Capítulo único
Odiava bolo de chocolate com nozes, mas todo final de sexta-feira pedia o mesmo, na padaria perto de casa. O paladar havia se acostumado, outras coisas também. Acostumou-se a acordar cedinho porque trabalhava do outro lado da cidade, logo Felícia, uma pessoa tão noturna. Acostumou-se ao café pasteurizado com gosto de plástico no intervalo do expediente numa empresa de informática, onde trabalhava como assistente administrativa. Acostumou-se com a solidão.
Todos aqueles homens fazendo piadinhas com as únicas três mulheres que trabalhavam ali, ambiente tóxico. Neusa limpava, Marli era do RH, e Felícia cuidava de tudo que fosse bem burocrático. Entendia o que estavam fazendo, entendia a finalidade dos programas que produziam, mas quando perguntava, vinha uma chacota com leves tons de cantada.
O cheiro do café plastificado permanecia dez horas por dia em seu nariz, sua minúscula sala fazia divisa com a copa, paredes finas com furos e lascas, por onde vinha também muitas vezes trechos de conversas entre colegas na hora do cafezinho.
— Ontem a Marisa veio pra cima, cara, quase tive que dar um murro pra acalmar.
— Por que? Ontem nem foi dia de puteiro.
— Mas eu fui em outro, no Prime Club. Cheguei tarde na casa dela, eu disse que fiquei trabalhando até tarde, o erro dela foi perguntar o que fiquei fazendo.
Os dois explodiram num riso.
— E o que você disse? Mandou lavar uma louça?
— Expliquei uma query de SQL, só para ver a dona onça espumar de raiva.
Mais risos.
— Daí ela disse que ia fazer curso pra aprender a programar, eu dei risada e ela ficou ainda mais puta.
— Mulher não nasceu pra isso, eu nunca programaria ao lado de uma vagin*.
Felícia conhecia Marisa, viu uma vez, conversou na segunda vez que esteve na empresa, esperando Otávio, seu namorado. Uma semana após ouvir esse diálogo na copa, eis que acontece o terceiro encontro.
— Quer eu que vá chamar o Otávio?
— Precisa não, ele sabe que tô aqui esperando. — Respondeu Marisa.
Era sexta, então Felícia pegou a fatia de torta na padaria, junto de dois pãezinhos de trigo. Ao invés de Netflix, passou a noite pesquisando coisas no notebook, semideitada com a torta pela metade envelhecendo ao seu lado. O gato Jeremias vinha, cheirava a torta, e tentava enterrar.
Uma conversa de 42 minutos e Felícia tinha algo a mais para pensar, além de trabalho, ônibus lotado, Jeremias e visitar sua mãe uma vez por mês. Queria ajudar Marisa, uma vontade de origem desconhecida e não questionada.
Queria que Marisa aparecesse novamente na empresa, mas apenas seu nome surgiu na quinta-feira.
— Ce fez o que com a Marisa??
— Shhh. Tem essa merd* de Maria da Penha, fala baixo.
— Não tem medo que ela denuncie?
— Eu já pedi desculpas, ela já tá de boas, nem ficou marca. Tá firmeza pra mim.
— Mulher é tudo surtada mesmo, só sossega no tapa.
— Você tinha que ver o escândalo que a louca fez porque achou um ticket de farmácia no meu bolso.
— Um ticket?
— Das camisinhas. A gente não usa, sacou? Comprei pra levar quarta-feira.
— Sei, para o futebol.
Risadas altas.
Naquela noite Felícia usou proxy para navegar anonimamente criou um e-mail anônimo. Ficou contente por colocar em prática o que havia aprendido num curso de informática feito anos atrás, ela sempre gostou de tecnologia, mas as oportunidades não apareceram, teve que largar a faculdade.
No final de semana deu continuidade ao seu plano, criou uma página falsa e conseguiu capturar o e-mail de Marisa através de uma rede social.
Coletou mais informações durante a semana e enviou o e-mail na sexta, de sua casa, sem torta ruim ao seu lado, com um pijama novo e uma caneca de café bom. Jeremias a ouvia sem animação, entre uma lambida e um bocejo.
— Duvido que ela me responda, mas se largar aquele tralha já posso considerar missão cumprida.
De fato, não houve resposta. Ou houve, mas de forma indireta. Mal havia batido nove da manhã e um funcionário espumava raiva para seus três colegas na apertada copa. Todos ouviam atentamente e distinguia-se muitas vezes as palavras “vadia” e “vagabunda”.
Era difícil compreender aquele diálogo, mas ao espiar por uma fresta da divisória, Felícia deleitou-se com o semblante enraivecido de Otávio.
Naquela noite puxou Jeremias para perto e disse enfática: — eu ajudei Marisa. O gato nada respondeu.
— Encontrei sua ex-professora ontem, no açougue, ela perguntou se você havia seguido na área. — Disse a mãe de Felícia, após o habitual almoço do último domingo do mês.
— E você disse que eu havia largado a faculdade de Sistemas da Informação porque não tinha dinheiro pra mensalidade?
— Não, disse que você acabou preferindo ir para a área de administração. Você gosta disso, não gosta?
— Nunca gostei, mas paga minhas contas.
Vera Lucia. Felícia lembrava o nome daquela professora que tanto a incentivou. Achou o perfil dela no Facebook e solicitou amizade. Aquele contato foi decisivo para o futuro da jovem Felícia, tão jovem e tão resignada.
Era o último dia do aviso prévio, estava exultante por deixar aquela empresa, onde nenhum homem se salvava: desde o dono até o estagiário, todos já haviam proferido pelo menos alguma piadinha machista para ela. A felicidade aumentou no momento em que desligou o computador, após se certificar que havia sabotado com sucesso todos os sistemas desenvolvidos pela empresa. Quatro anos naquele inferno havia lhe ensinado o caminho das pedras para as coisas importantes ali dentro.
As salas já estavam vazias, inclusive a sala onde trabalhava Otávio, de onde ela saia agora. Despediu-se de dona Neusa na copa, não havia mais ninguém ali para se despedir.
Dois anos depois, Felícia degustava um bom café na presença de uma fatia de torta Búlgara, em sua frente a tela iluminada do seu notebook exibia o extrato bancário. Fazia planos, sua empresa de software dava bons frutos, certificava-se que a lua de mel seria mesmo em Fernando de Noronha.
Aspirava o aroma do café, se preparando para um gole, quando sorriu ao ver Marisa se aproximando. Veio até ela e a beijou na boca, sentou-se à sua frente em seguida, dando uma garfada na saborosa torta.
P.S.: a empresa de Felícia e Marisa só contrata programadoras.
Fim do capítulo
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Zaha
Em: 28/04/2019
Oie amiga!
Você sempre escrevendo lindo! Adorei o tema que você usou e a forma de transmitir foi leve, apesar do tema n ser! Que bom q ao menos aqui acabou bem, más é bom pras pessoas que passam e lêem poderem assimilar, refletir e quem sabe isso possa mudar sua vida!!
N podería deixar de te ler!!!
Ansiosa pelas próximas fotos...sei q vai brocar!!:)
Beijão
Resposta do autor:
Olá!
Primeiro comentário que recebi em 2019 tinha que ser seu, claro!
Obrigada pelo comentário e carinho <3
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Freyya
Em: 12/05/2019
A Felícia driblou todos os machistas, as dificuldades, ajudou uma mulher a sair de um relacionamento péssimo e por fim, montou sua própria empresa com a Marisa, com quem planeja a lua de mel. A torcida vai a loucura o/
Em um texto curto você retratou perfeitamente a realidade de muitos ambientes de trabalho.
Ainda bem que a Felícia meteu a colher, que isso sirva de inspiração!
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Jennyfer Hunter
Em: 10/05/2019
Ainda bem que Marisa View o traste que era seu Otário e PROCurou ser feliz ao lado da Felicia!
Adorei! Um texto leve, mas totalmente reflexivo.
Só fiquei curiosa para saber o que Felicia escreveu no e-mail.
Vai rolar um conto, vai?
Chega (vou aderir tb rsrs)... vc arrasou! Parabéns!
Bjs
J.Hunter
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Nay Rosario
Em: 29/04/2019
Trouxe reflexões pesadas de forma leve.
Perfeito!
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preguicella
Em: 28/04/2019
Arrasou! Adorei a volta por cima de Felícia!
Bjão
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Luzia S de Assis
Em: 28/04/2019
Caraa, confesso que até ler as últimas linhas eu não suspeitava o final. Você termina de ler com a alma lavada, Felícia arrasou.
Muito bom!
Beijos
Resposta do autor:
Obrigada por comentar!
Fico feliz quando vejo que consegui deixar os leitores sem saber como vai terminar :D
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Zaha
Em: 28/04/2019
Oie amiga!
Você sempre escrevendo lindo! Adorei o tema que você usou e a forma de transmitir foi leve, apesar do tema n ser! Que bom q ao menos aqui acabou bem, más é bom pras pessoas que passam e lêem poderem assimilar, refletir e quem sabe isso possa mudar sua vida!!
N podería deixar de te ler!!!
Ansiosa pelas próximas fotos...sei q vai brocar!!:)
Beijão
Resposta do autor:
Olá!
Primeiro comentário que recebi em 2019 tinha que ser seu, claro!
Obrigada pelo comentário e carinho <3
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Cristiane Schwinden Em: 07/03/2025 Autora da história
Resposta 2