CapÃtulo 29 - Precisamos conversar
A luz avermelhada do quarto de motel parecia até contribuir para o aperto no coração de Helena. Precisamos conversar é o tipo de frase que ninguém gosta de ouvir, principalmente da pessoa amada. Naquele momento, meio milhão de situações passaram pela cabeça da garota. Conforme a adrenalina percorria sua corrente sanguínea, ela finalmente conseguiu balbuciar duas perguntas:
“Conversar sobre o quê? Você me traiu?”
“Não! Lógico que não.” Isabel responde com firmeza. “Não tem nada a ver com isso. Eu... a história é longa.” Isabel passa a mão no próprio rosto, como se estivesse em um dilema moral.
“Pois me conte, tenho tempo.” Helena cruza os braços, ainda aflita.
“Bem... você sabe que a Universidade Federal da nossa cidade raramente abre processo de transferência... mas eles abriram para o semestre que vem.” Isabel inicia a explicação.
“Abriram? Eu nem estava sabendo... era isso? Bom, vamos nos inscrever então, oras!” Helena suspira de alívio.
“Bem... na verdade foram três dias de inscrição, isso foi há algumas semanas atrás, e já se encerrou. Era somente uma vaga. E... eu consegui. Vou atrasar um semestre mas consegui.”
“Espera... você esperou todo esse tempo para me contar?!”
“Sim, eu queria ter a certeza do resultado para poder falar.”
“E você não quis que eu me inscrevesse para não concorrer, para que você pudesse ganhar?”
“Helena, não é isso, é que ficaria uma situação complicada e...”
“E quando você fez a prova?!”
“Não foi por prova, foi por análise de currículo acadêmico e nota no exame nacional.”
Helena, impressionada e atônita, deixa as alianças sobre a cama e levanta-se. Coça a cabeça e repetidas vezes passa a mão sobre os próprios lábios. “Então deixa eu ver se eu entendi, você se inscreve nessa transferência de uma vaga só, não fala para sua namorada porque no fundo somente a vê como concorrente, daí você consegue a vaga e agora vai embora assim?”
“Helena, nós seríamos sim concorrentes se você se inscrevesse! Eu não queria uma situação constrangedora e complicada por algo que nem era certeza!”
“Uau, Isabel, a cada dia que passa eu percebo que lhe conheço menos. E essa semana que você ficou toda estranha, foi por causa do resultado?”
“De certo modo, sim... eu tive que ir no banco tirar dinheiro, gastei com correios porque me pediram todo tipo de documento possível, também tive que mandar uma procuração para o meu pai...”
“Isso é por causa dos seus pais?” Helena interrompe a namorada.
“Não, Helena! Isso é por causa do meu filho!”
“Mas... você ia trazer o Rafael! Você ia trazer o Rafa nas férias, ele ia ficar com a gente...” Helena não esconde o choro. “Você ia trazê-lo, Isabel! E agora... e agora você volta para a Capital.... digo, nem é para a Capital, o campus fica na região metropolitana! Como isso vai facilitar para você?”
“Helena, não existe trem e metrô à toa! E vai facilitar porque vou poder voltar a morar com o Rafa, terei o suporte dos meus pais, essa é a única maneira, caramba!”
“Eu sabia! Seus pais estão fazendo algum tipo de chantagem? É isso, não é?”
“Não, Helena! Para de achar que isso é coisa dos meus pais! Eu vou porque eu preciso! Porque o Rafa precisa!”
“Mas eu falei! Ele é bem vindo aqui! Ele pode morar aqui!”
“Helena, você não tem noção da vida. Não adianta tentar lhe explicar.”
“Mas como a gente vai ficar agora?” O choro cessa e Helena, cansada, senta-se novamente na beirada da cama. “Você sabe que à distância é algo impossível...”
“Eu não sei, Helena, eu evitei pensar nisso até agora, então não tenho um plano, porque toda vez que o pensamento surge, sinto uma pontada em meu coração e logo entro em negação.”
“Belo presente de Dia dos Namorados.” Helena se deita de lado, com as costas viradas para a namorada.
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“Eu oficialmente odeio você.” Lívia contraditoriamente rouba um beijo de Dante que, exausto, se joga ao lado da garota no sofá-cama.
“Tu me odeias por quê?”
“Eu digo para irmos devagar e você consegue montar o encontro mais perfeito que já tive em um Dia dos Namorados.” Lívia finge estar brava.
“Ah, então foi perfeito?” Dante sorri, vitorioso.
“Não vai se gabar.” Lívia revira os olhos.
“Mas eu entendo, isso é casual. Um encontro perfeito casual.”
“Isso. Chamemos assim!” Lívia dá mais um selinho no garoto e se levanta para tomar banho.
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“Você vai dormir sem terminarmos a conversa, Helena?” Isabel também se deita, esperando uma reação da namorada.
“Ok, vamos conversar.” Helena muda o lado e fica de frente para Isabel. “A gente pode fingir que você não vai se mudar e aproveitar até o último dia do semestre, e quem sabe aproveitar as férias também, ou caímos na real que isso não vai dar certo, amanhã de manhã eu deixo você na moradia e é isso.”
“Ou, já que a gente se ama, podemos tentar aqui, e semestre que vem tentamos à distância!”
“Você não consegue ser sincera nem dormindo ao meu lado, quanto mais a centenas de quilômetros de distância!” Impaciente e sem sono, Helena se senta novamente.
“Como assim não consigo ser sincera?”
“Você omitiu uma notícia dessas de mim há semanas, Isabel!”
“Helena, pelo amor, essa informação da transferência estava por toda internet, só você não viu! Você está se sentindo traída pelo fato de não ter lhe contado que me inscrevi?”
“Eu estou me sentindo traída porque você planejou tudo isso sem me incluir!”
“É isso que me irrita em você, Helena, novamente sua infantilidade entrando em ação! Só porque minha vida não está de acordo com o que você tinha em mente, porque não é do seu jeito, você já entra em pânico, garota!”
“Eu só queria que você tivesse me avisado, Isabel!”
“Foi o que eu acabei de fazer!!” Isabel se cansa e mais uma vez se levanta. “Eu já propus de tentarmos a distância, já tentei organizar nosso futuro mas se não for do seu jeito, é simplesmente inútil!”
“Vamos embora. Cansei de ficar aqui.” Helena apalpa o colchão até encontrar as alianças para devolvê-las ao bolso.
“Você pagou o pernoite, não pagou? O serviço de quarto ainda nem chegou...”
“Então você fica e aproveita. Meu estômago está embrulhado. Não estou com a mínima vontade de comer.” Ela tira algumas notas amassadas do bolso. “Fica para a gorjeta e seu uber amanhã. Boa noite.”
“Helena! Se você for embora, só vai corroborar ainda mais a minha opinião sobre sua infantilidade!”
“Dane-se.” Helena se retira do quarto e vai embora.
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“Que preguiça...vontade de sair nunca mais desses cobertores.” Lívia acorda na cama de Dante, no friozinho típico de junho.
“Vontade de prolongar essa lua-de-mel...” Dante brinca.
“Que Lua-de-mel? Somos duas pessoas se conhecendo e se pegando...”
“Certo, somos duas pessoas que estão se pegando tanto que parece uma Lua-de-mel...” Dante corrige a contragosto. “Já não acha que essa relutância constante sobre os termos não está ficando chata?”
“Não, Dante. Isso é necessário porque a gente precisa ter calma.” Lívia se mantem firme.
“Okay, okay... casual, calma, casual, calma, entendi. Agora vamos ao que interessa.” Dante se coloca por cima de Lívia e começa a beijá-la.
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Bater constante de portas de prateleira. Liquidificador, música alta. Esse era o ambiente no apartamento de Helena na manhã seguinte. Anna se levantou com uma leve dor de cabeça.
“Helena, tem como fazer um pouco menos de barulho por favor? Tenho visita aqui no meu quarto...” Anna sussurra para a colega de apartamento enquanto esta continua a bater portas e gavetas.
“Ah, que bacana... toma cuidado, porque daí vocês começam a sair, namorar, e de repente ela quer se mudar e você é a última a saber!” Helena ergue a voz enquanto coloca vários legumes no liquidificador.
“Helena, está tudo bem?” Anna, assustada, questiona.
“Bem?” Helena mais uma vez liga o liquidificador. Espera alguns segundos e desliga. “Se eu estou bem? Eu estou maravilhosamente bem!” Liga. Bate. Desliga. “Estou perfeitamente bem! Vou tomar essa porcaria de suco de pepino com couve e sei lá mais o que porque eu preciso de algo saudável no começo dia porque meu dia simplesmente vai ser uma bosta!” Já taquipneica e nervosa, Helena coloca o suco em um copo e o toma em goles gigantescos.
“Okay... quer conversar a respeito disso?”
“Não! Eu não quero conversar! Quero ficar em negação até quando eu puder!” Helena vocifera e leva o resto do suco para seu quarto.
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Anna, após ter dispensado a garota da noite passada, foi para a firma apenas para pegar um pen drive e terminar algumas petições na tarde daquele sábado. Lívia retornou ao apartamento como se estivesse nas nuvens, e encontrou Helena, na sala, com um balde de asinhas de frango frito, no chão, assistindo à televisão.
“Não pergunte nada!” Sentada na poltrona, com o notebook no colo, Anna balbucia para Lívia entender.
“O que está acontecendo?” Lívia não compreende e pergunta mesmo assim.
“Pessoas lhe enganam, pessoas escondem as coisas de você e depois lhe acusam de ser infantil!”
“O quê? Helena, está tudo bem?” Lívia se abaixa para colocar a mão na testa da amiga e verificar se está quente.
“Eu estou maravilhosamente bem. Quer asinha de frango?” Helena oferece, com a boca toda suja de óleo.
“Ela e Isabel brigaram.” Anna comenta.
“Entendi. Quer que eu fale com a Bel?” Lívia pergunta, pegando uma asinha.
“Falar para quê? Ela já tomou a decisão dela.” Helena dá de ombros.
“Ela diz que quer continuar em negação.” Anna complementa.
“Pois é. Negação e asinhas de frango.” Helena morde mais um petisco.
“Helena, minha querida. Dá licença aqui.” Lívia pega o elástico que geralmente fica em seu pulso e prende o cabelo da amiga. “Primeiramente vamos salvar seu cabelo de ficar batendo na sua boca e sujando de óleo. E em segundo lugar, vamos conversar.” Lívia desliga a TV.
“Mas eu estava assistindo ao programa de fofocas!”
“Não, você estava se distraindo do que está lhe machucando.” Lívia incorpora a psicanalista dentro de si.
“Não tem nada me machucando. A única coisa me machucando foi você ter desligado a televisão!”
“Helena, o que foi que a Isabel lhe fez?” Lívia insiste.
“Nada. Devolve o controle remoto. Eu quero saber o que raios aconteceu em Fernando de Noronha.”
“Não. Eu não devolvo enquanto você não desabafar.”
“Então eu assisto do meu quarto!” Helena se levanta, segurando seu balde.
“E eu vou ligar para a Isabel e perguntar a ela o que aconteceu!”
“Não se intromete, Lívia.” Helena franze a testa.
“Eu estou preocupada, Lívia! Até ontem você estava toda empolgada para o Dia dos Namorados e um dia depois você está de mau humor comendo frango frito na sala!”
“Vai cuidar do seu namoro enrolado com o Dante e deixa o meu relacionamento em paz.” Helena se retira mais uma vez da situação.
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“Precisamos fazer alguma coisa.” Lívia, já no começo da noite, convoca Dante e Anna para uma intervenção. “Ela passou o dia inteiro naquele quarto, não comeu mais nada além daquele balde de frango frito, eu realmente estou preocupada.”
“Às vezes é a maneira que ela lida com términos, Liv.” Dante dá seu palpite.
“Mas é aí que está o problema! Nem sabemos o que aconteceu. Eu tentei ligar para Isabel mas ela literalmente desligou na minha cara antes mesmo de atender.” Lívia reclama.
“Eu poderia tentar ligar, acho que ela não tem meu número.” Anna sugere.
“Ela vai ver que o DDD é diferente e provavelmente vai deduzir que é você, Anna. Mas podemos tentar.” Mesmo sem esperanças, Lívia aguarda enquanto Anna realiza a ligação.
“Alô?” A voz de Isabel é ouvida através do viva-voz.
“Alô? Isabel?” Anna pergunta.
“Sim, sou eu. Quem está falando?”
“Oi, Isabel! Aqui é a Anna Júlia, colega de apartamento da Helena...”
“Ah, Anna. Eu sei quem é você. Está ligando por causa da Lena?”
“Sim, digo... desculpa por lhe incomodar, é que a Helena não está muito legal e-”
“E aí ela mandou vocês virem falar comigo? Garanto que ela está aí do lado escutando no viva-voz, não está?”
“Não! Ela está no quarto, conseguiu ser grossa com a gente, estamos achando estranho porque ela não nos conta o que aconteceu...”
“Se ela não conta é porque ela não se sente confortável em contar, oras.” Isabel responde de forma bem seca.
“Escuta aqui, Isabel, se você aprontou com a Helena...” Lívia se irrita e toma posse do telefone.
“Olha, Lívia, eu já não lhe atendi antes porque não tinha o menor interesse em discutir com você. Sei que você tem a intenção de proteger sua amiga, mas eu não fiz nada de errado. Então como eu quero permanecer em paz, eu vou desligar. Tchau.”
“Que ódio!” A voz de Lívia sobe pelo menos uma oitava com a raiva acumulada.
“Se ela não fez nada de errado... será que a culpa foi de Helena?” Dante aponta.
“Impossível. Desde o início eu sabia que se fosse alguém para estragar, esse alguém seria Isabel.” Lívia afirma com toda certeza.
“Mas Liv, como a própria Isabel disse, tu estais protegendo tua amiga e-”
“Xiu, Dante. Eu sei do que eu estou falando.” Lívia se irrita. “A Isabel estragou tudo e Helena deve estar com o coração estraçalhado.”
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Lados opostos da sala de aula. Lados opostos da prática de Semiologia. Mensagens trocadas apenas para acertos finais nos últimos seminários do semestre. E assim seguia a constante dor psicogênica do término silencioso – prática recorrente na vida de Helena.
“Toma, uma cópia para você. A versão final impressa e encadernada do nosso trabalho.” Isabel entrega para Helena, no intervalo de uma das aulas.
“Obrigada...” Helena mal levanta a cabeça para olhar no rosto da outra.
“Helena... até quando a gente vai ficar assim? Eu sinto sua falta.” Isabel admite.
“Sério?” O rosto de Helena muda completamente ao ouvir tal frase. Ela finalmente consegue olhar nos olhos de Isabel e esboçar algo vagamente parecido com um sorriso.
“Sério... queria conversar com você mais tarde. Na hora do almoço, talvez? Podemos ir na lanchonete que eu trabalhava.”
“Sem problemas!” Helena não pensa duas vezes ao concordar.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
rhina
Em: 02/09/2020
Todos sabem que Isabel é super adulta e responsável. Tem um filho que gera novas e imediatas responsabilidade. Mas no meio disso tudo quem era Helena?
Infantilidade??????
Ponderar??????
Não acho que Helena tem que ponderar nada. Isabel não ponderou ela em sua vida. Ela poderia mudar. Casar com outro. Sumir. Mas deveria ter sido sincera com Helena desde o começo
Sério.....isabel já me fez raivas outras vezes. Mas se Helena aceitar este namoro a distância.....
Rhina
nany cristina
Em: 21/04/2019
Oi autora Isabel não foi sincera com a Helena ela omitiu a noticia da sua transferência durante semanas
E oficial eu amor Lívia e Dante
Bjss
Resposta do autor:
Lívia e Dante são um casal de personagens bem fofo, mas surpresas ainda virão...
E realmente, Isabel mentiu por omissão, caberá a personagem Helena ponderar sobre a situação.
Obrigada pelo feedback! Beijão, Eryka!
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