Cronologia Criminal Dia 4 – Terça-feira, 17/04/2018, 18:01
Enquanto conversava com Liam, o pai de Honora ligou para o sobrinho, indagando sobre sua filha. O “chefe” queria saber se o rapaz tinha entrado em contato com ela, se ele tinha estado com ela. Como não queria atrair a atenção de seu progenitor naquele momento, através de gestos, a tatuada pediu que o primo fosse vê-lo, antes que o outro tomasse a iniciativa.
Com inúmeras recomendações e um breve ensaio do que diria e como diria ao tio, Liam foi embora, prometendo retornar mais tarde. Sozinha, Andrey dirigiu-se até a adega, pegou uma garrafa de Pinot Noir, uma taça, seguindo para o seu quarto. Pelo celular, verificou os sistemas de alarme de toda a propriedade antes de ligar o som e sentar-se na cama a bebericar aquele néctar dos deuses.
A psiquiatra não contou ao rapaz que havia compartilhado parte de sua história com uma estranha. Partes verdadeiras e partes mentirosas. Mas, independentemente disso, apesar de ter se controlado – como sempre fazia na maioria das situações - enquanto conversava com Laura, as memórias do que aconteceu em seu passado voltaram a assombrar seus pensamentos, como faziam desde a sua tenra idade.
Ela aprendeu o sentido cruel da palavra escolha quando nem sabia direito escrevê-la. Foi obrigada a amadurecer antes de entender qual o sentido de viver em um mundo onde não podia ser uma criança normal, como as outras eram.
Escolhas... A criminosa sempre ponderou bastante antes de fazer as suas, mas mesmo assim, algumas foram decepcionantes e até autodestrutivas. Escolher salvar uma vida não podia ser pior do que escolher condená-la, por exemplo. Se tivesse seguido por outros caminhos, quantas vidas teria poupado? Se tivesse tentado salvar a si mesma, talvez teria experimentado a genuinidade do que seria sentir um fio de felicidade.
Honora nunca havia chorado, ou ao menos não se lembrava de tê-lo feito. Nem quando pequena ao machucar, nem por um coração partido, por uma tristeza qualquer, corriqueira. Nem a ação avassaladora dos hormônios em época de TPM era capaz de fazer algumas lágrimas escorrerem pelo seu rosto. Contudo, naquele momento, ela sentiu suas bochechas molharem. Até bem pouco tempo atrás, seus problemas pareciam distantes, agora, era como se o peso de ser Honora Andrey tivesse caindo feito bomba sobre sua cabeça.
Como não admitia ser fraca - ou ao menos ter lampejos de fraqueza, como todo ser humano tem - tratou logo de corrigir aquela falha em seu cérebro que a fez chorar. Ela limpou seu rosto com o dorso da mão esquerda, sorvendo todo o conteúdo de sua taça em seguida.
– São parecidas com rochas em uma avalanche. – A criminosa sobressaltou-se ao ouvir a voz de Randik vindo da porta. Só então foi que se deu conta de que não a havia fechado, apenas encostado – Às vezes, você simplesmente não consegue conter e, se tentar, elas continuarão rolando, descendo, até te esmagarem. - Honora não disse uma palavra. Somente fitou a outra, tentando entender o que ela fazia ali. Percebendo seu semblante confuso, a policial deu alguns passos para frente, entrando de vez no cômodo – Acredito que estou pronta para cumprir a minha parte no acordo. Não que eu tenha concordado, mas é uma questão de justiça.
– Uma questão de justiça... – A tatuada repetiu, meneando a cabeça em negativa e sorrindo, como se nada tivesse acontecido – Senta aqui, anjo. – Ela bateu a mão no espaço ao seu lado sobre o colchão - Você não gosta de mim e eu estou quase não gostando de você. Mas infelizmente eu não imaginei que a situação se transformaria em um jogo de vida ou morte. Querendo ou não, agradando ou não, estamos presas, juntas, nesta casa. Então, se não há saída, a única coisa que podemos fazer é tentar tornar isso o mais suportável possível. – Andrey levantou-se, reabastecendo a taça com o vinho – Aceita? Um gole não te fará mal.
Saudosa de uma dose de álcool em seu sangue, ainda mais vivendo momentos de tensão e adrenalina como estava, Laura assentiu, pegando a peça de cristal da mão da outra e tomando um gole da bebida.
– Hum... Esse vinho é uma delícia! É um dos melhores que já provei.
– A Pinot Noir é uma das uvas mais antigas, sabia? Deve ter aproximadamente uns vinte e poucos séculos de existência. Eu estive em Borgonha uma vez, a terra natal dessa fruta. Foi lá que aprendi a apreciar sua complexidade, sua elegância. O aroma é mais sutil que o da Merlot. Hum... acho que até mesmo da Carbernet Sauvignon.
– Vai me dizer que é uma enóloga também? – A bandida gargalhou, suspirando em seguida.
– Não. Até queria, mas não sou. – A Honora estreitou os olhos, encarando a outra de cima a baixo ao perceber que estava de roupa trocada – Fico feliz que tenha conseguido tomar um banho sozinha. – Ela comentou, mirando a blusa de tecido fino que havia deixado disponível para sua hóspede.
“Sem sutiã. Isso é um pecado”, pensou.
– Tarefa difícil nas minhas condições, mas ao menos não precisei passar pela vergonha de ter que ser ajudada.
– Eu o faria com o maior prazer... – A tatuada resmungou, mais para si do que para a outra - Ok! Você veio até meu quarto por um motivo. Não podemos perder o foco.
– E eu espero não me arrepender! – A detetive murmurou, finalmente sentando-se ao lado da outra, que havia acabado de retomar o seu lugar na cama.
– A pior tortura que existe no mundo é o arrependimento por não ter feito o que queria fazer... Se já fez, não tem como voltar atrás, não tem motivos para se lamentar. O tempo nunca volta atrás, portanto, faça o que quiser. Apenas... Faça! – A fala de Honora foi proferida em sussurros, que de tão próximos, pareciam ter sido ao pé do ouvido.
Laura arrepiou-se da cabeça aos pés, mas não por medo, como quando Liam invadiu a residência. Era um arrepio totalmente apreciável, aprazível. A policial poderia jurar que estava louca, mas era apenas o efeito de estar aprisionada começando a surtir.
Ela ficou em silêncio por um bom tempo, sob o olhar expectante da criminosa. Todo o desejo por saber mais, estampado em seus olhos, deixava Randik um tanto quanto desconfortável. Na realidade, a policial sequer sabia se deveria mesmo compartilhar uma parte de sua vida com aquela mulher.
Sentia que havia um quê de veracidade no relato da outra, mas ela era inteligente, uma sociopata, no mínimo. Seria fácil ter pesquisado e associado os acontecimentos contados a si para fazê-los parecerem reais. Honora era uma mentirosa inveterada, uma dissimulada, uma manipuladora, mas não demonstrava tais características naquele momento.
A detetive poderia simplesmente ignorar o tal “acordo” e deixar Andrey à deriva, tendo contado sua história como uma idiota. Mas a questão de confiança veio dentro de si, e a índole de Laura não a permitia parecer uma trapaceira. Tecnicamente ela não havia aceitado entrar naquela proposta, mas também não recusou e ouviu tudo sem protestar.
– Para o seu governo, contarei apenas o porquê eu estava chorando, e não boa parte da minha vida, como você fez.
– Eu não contei nem um décimo do que já aconteceu comigo e também não disse que queria uma biografia. – A psiquiatra desdenhou, com aquele sorriso sarcástico, por vezes insuportável, por vezes encantador – Vamos, anjo. Vamos logo com isso.
– Vou ter que repetir quantas vezes que me cansei de você me chamando assim? – Randik protestou. Honora apenas ergueu as mãos como em rendição, dando de ombros em seguida - Bom, essa não é a primeira vez que eu sou sequestrada. – A outra a encarava com o semblante impassível, sem demonstrar nenhuma reação, talvez usando o perfil que seria da médica, se atuasse como uma – Eu tive um pai, um pai estranhamente ambíguo, de atitudes grosseiras, de fisionomia carrancuda, de personalidade forte e impenetrável. Ele nunca fora o melhor homem, o melhor marido, o melhor policial, muito pelo contrário. Mas, caramba! Ele era um pai excepcional. Sempre me protegeu de tudo e todos, sempre cuidou bem de mim, física e psicologicamente, sempre me priorizou em sua vida. O problema é que ele sabia demais e me fez saber demais também. Um dia, depois do jantar, ouvi um barulho estranho vindo do andar de baixo. Desci para verificar e me deparei com eles...
– Eles? – A pausa dramática que Laura fez, somente aguçou a curiosidade da tatuada.
– Eram homens, vários, armados e nervosos. Pareciam dispostos a qualquer coisa para conseguir o que queriam. Gritei pelo meu pai e ele não atendeu. Aí eles me arrastaram para um lugar desconhecido, escuro, fétido. – Um suspiro veio antes da continuação - Foi a primeira vez que eu senti o verdadeiro significado da palavra medo. Eles queriam saber onde estavam os arquivos de uma investigação que meu pai comandava há anos. Ele havia se infiltrado, passado meses convivendo com aqueles caras para, no fim, roubar informações valiosas. Não era de se admirar que viessem atrás de nós. Como eu me calei, acabaram me torturando de diversas formas, só... só não me estupraram. Diziam que eu tinha sorte porque a filha do “chefe” tinha a minha idade e ele ficaria furioso se soubesse que... Um criminoso com índole, você acredita nisso? – Randik meneou a cabeça em negativa, segurando firme suas lágrimas contidas. Lembrando-se do ocorrido e do relato de Honora, a policial soltou uma risada incrédula – E sabe o que é engraçado? Depois de dias apanhando, privada de sono, comida, necessidades básicas, esses bandidos me deixaram ver meu pai, mas em um lugar parecido com o que você descreveu: uma clareira com uma espécie de cova. Queimaram o corpo do meu pai na minha frente, jogaram o coitado naquele buraco e eu não pude fazer nada. – Neste momento, Laura sentiu um grande nó se formando em sua garganta e o pranto escorrendo pelo seu rosto. Era surpreendente que tivesse chegado tão longe em contar a história. A única que sabia de detalhes era Tessa. Nem os colegas de profissão, durante os inúmeros depoimentos que deu na época, tiveram conhecimento de tais fatos – Meu pai era tudo o que me restava, a única pessoa da minha família, o único que me amava... E eu tive que vê-lo morrer.
– Isso não é possível...
Andrey sussurrou. Talvez achasse que a detetive não pudesse ouvir, mas estava enganada. Laura, mesmo que tivesse suas dúvidas sobre o que isso queria dizer, estava concentrada em tentar enxugar as lágrimas. No entanto, instintivamente, olhou para o lado e franziu o cenho ao notar as expressões faciais da outra. A criminosa parecia confusa, abismada, chocada, por assim dizer.
– O que disse?
– Não, nada. Só... pensando no que me contou.
– Oh, sim, pois é. Quando disse as palavras cova, rasa e queimar na mesma frase, acabou, sei lá, disparando meu gatilho. Essas lembranças voltaram como forma de dor, de saudade, de medo, de tudo. Eu acho que estou me perdendo, me desequilibrando. – Randik ajeitou-se sobre o colchão, ficando um pouco mais frente a frente com a outra - Eu tenho a sensação de que Liam tem razão: eu não sairei viva daqui. Isso está sendo... Terrível! Droga! – A policial esbravejou consigo mesma - Eu não queria contar nada a você. - Concluiu, respirando fundo na tentativa de se controlar - Nós não somos próximas, não tinha razão para me expor ou mesmo confiar em você.
– Isso é o que torna mais fácil confiar em mim e eu confiar em você. O melhor jeito de desabafar é com alguém que você sabe que não verá todo dia e, por isso, não vai ter que olhar para aquela pessoa e lembrar do desabafo. - Andrey exprimiu - E, bom, já temos um tempinho juntas e, pelo visto, teremos que passar um pouco mais. Eu não preciso confiar tanto em você, nem você em mim, mas falar sobre esse tipo de trauma ajuda, de certa forma. Talvez se sinta melhor agora.
– Você se sente melhor? – Laura inquiriu.
– Não.
– Pois então...
As mulheres ficaram em silêncio por alguns minutos, cada uma absorta em seus próprios pensamentos. Não seria possível mensurar o tempo em que permaneceram imóveis, encarando a parede à frente, com a mente vagando em outro lugar, outra época.
De repente, como se tivesse tipo um lampejo, Andrey levantou-se, ainda sem dizer absolutamente nada. Saiu do quarto deixando a policial com o cenho franzido, estranhando tal atitude. Randik bufou, batendo os dedos na cama, tentando entender a atitude da outra. Quando fez menção de se levantar para voltar para o seu quarto, a bandida retornou com outra taça e mais uma garrafa de vinho.
– Não sabemos o que pode acontecer conosco daqui a uma hora, duas, um dia. Não podemos apagar o nosso passado. Quisera eu poder... – Honora lamentou-se, suspirando – Enfim... Mas podemos esquecer momentaneamente tudo o que vivemos, tudo o que somos, toda a carga negativa que carregamos como fardo nas costas. Como médica, estou te liberando para beber. Vamos aproveitar o tempo de vida que temos, seja ele pouco ou muito, nos divertindo da melhor forma que pudermos.
– Honora, não...
– Não o que? – A tatuada entregou a bebida para a outra – O que você tem a perder, Laura? Olhe para você, olhe para onde está, com quem está. O que tem a perder, Laura?
– Nada. No momento, nada.
– Pois, então? – Andrey bebeu todo o conteúdo da taça – Huuummm... – A mulher soltou um gemido, fechando os olhos e balançando o seu corpo conforme o som que tocava – Adoro essa música... – Honora, deixando-se levar pelo momento, passou a dançar como se estivesse mesmo em uma boate, sem pudor, sem receio, apenas curtindo, quem sabe, seus últimos minutos na Terra – Quer fumar?
Ela indagou à outra quando a viu começando a se libertar de suas amarras e mover as pernas lenta e discretamente. Randik, que até então sorria, fechou o semblante em uma carranca, de imediato.
– Está oferecendo drogas a uma policial? – Ela parecia mesmo indignada.
– Anjo, aqui, agora, você não é mais uma policial; você é uma pessoa comum! Aproveite essa condição para tentar viver um pouco. Você pode não acreditar, mas eu não uso drogas. Nunca usei e não tenho a mínima vontade de experimentar. Mas se eu tivesse o desejo, acho que esse seria o momento perfeito para realiza-lo. Talvez você queira, e não vejo motivos para privá-la disso. Eu não quero morrer, Laura, mesmo achando a morte extremamente convidativa. Eu não quero que você morra, só que eu não posso impedir o destino de acontecer. Vamos tentar partir dessa para uma muito pior, pelo menos fingindo que somos felizes.
A detetive encarava a outra, mantendo um sorriso incrédulo no rosto. Quem diria que o término de sua vida seria bebendo e falando sobre anseios de experimentar narcóticos com uma criminosa? De fato, ela sempre imaginou como a morte viria para ela. Na maioria dos seus devaneios, seu último suspiro vinha em um confronto, resultado de uma operação policial qualquer. Podia dizer que não estava de todo errada, com os meios interferindo no fim.
– Eu não quero drogas, Honora. O vinho está de bom tamanho para mim.
– Ok. Já que não quer drogas, dance comigo.
Cenas inacreditáveis se deram naquele cômodo. Duas personalidades completamente distintas, duas pessoas que viviam do lado oposto da lei, no fim das contas, se resumiam em duas almas despidas de preconceitos, que compartilhavam momentos divertidos, tentando não pensar no “depois”, na batalha que teriam que enfrentar se quisessem sobreviver. As mulheres estavam rindo, dançando, se embebedando; estavam, acima de tudo, se conectando.
– Engraçado como a vida parece se resumir em você, mas ao mesmo tempo não é nada sobre você.
– É... Pensamentos díspares, mas ambos verdadeiros. – A bandida suspirou - Pense comigo. Você pode experimentar tudo o que escolher fazer e depois goz*r dos benefícios da experiência que teve. Daí você começa a ter uma visão mais elevada espiritualmente falando e...
– Honora, pare! – Laura gargalhou – Você não está falando coisa com coisa mais.
– Mentira. Tudo o que eu falei faz sentido. Quem está bêbada e que não consegue acompanhar a minha linha de raciocínio aqui é você, anjo.
– Eu vou ter que calar a sua boca quando disser essa maldita palavra... – Em um movimento súbito, a detetive ergueu o braço machucado, esquecendo-se do ferimento por conta da anestesia do álcool correndo em suas veias. No entanto, a dor sentida foi tamanha que quase desmaiou, sendo amparada pela criminosa.
– Cuidado! – Andrey ajudou a outra a se sentar na cama – Eu vou buscar a caixa de primeiros socorros.
– Não precisa! – De imediato, a tatuada entendeu negativa veemente de Randik, que chegou ao ponto de segurá-la firme no pulso para que não se levantasse.
– Relaxa. Eu não vou buscar, mas me deixa ver como está esse braço seu... – Honora aproximou-se lentamente, erguendo a manga da blusa que a outra usava.
Seus rostos estavam a uma proximidade mínima, permitindo que ambas sentissem a respiração uma da outra. Como em câmera lenta, os olhares foram se encontrando, suplicantes para que aquela tensão que pairava no ar fosse aliviada com urgência. As respirações entrecortadas denunciavam a pressa, os batimentos cardíacos acelerados também. Tudo ali implorava para que cedessem mais um pouco, como vinham fazendo até então. Só que agora, quem estava prestes a comandar suas ações, não era a loucura e uma possível aproximação da morte, mas sim, a luxuria ardendo, feito a lenha que queimava na lareira do quarto.
Fim do capítulo
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