CapÃtulo 68
Entre Lambidas e Mordidas -- Capítulo 68
A noite foi pequena para tanto amor vivido por Yasmim e Daniela. O dia estava amanhecendo quando o sono roubou a força delas.
Daniela foi a primeira a acordar.
-- Bom dia, linda! -- com a cabeça apoiada sobre o cotovelo, admirava a mulher deitada ao seu lado. Enquanto o sol brilhava além da janela do quarto.
Yasmim abriu os olhos, sonolenta e espreguiçou-se sorrindo.
-- Ótimo dia, meu amor -- os braços dela se enroscaram em torno do pescoço de Daniela, atraindo-a para mais junto de si -- Vou pedir para Fátima trazer o café aqui no quarto. Estou maluca de fome.
Daniela olhou em seus olhos castanhos e se inclinou para roçar a sua boca na dela.
-- Ainda temos pizza.
Yasmim balançou a cabeça, negando com veemência.
-- Nesse momento estou mais para um pãozinho, patê e geleia. Croissant e pão de queijo.
-- Hum... Agora fiquei com fome -- Daniela se levantou e estendeu a mão para ela -- Porém, primeiro vamos tomar banho juntas.
Com o corpo nu brilhando aos raios de sol que invadiam o quarto e os cabelos tocados suavemente pela brisa da manhã, Yasmim aceitou o convite sorrindo.
Daniela empurrou a porta do box, abriu a torneira do chuveiro e deixou a água correr. Yasmim aproximou-se dela sorrindo.
-- Que delícia! Quanto tempo não fazemos isso, amor?
-- Acho que mais de um ano.
Daniela observou com satisfação, o corpo sexy e sedutor de Yasmin no instante em que a água quente a cobriu. E sem dizer mais nada, fechou a porta envidraçada e pegou o sabonete.
-- Agora fique quietinha e deixe que eu a ensaboe -- disse Daniela, espalhando um pouco de sabonete líquido na esponja macia.
Yasmin concordou com um gesto de cabeça e um sorriso travesso.
-- Minha nossa! Isto será maravilhoso! -- declarou ela com um suspiro.
-- Você merece todo o carinho do mundo, minha deusa.
Daniela começou pelos ombros, até espalhar a espuma pelo corpo todo. Depois, abandonou a esponja e iniciou uma massagem com as mãos.
-- Que delícia!
A sensação dos dedos de Daniela deslizando pela pele era de enlouquecer.
-- É torturante, Dani -- murmurou com a voz rouca.
Yasmin quase gritou de prazer quando Daniela desceu uma das mãos para ensaboar as suas partes íntimas.
Num movimento rápido ela girou o corpo e enlaçou o pescoço de Daniela, a fim de se equilibrar.
Possuída pelo desejo, deixou-se levar pelo mar de sensações e entregou-se novamente ao desejo que só Daniela conseguia despertar no seu corpo. E ali mesmo, com o coração acelerado, embaixo da água abundante, fizeram amor mais uma vez.
Por algum tempo ficaram apenas abraçadas, permitindo que a água morna e relaxante acalmasse as respirações.
-- Odeio dizer isso, mas temos que sair do chuveiro.
-- Mas já? -- disse Yasmin, chateada -- Acho que não consigo sair deste banheiro.
-- Você não tinha que chegar cedo na empresa?
Pela primeira vez Yasmin sentiu-se escrava do seu trabalho. A agenda lotada de reuniões, uma pilha de papéis para verificar e assinar. Eram compromissos demais, que tomavam todo o seu tempo.
-- É verdade -- sussurrou desanimada.
Daniela abriu a porta do box e pegou uma toalha.
-- Então, deixe-me secá-la -- ela disse, evitando qualquer comentário -- Ainda temos que tomar café. Você ainda precisa arrumar suas coisas e sair, antes do tráfego ficar insuportável.
Yasmin não levou mais do que vinte minutos para se vestir e se maquiar. Como fazia frio, decidiu vestir um casaco curto e leve.
-- Você está linda -- disse Daniela, sorrindo.
-- Obrigada, amor -- Yasmin fitou-a com uma expressão carinhosa -- O meu estilo de vida é muito ruim, não é mesmo? -- perguntou ela, na inútil esperança de que Daniela pudesse se acostumar.
-- Tenho que admitir que não serve para mim. Contudo, você é a presidente da empresa, é compreensível que tenha muitas obrigações e responsabilidades.
Yasmin deu o mais doce dos sorrisos.
-- Obrigada por compreender.
Daniela deu um meio sorriso e a segurou pela mão.
-- Venha tomar seu café -- disse, abrindo a porta -- Danielzinho já deve estar se preparando para abrir o berreiro.
Minutos depois, entraram na cozinha de mãos dadas e sorrindo. Fátima olhou de esguelha.
-- Quanto entusiasmo -- disse satisfeita, a jovem senhora, voltando a mexer o suco que preparava.
Finalmente suas orações foram ouvidas. Era muito triste ver duas pessoas separadas por empecilhos tão pequenos diante de um amor tão grande e verdadeiro.
-- Bom dia, Fatima -- disse Yasmin animada, colocando um pão francês no prato. Seu estômago roncava devido a fome.
-- Que os anjos do céu digam amém -- respondeu a senhora.
Daniela se virou para encarar Fátima.
-- Nem todo anjo tá no céu. Eu, por exemplo, estou aqui, na cozinha, quase morta de fome, esperando você servir esse suco.
-- Não vem comer um pãozinho com a gente, Fátima? -- indagou Yasmin.
-- Não, obrigada. Estou muito acima do peso. Vou tomar um copo de leite e comer uma porção moderada de cereal.
-- Se Fatima fosse um Transformers seria um gol bola.
-- Dani! -- Yasmin chamou a atenção dela -- Que comentário desagradável.
Daniela corou um pouco.
-- Brincadeirinha, amor.
Yasmin riu, acompanhada por Fátima.
-- Comam e parem de falar besteira -- disse a senhora, feliz em perceber que a paz voltou a reinar entre ambas.
Tomaram suco de laranja e café acompanhado de deliciosos croissants, pãozinho de queijo, pão francês, patê e geleia.
Daniela não pôde acreditar quando Fátima abriu o forno e tirou um bolo de fubá, impregnando a cozinha com seu aroma delicioso.
-- Você fez bolo de fubá? -- indagou feliz -- Não consigo resistir à tentação. Para mim, bolo de fubá é o melhor do mundo.
-- Aprendi a preparar com minha mãe -- Fátima respondeu com entusiasmo -- É rápido e gostoso.
-- Bolo com cara de "casa de vó" -- disse Daniela, sorrindo.
-- Concordo com você, Dani -- Yasmin sorriu e sorveu um gole do suco de laranja.
-- Está delicioso -- disse Daniela, após provar uma fatia do bolo -- Você nunca se casou, Fatima?
-- Não. Nunca encontrei ninguém que me fizesse pensar em casamento.
-- Mas você já deve ter trans*do né, Fatima?
-- Meu Deus, Dani! Que pergunta indiscreta -- Yasmin a repreendeu.
-- Por que? Eu acho sex* uma coisa muito, muito boa. Sexo oral então... não dá nem pra falar!
-- Sim, claro que já fiz sex*. Em 1990, no carnaval de Salvador conheci um homem muito interessante. Foi marcante -- Fátima falou com uma voz saudosa. Olhou para o teto franzindo a testa e depois voltou-se para Daniela -- Você pode se sentir atraída por alguém, gostar, mas sem nunca chegar a amar verdadeiramente -- sorriu tristonha.
-- Vocês se conheceram no lugar errado, por isso não deu certo. Carnaval é tipo The Walking Dead, um monte de gente junta, fedendo e querendo comer todo mundo que vê pela frente.
Yasmin tornou a encher o copo com suco.
-- Olha Fatima vou te falar uma coisa: Meu primeiro casamento foi frustrante, mas depois que conheci a Dani pude perceber que nem todas as uniões são ruins pelo contrário você sente que é de Deus e é de verdade.
-- O casamento é uma decisão muito importante na vida de uma pessoa. Nem todo mundo consegue encontrar uma pessoa com quem possa ou queria partilhar uma vida -- o telefone tocou. Fatima piscou os olhos -- Vou atender.
-- Fiz um versinho para a Fatima: Casamento não é bom, isso é fato verdadeiro. Pois o diabo não se casou e Jesus morreu solteiro.
Yasmin balanço a cabeça e se levantou.
-- Vou te encontrar, quando voltar?
A pergunta de Yasmin não era inesperada e Daniela pensou muito antes de responder. Ela não queria um confronto, não como da última vez que se despediram.
-- Vou ter que retornar a Canoinhas. Deixei muitos assuntos pendentes.
-- Que pena! -- Yasmin de repente ficou quieta, reflexiva.
Daniela estava muito ciente do fato de que tinham que conversar. Não tinha nenhuma intenção de permitir a ela se esquivar do assunto. E talvez estivesse na hora de enfrentar isto, enfrentar a verdade dos erros que tinham cometido.
-- Eu vou, mas volto logo. Fiz muitas promessas a eles, devo uma satisfação.
-- Você... você não está mais pensando em ir morar em Canoinhas? -- os olhos de Yasmin brilharam.
-- Não, Yasmin. Eu não consigo viver longe de vocês -- confessou, Daniela.
Yasmin mordeu o lábio enquanto caminhava até ela.
-- Eu te amo, Dani -- disse, beijando-a nos lábios. Ela tinha a voz tranquila e não desgrudava os olhos de Daniela.
-- Amor nunca faltou, minha flor -- disse Daniela, sentindo vontade de rir -- O que falta é dialogo.
Fatima retornou à cozinha com o semblante fechado.
-- Minha amiga acabou de me contar que ladrões invadiram a agência bancária, que fica no outro lado do parque, e estouraram o caixa eletrônico.
Daniela e Yasmin entreolharam-se preocupadas.
-- Meu Deus. A violência está por toda parte! -- Yasmin olhou séria para a empregada -- Por favor, Fatima. Diga para a babá que em hipótese alguma, saia com as crianças para passear.
-- Pode deixar, Yasmin -- Fatima a tranquilizou.
-- Infelizmente preciso ir, amor -- Yasmin estava dividida entre a tentação de ficar e a obrigação de sair.
Aproximando-se, Daniela enlaçou a cintura de Yasmin. Então, baixando a cabeça, gentilmente roçou-lhe a boca.
Mais do que qualquer beijo apaixonado que já recebera, aquele beijo carinhoso fez o coração da ruiva doer. Mais ainda porque sentia o sabor de despedida. Percebendo a enorme angústia que crescia dentro de si, Yasmin se afastou um pouco e fitou Daniela com desespero.
-- Por favor, Dani. Volte logo -- ela olhou tristemente para o rosto belo, porém confuso de Daniela -- Nós precisamos muito de você.
Ao descer do ônibus, Daniela avistou um pequeno grupo de pessoas reunidas em frente à prefeitura.
Fazia um calor sufocante e, olhando o relógio, ela viu que passava um pouco das três horas da tarde.
-- O que está acontecendo? -- perguntou para um rapaz que passava por ela.
-- Uma doida embestou de fazer uma serenata bem em frente à prefeitura. Pode isso?
Daniela começou a atravessar a praça, sem tirar os olhos do bando de curiosos.
-- Cada louco com a sua loucura. Até parece a... Bianca?
A moça se virou bruscamente e fitou Daniela com sua expressão de assombro.
-- Dani?
-- Não, Bianca. A Frozen -- Daniela cruzou os braços e perguntou curiosa: O que está aprontando, Bianca?
-- Vou fazer uma serenata para a minha amada, Benta.
Daniela ficou olhando para a amiga, sem acreditar no que tinha ouvido.
-- Na porta da prefeitura! Por que não na casa dela?
-- Eu tentei, mas acho que o pitbull dela não apreciou muito o meu estilo musical -- Bianca fez um gesto para o grupo que aguardava para começar a tocar -- Vamos começar então -- disse, com voz trêmula -- Estou tão nervosa!
Roberta e Lavínia pararam ao lado de Daniela.
-- O que a Bianca está fazendo? -- indagou, Lavínia.
-- Dando vexame -- respondeu Daniela, olhando ao redor -- Ela não pode ver uma vergonha que já quer pegar para ela.
-- Pelo jeito ela vai cantar -- Roberta fitou Lavínia, divertida -- Ninguém tem coragem de falar, mas eu falo: A Bianca canta mal pra caramba!
-- Ela pode até cantar mal tia, mas se for humilde, carismática e tiver unção, vai continuar cantando mal, porque uma coisa não tem nada a ver com a outra.
Os músicos começaram a tocar e Bianca imediatamente incorporou Sidney Magal.
Tenho
Um mundo de sensações, um mundo de vibrações. Que posso te oferecer
Tenho
Ternura para brindar-te, carícias para entregar-te. Meu corpo pra te aquecer
Serão os dias mais felizes, se vives junto a mim. Espero que decidas, é só dizer que simmmm...
-- Ela pode não saber cantar, mas sem dúvida ela não sabe dançar! -- disse Daniela, sem conseguir segurar o riso.
-- Por que o cantor canta com a mão na orelha? -- indagou, Roberta.
-- Porque se colocar a mão na boca, a voz não sai, tia.
Bianca continuava sua performance de Magal.
Tenho
Mil braços para abraçar-te, mil bocas para beijar-te, mil noites para viverrr...
Tenho
Um mundo que é cor de rosa, de coisas maravilhosas, que tanto sonhavas terrr...
Lavínia batia palmas com entusiasmo.
-- Ela canta mal, mas canta com sentimento.
-- Bianca com uma boca já fala besteira pra caramba, imagina com mil bocas.
-- Não esculhamba, Dani.
Tenho
Mil braços para abraçar-te, mil bocas para beijar-te, mil noites para viverrr...
Sim, sim, sim, sim!
Tenho
Um...
Benta apareceu na porta com a cara carrancuda, no exato momento em que Bianca terminava a sua serenata.
-- O que significa isso, Bianca?
Bianca virou-se e andou rápido até Benta.
-- Essa serenata foi para você, meu amor! -- Bianca estendeu uma rosa para ela -- Você tem o sorriso mais lindo, o corpo mais perfeito e o jeito mais atraente que eu já conheci.
-- Você só diz isso, porque quer me comer.
-- Uau! E ainda por cima é inteligente.
-- Bianca, eu não quero compromisso. Por favor, entenda isso -- Benta estava irredutível.
-- Poxa! Eu até cantei pra você -- disse Bianca, magoada.
-- Você não canta, gem*... -- resmungou Benta, sem paciência.
-- Então Benta... Bianca deve ser um espetáculo na cama... -- Daniela chutou uma pedrinha -- Se eu fosse você faria um test sex.
-- Test sex? -- Benta não entendeu.
-- É, tipo test drive. Acho que você não vai se arrepender.
Benta olhou no fundo dos olhos de Bianca. Ela sempre soube que a garota a amava, mas não imaginava que fosse tanto, e isso a deixou abalada.
-- Não sei se você é corajosa, ousada ou louca -- Benta sorriu e o sorriso dela encheu o coração de Bianca de esperança.
-- Não sei. Só sei que eu nunca me senti tão idiota antes.
Sem dizer nada, Daniela enfiou as mãos no bolso do casaco e ficou olhando para as duas mulheres. Dizer que se sentia idiota, era a forma de Bianca confessar o seu amor por Benta. Conhecia muito bem a amiga, dessa vez era pra valer.
-- A Bianca se apaixona e desapaixona com a mesma facilidade que eu troco de roupa -- comentou Roberta, afastando-se do tumulto.
-- Não tia. Com a Benta é diferente.
Roberta dirigiu-lhe um olhar de curiosidade, e então parou e se voltou para ela.
-- Como você sabe disso?
-- Bianca adora mulher do tipo Benta. Com opinião, cabeça feita, segura. E até certo ponto dominadora. Me arrisco a dizer que a filha do delegado é a mulher da vida de Bianca.
A porta do escritório de Yasmin estava entreaberta, Matias colocou a cabeça pelo vão da porta e espiou.
-- Boa noite, senhora Vargas!
Yasmin estava atrás de sua mesa, com os olhos fixos no computador. Levantou a cabeça e sorriu ao ver o cunhado.
-- Boa noite, Matito. Entra.
Matias caminhou até a mesa, sua expressão tranquila enquanto afrouxava a gravata.
-- Não deveria trabalhar até tão tarde. Trabalho em excesso prejudica a saúde. De vez em quando é bom dar uma parada e olhar a maneira pela qual está conduzindo a vida. Você já fez isso? Já se perguntou se está deixando de lado partes importantes da sua vida, em função do tempo que se dedica ao trabalho?
-- Sim -- ela disse desanimada -- Estou pensando seriamente em modificar o meu modo de vida.
-- Sério? Que decisão inteligente, minha deusa -- Matias apoiou os cotovelos na mesa e apoiou a cabeça em suas mãos.
-- Eu e a Dani estamos cometendo os mesmos erros de Luiz Carlos e Anita.
-- Verdade. Papai foi morar em Canoinhas para cuidar da filial da Vargas e mamãe ficou em São Paulo administrando a matriz. A distância destruiu o casamento deles.
-- Não vou permitir que isso aconteça com a gente -- Yasmin desligou o computador e se levantou -- A Dani me disse que não vai morar em Canoinhas.
-- Menos mal.
Yasmin ficou pensativa por longo tempo. Depois perguntou:
-- O casamento da Debora com a Paula será nessa final de semana. Não é mesmo?
-- Sim. Lá em Canoinhas. Eu e o Vinicius vamos sexta à noite -- disse o rapaz, todo animado -- Casamento na fazenda é tudo de bom. A Paula me disse que você não vai. Me diz, por que não?
Yasmin olhou para ele e levantou uma sobrancelha.
-- Tem compromisso para essa noite, Matito?
Daniela acordou com um sobressalto, ao ouvir a porta do quarto sendo aberta devagar. Por alguns segundos, foi tomada por uma sensação estranha, até que o ambiente voltasse a lhe parecer familiar.
-- Bom dia, preguiçosa -- Bianca invadiu o quarto como um furacão. Sua expressão alegre era contagiante -- Levanta, temos muito o que fazer.
-- Que horas são? -- perguntou, olhando assustada para a amiga.
Bianca olhou para o relógio sobre a cômoda.
-- Já passa das sete horas da manhã!
-- Você me assustou! -- exclamou a jovem, com um sorriso amarelo -- O que está fazendo acordada a esta hora?
-- Esqueceu que hoje vamos levar os cachorros para o novo lar?
Daniela não pôde deixar de sorrir, lembrando-se da época em que era uma adolescente sonhadora. Comprar uma fazenda e colocar todos os cachorros abandonados que encontrasse pelo caminho, para a maioria das pessoas era utopia, mas não para ela.
-- Sente-se aqui, Bianca. Precisamos conversar.
-- Agora? -- perguntou a amiga, com ar de protesto -- Estamos atrasadas.
-- Não vou demorar.
Mesmo relutante, ela sentou-se ao lado de Daniela.
-- O que tenho para falar é muito importante -- argumentou Daniela.
-- Então, fala.
Depois de um tempo Daniela respirou fundo e tocou as têmporas com a ponta dos dedos.
-- Você vai ficar responsável por tudo aqui, Bianca. Quero que administre a fazenda, o hospital veterinário...
-- Espera, espera... -- Bianca levantou os braços pedindo que Daniela parasse de falar -- Como assim? E você?
-- Eu vou voltar para São Paulo. Meu lugar é ao lado de Yasmin e os bebês.
Bianca se levantou e começou a andar pelo quarto.
-- Não, não. Eu não vou ficar aqui sem você. Não vou conseguir administrar essa fazenda enorme, todos esses funcionários. Não, não. Nem pensar.
Daniela se levantou e foi até ela.
-- Você vai conseguir, Bianca. Você é capaz, eu confio em você.
-- Se nada der certo pelo menos meu umbigo é pra dentro.
Daniela revirou os olhos.
-- Ainda bem que por trás de cada mulher idiota, existe uma mulher pra fazer a idiota virar mulher.
-- Não entendi. Você está falando da Benta?
Daniela suspirou, e segurou a mão dela, puxando-o para a porta.
-- Agora você tem ela para dividir a vida e todos os seus desafios.
Vó Dinda estava passando roupa, e desligou o ferro assim que elas entraram na sala.
-- O problema das lésbicas é que elas não querem saber de porr* nenhuma! Bianca só pensa em safadeza, mas trabalhar que é bom...
-- Trabalhar pra que Dinda, se eu posso viver do dinheiro da Dani!
-- Vovó está certa, Bianca. Todo dinheiro que vem fácil, sai fácil. Todo dinheiro que vem com muito esforço e dedicação, sai fácil também -- Daniela beijou a testa da idosa -- A senhora sabia que as tábuas de passar roupas são pranchas de surf que pararam de seguir seus sonhos e arrumaram um emprego de adulto.
-- É?
-- Não dê ouvidos a Dani, Dinda. Ela só fala besteira. As pranchas de surf que pararam de seguir seus sonhos, agora estão lá na cozinha procurando micro-ondas.
-- É? -- a idosa largou o ferro e foi em direção a cozinha.
-- Você não devia fazer a vovó de boba, Bianca.
-- E você pode.
-- A vó é minha -- Daniela voltou para o quarto, abriu o armário, tirou uma bermuda, uma camiseta e jogou sobre a cama -- No ônibus, uma vovó está com uma imensa vontade de peidar. Ela sabia que não aguentaria segurar por muito mais tempo, então teve uma ideia.
-- Vou peidar e rasgar este jornal ao mesmo tempo, pois com o barulho do jornal rasgando ninguém escutará o peido. A vovó então levanta discretamente um lado da bunda, solta o peido e rasga o jornal.
-- Vraaaaaappptttt!
Um bêbado que observava tudo então pergunta:
-- A senhora vai limpar aqui mesmo?
Bianca olhou pra cara de Daniela.
-- Piada antiga e sem graça. Você já foi melhor.
-- Você é terrivelmente desagradável, Bianca. Amiga que é amiga de verdade, ri das piadas mesmo não tendo graça.
Depois de trocar de roupa, Daniela parou diante do espelho.
-- Se beleza fosse grão de areia, eu seria o deserto do Saara.
-- Hoje eu sou uma gracinha, mas quando nasci, era tão feia, que a minha incubadora era de vidro fumê.
-- Sinto dizer, Bianca, mas ficou algumas sequelas.
-- Sério? Tipo o que, Dani?
-- Sua orelha parece um fusquinha de porta aberta -- Daniela colocou um boné vermelho e se virou para Bianca -- Agora vamos para a fazenda. O pessoal já deve estar chegando com os animais.
Trinta minutos depois, Daniela e Bianca estavam atravessando a porteira da fazenda. Logo em seguida chegaram Benta e os cuidadores.
Daniela subiu no capô do carro acompanhada por Bianca. Ela limpou a garganta e começou o discurso.
-- Bom dia, pessoal! Sejam bem-vindos a Sede do Projeto "Patinhas de Canoinhas".
Aplausos.
-- Essa fazenda será o lar de cachorros, gatos, cavalos, porcos e aves, que foram vítimas de maus tratos e receberão tratamento, alimentação e carinho. Nesse local, foram construídos consultórios veterinários, laboratório para exames, alas para internação de animais, espaço para tosa e banho. Para abrigar todos os animais da melhor forma possível, construímos canis, gatis, chiqueiros para os porcos e estábulos para os cavalos.
A equipe será formada por trinta cuidadores e quatro veterinários. Teremos unidade móvel e atendimento veterinário gratuito para todos os animais da comunidade. Qualquer um que queira trazer o bichinho e confie no nosso trabalho não pagará absolutamente nada. Nosso projeto é totalmente filantrópico, financiado pela Empresa Farmacêutica Vargas. Nós somos uma instituição sem fins lucrativos de proteção, ação e abrigo de animais.
Quando os animais chegarem ao sítio eles passarão por uma triagem dos veterinários. Se não desenvolverem nenhuma doença, serão feitos todos os exames, serão castrados, vacinados, vermifugados e estarão prontos para ficarem livres em alguma baia da fazenda.
Vamos receber animais com todos os tipos de doenças, parasitárias, infecciosas, todos os tipos de parasitas que se conhece e até alguns que não conhecemos. Portanto, será um desafio e tanto. Estão preparados?
-- Estamos!
Todos responderam com entusiasmo a pergunta feita por Daniela.
-- Então... Que tragam os: Anjinhos Abandonados.
Os animais começaram a chegar trazidos pelos funcionários e pela população. Chegavam de diversas formas, mas, sempre em más condições de saúde. Ou por doença do carrapato, ou por cinomose, parvovirose, verminose, atropelado, agredido, mas a grande maioria, abandonados pelas ruas.
-- Tia Dani.
Uma criança com um cachorrinho no colo, puxou Daniela pela barra da camiseta. Daniela agachou-se diante dela.
-- O que foi, meu amor? Como se chama?
-- Henrique -- os olhos dele ficaram claros e luminosos -- Esse é o trovão, ele é o meu cachorrinho -- o menino entregou o cachorro para ela -- O trovão não consegue andar, mas eu não abandonei ele -- o menino olhou para ela, seus olhos cheios de uma estranha combinação de orgulho e tristeza.
Daniela sentiu uma pontada no estômago.
-- Fez muito bem em não o abandonar no momento em que ele mais precisa de você. O que aconteceu com ele?
-- Ele teve cino... cinovirose, não, acho que é cino...
-- Cinomose -- Daniela fez um carinho no cachorro e o colocou no chão.
-- É... isso mesmo. O meu amigo disse que só você pode curar ele. E eu acredito.
Daniela olhou para Bianca. A amiga imediatamente entendeu o olhar dela.
-- Eu já examinei o trovão. A doença foi diagnosticada em outubro. Ele ficou dois meses internado no hospital da Roberta. O trovão sobreviveu graças ao tratamento adequado, uso de vitaminas, antibióticos, suco de quiabo (rico em vitamina A, C, Cálcio Ferro e Fósforo) e mel. Trovão conseguiu se recuperar, mas, perdeu os movimentos das patas posteriores. Não anda mais. Ele só não foi sacrificado porque a Roberta é completamente contra o sacrifício dos cães.
-- Eu não vou deixar ninguém matar o meu trovão -- o menino começou a chorar.
-- Calma Henrique! Jamais faríamos isso -- Daniela abraçou o menino. Ele estava muito assustado -- Por favor, Bianca. Traz a cadeira de rodas.
-- Claro, Dani.
-- Cadeira de rodas, tia?
-- Nós temos uma cadeira de rodas pra cachorro. Vamos ver se o trovão aprova?
O rostinho de Henrique se iluminou. Um sorriso radiante tomou conta de seu rosto.
-- Vamos! Vamos!
Assim que Daniela colocou a cadeira nele, Trovão saiu correndo em disparada, chegou na metade do caminho, parou, voltou, deu uma lambida nela e saiu correndo novamente.
Imediatamente as lágrimas caíram dos olhos da veterinária. Aquela cena a marcou profundamente. Era como se ele estivesse agradecendo.
Henrique seguia com o olhar o cachorro que corria sem parar. Depois, sorriu para Daniela. O rostinho do menino brilhava de alegria.
-- Vai brincar com ele, carinha -- o coração de Daniela ficou leve com a felicidade da criança -- Vai recuperar o tempo perdido.
-- O Trovão agora é o Óptimuscão, líder heroico dos Autobots - o garoto falou, todo empolgado.
Daniela sorriu.
-- E nós acabamos de derrota o malvado líder Decepticon Cinomosetron!
-- Uhuuu... -- Henrique saiu correndo, empolgado.
-- Emocionada, amiga? -- indagou Bianca, deitando a cabeça dela sobre seu ombro.
-- Esse cãozinho chegou aqui com os olhos tristonhos. Provavelmente estava deitado num canto isolado, deprimido, não querendo comer. Quando a gente o colocou na cadeira de rodas, quando ele percebeu que aquilo ali vai devolver a mobilidade dele, parece um passe de mágica! Ele ficou tão felizes que senti vontade de correr junto.
Bianca gargalhou.
-- Ele nem precisou de adaptação como na maioria dos casos.
-- O desejo de voltar a andar foi maior -- Daniela secou as lágrimas com a mãos.
Aquele cachorrinho especial a fez voltar no tempo e lembrar de como se sentiu após a morte dos pais e a partida de Débora. Deitada num canto isolada, deprimida, não querendo comer. A vida havia perdido o sentido. Foi a tia Roberta quem a fez andar novamente e a enviou para São Paulo para estudar.
"Às vezes para continuar lutando só precisamos de um empurrão, de uma palavra amiga e do incentivo certo. Em cada queda há uma oportunidade para levantar mais forte e sair correndo".
Daniela e Bianca, passaram as horas seguinte brincando com Trovão e os demais animais.
A história de Trovão, foi baseada na cadelinha Pretinha. Ela é uma, dos cerca de 440 cães que a entidade Vira Lata Vira Vida, mantém em seu abrigo.
Uma veterinária de Rio Claro, ofereceu o tratamento de acupuntura para tentar recuperar os movimentos de Pretinha.
Na primeira sessão ela começou a movimentar as pernas e há um mês voltou a andar. Ainda cambaleando, Pretinha consegue brincar com seus amigos do abrigo. Ela já fez cinco sessões de acupuntura.
Na clínica Natural Vet, Pretinha também faz fisioterapia e deverá também passar por sessões de aquaterapia. Ainda não há um prazo para isso acontecer, porque ela continuará por tempo indeterminado fazendo a acupuntura.
O exercício na água poderá ajudar a fortalecer os músculos das patas posteriores que foram afetados pela doença. Também faz parte do tratamento o uso de um medicamento fitoterápico.
A superação da cinomose motivou os voluntários da organização trocar o nome da cadelinha Pretinha. Hoje ela se chama: Vitória.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
Mille
Em: 13/04/2019
Oi Vandinha
A Bianca não ri das piadas da Dani mais eu gargalho aqui.
Bianca e Benta pensei que a filha do delegado iria fazer charme mais parece que ela gamou na Bianca.
Yasmim ficou alegre sobre a decisão da Dani, mais acho que no final ela que irá aceitar ir para canoinha para não ter a Dani dívidida.
Emocionante a história do trovão.
Bjus e até o próximo capítulo um ótimo final de semana
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