpando suas lágrimas.
– Sim, está. Hã... Srta. Nolan. Certamente nós vamos voltar a nos falar. Recomendo que fique na cidade. Avise os seus irmãos que estejam prontos para conversar com a polícia também. Entendido?
– Sim. Sim, policial, entendido. Obrigada por ser tão gentil.
– Não me agradeça tão cedo assim. Tenha um bom dia.
A mulher, que havia amenizado a intensidade do teatro e agora fazia cara de “moça inocente”, arregalou os olhos e ficou olhando a detetive se afastar.
Assim que entrou na viatura,Tessa tratou logo de sair dali, pois estava sozinha e não sabia o que poderia ocorrer depois daquela investida. Havia cometido várias infrações, vários erros para estar naquele lugar, mas com certeza tinha valido a pena cada ação. Agora tinha o poder de alguns dados que ninguém mais tinha, bastava saber se eram verídicos ou não.
Ao arrancar com o veículo, seguiu para o departamento, dirigindo tão lentamente, que mais parecia fazer uma ronda em bairro escolar. Enquanto mantinha as mãos no volante, ponderava sobre o que fazer com as informações que arrancou sem querer da versão criminosa de Scarlett. Não chegou a nenhuma outra conclusão senão guardar tudo para si e continuar agindo sob o manto da obscuridade, da ilegalidade. Sabe-se lá o quão ruim poderia ser se tais fatos caíssem nas mãos erradas, se descobrissem na frente dela o paradeiro de Laura e usassem isso para finalizar um serviço mal feito. Não! Ela não permitiria. Tessa jamais deixaria a amiga à mercê da própria sorte, mesmo agora com a incerteza de sua vida presente.
********************
Liam misturava as cores de tinta em um vasilhame, intercalando o olhar das suas mãos para o semblante carrancudo da mulher à sua frente. Laura não parecia nada, nada contente com o que estava sendo feito. Questionou o homem mais de uma dezena de vezes sobre a necessidade de tudo aquilo e era resposta que ouvira era sempre a mesma: “prefere transformar radicalmente o visual ou prefere descer para o inferno de tobogã por conta de um tiro na testa?”.
Randik estava certa de que a sua descida para um bate papo com Lúcifer era só uma questão de tempo, mas não queria antecipar a sua ida. Não sem antes concluir as pendências que tinha, ainda mais agora, sabendo que seu maior inimigo estava mais perto do que nunca.
De fato, fingir que seus fantasmas do passado não a estavam atormentando, não estavam berrando dentro de sua cabeça, era demasiado difícil. Manter o semblante impassível, manter os ares discretos era como um exercício intenso de atuação, do qual ela descobrira o talento latente há pouco. Mas se quisesse viver, era assim que deveria agir. Se quisesse cumprir a promessa que fez ao pai, teria que passar por cima de seus sentimentos intrínsecos e enfrentar, primeiramente, o demônio que estava em Terra.
– Já não basta o susto que me deu quando bateu na porta? Você tosou o meu cabelo e agora quer pintá-lo com essa cor horrível? – A mulher reclamava, brava – E desde quando você é cabeleireiro?
– Puta merd*, como você é insuportável! – Após ter colocado as luvas, Liam passou a separar e tonalizar os fios da detetive – Você nem me conhece para saber das minhas habilidades. Queria entender o motivo do preconceito, se é que preconceito possui alguma justificativa. Sou homem e por isso não posso saber pintar o cabelo de mulher? Tantos caras por aí que fazem esse tipo de trabalho! Eu teria que ser gay para ganhar sua confiança e credibilidade?
– Não! Você ser gay ou hetero não faz a menor diferença. Eu só acho... desnecessário, é isso! O seu tio vai me achar aqui mais cedo ou mais tarde, não vai? Com certeza ele descobrirá rapidamente que sou uma policial. Está querendo mudar o meu visual para o meu enterro?
– Talvez, provavelmente sim, porque estou prestes a te matar se não parar de falar sobre isso. São ordens da Honora. Pronto! Quer ver de novo a mensagem dela? Vocês duas vão passar por uma transformação total. Ela nem tanto porque é reconhecível a quilômetros de distância, mas você... Vou fazer uma cirurgia plástica só que sem a cirurgia em si. – Um bufar contrariado da mulher fez Liam rir brevemente revirando os olhos – Agora... Ainda estou “encucado” com o fato da Honora ter te deixado trancada no quarto.
– Ela ficou com receio da invasão mais cedo. Eu ficaria mais vulnerável se estivesse “solta” pela casa. E no fundo ela tinha razão. Acham que aquele quarto é uma espécie de depósito. Se mantivesse a porta trancada, talvez eles não desconfiassem que alguém estava lá dentro. – Laura comentou, fechando os olhos quando do sinal do rapaz, que passou a pintar suas sobrancelhas.
– Mas sabe o que é mais engraçado ainda? Quer dizer, engraçado não, estranho, surpreendente...
– O que?
– Honora contar que vocês duas estão namorando. À princípio ela não quis dizer nada, ficou se esquivando, mas sabia que aquela puta safada tinha sérios motivos para te salvar, para salvar uma policial, mas não imaginei que fosse algo tão profundo.
– Hã? – Randik indagou, espantada.
– Não se zangue por isso. Só... Ah, vamos, Laura. Eu não tenho culpa por achar estranho que você seja o tipo dela. Você é tira e aquela mulher deve estar sendo acusada por pelo menos uma centena de crimes. São mundos muito, mas muito distantes. Isso é bastante errado!
– Oh, com certeza isso é bastante errado, mas a questão nem é essa. O fato é que eu não namoro a sua prima. A detetive retificou.
- Jura? Mas como assim, “não namora” a Honora? – Indagou o homem – Eu perguntei agora, na última ligação que fizemos, quando ela me contatou pedindo para vir aqui. A safada respondeu tão rápido e de forma tão convincente, que acabei engolindo a história.
- Liam, eu não sei o porquê dela ter me salvado, mas garanto que não foi uma atitude passional.
O homem deu de ombros, movendo-se para verificar a tintura que havia passado na parte de trás da cabeça da policial. A arma que trazia consigo na cintura escapuliu do seu devido lugar, obrigando-o a tirá-la do coldre. Instintivamente, Laura sobressaltou-se. Ao perceber tal feito, Liam começou a rir, deixando a mulher uma tanto irritada.
– Está com medo, Laura? – O cara indagou.
– É claro que não. Por quais motivos eu teria medo de você? – A detetive encarou-o em sinal de desafio.
– Deve ser porque sou um assassino treinado que tem um revólver na mão, e você é uma policial, a quem eu deveria odiar e que está com um braço ferido, quase totalmente incapaz de se defender. – Liam sugeriu, esfregando sua pistola.
“Caramba! Ele consegue ser tão irritante quanto a prima. Está comprovado pela minha ciência que chatice é genético”, Randik meneava a cabeça em negativa, incrédula.
– É, foi bem observado. – A policial rendeu-se, adotando uma carranca como expressão.
– Não se preocupe, minha ruiva. Honora pediu que eu cuidasse de você e é o que eu estou comprometido a fazer. – Ele afirmou, sentando-se para separar alguns materiais que usaria em outros procedimentos que faria na face da mulher – Se fosse para eu te matar, teria feito quando nos conhecemos.
– Não pode me culpar por me sentir intimidada.
– Não posso mesmo, mas normalmente eu mato apenas os imbecis de quem meu tio precisa se livrar.
– Sabe, Liam, acho que jamais vou me acostumar com essa sua naturalidade criminosa.
– Ora, e qual é o absurdo? Você mata criminosos e adora a sensação, não é? – Laura prendeu a respiração por alguns segundos, engolindo em seco em seguida, tomada de surpresa com aquela afirmação em forma de questionamento. Ninguém sabia desse seu lado frio e sanguinário, mas ao que parecia, Liam, no mínimo, desconfiava – Nós não somos muito diferentes. Você ama matar quem burla a lei. Eu amo matar quem faz o meu tio interromper suas festas e minha orgia.
Resiliente sobre sua condição de prisioneira, Randik acabou ficando curiosa sobre a vida daquele homem, sobre o mundo paralelo do crime em que ele estava inserido desde sempre.
– Como chegou a esse ponto?
– Eu nasci na família Andrey. De certa forma, eu sinto prazer em acertar meus alvos. Não posso mudar a minha natureza.
– Essa não é a natureza de ninguém, Liam. Sempre temos escolhas. Você é um homem tão bonito! Acha mesmo que não teria outros caminhos a seguir, se quisesse?
– Está tentando me converter, detetive? – O rapaz riu.
– Não! Só estou tentando entender.
– Lembre-se sempre de uma coisa que vou lhe dizer agora, Laura. Muitas vezes os nossos sentimentos são como pesadelos, e pesadelos são como monstros. Se você os deixa presos, eles vão se acumular e se agrupar em raiva, ódio e frustração. E quando finalmente se libertarem, vão destruir tudo o que estiver no caminho. – Comentou o bandido - Imagine o monstro que está prestes a ser liberto de dentro de você, quanto ele pode destruir?
Laura permaneceu calada, mirando um ponto qualquer no chão. Sua respiração estava desregular, dificultosa. Isso acabou confundindo Liam, mas este não ousou perguntar a respeito.
– Eu... Eu... Eu acho que te entendo. – A mulher finalmente balbuciou algo.
– Se eu guardasse todos os meus sentimentos ruins ou fingisse que eles não existem, se eu tentasse ser uma pessoa perfeitamente normal, uma hora isso iria me destruir completamente. Eu acabaria enlouquecendo. Eu sei que o que estou fazendo não é certo, e em um momento ou outro, serei pego e pagarei pelos meus crimes, mas enquanto eu tiver algo pelo o que lutar aqui fora, eu vou prezar pela minha liberdade.
Liam concluiu, levantando-se de onde estava sentado, fazendo sinal para que a policial o seguisse até o outro banheiro.
Não se preocupou muito se ela estava ou não refletindo a respeito do que dissera, mas sentiu que aquela era uma boa hora para ser honesto. Mesmo que não a conhecesse, o homem apenas sentiu o impulso, e não controlá-lo foi uma boa decisão. Não tinha solucionado sua vida ainda, seus traumas permaneceriam o assombrando a cada dia que passasse, e aquele momento foi apenas um dos que ele decidiu não prender o monstro em seu interior.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Brescia
Em: 24/05/2019
Boa noite mocinha.
Estou cada vez mais intrigada, são muitas pontas soltas, mas sei que a cada capítulo irei entender.
Baci.
Resposta do autor:
Buon giorno amore mio!
Eu deixo essas pontas soltas para ir unindo-as ao longo dos capítulos. Gosto de deixar vocês pensando "mas, pera aí, como isso aconteceu mesmo?" kk
Se acaso tiver alguma dúvida em específico, pode me perguntar, viu?
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