Aquela voz, aquele perfume, aquele olhar, velhos conhecidos de Carolina, e pareciam não mudar, ela estava lá, em pé na frente da cardiologista, seu semblante estava carregado, as olheiras indicavam noites mal dormidas, a aparência de quem tinha dez anos a mais. Mas ainda muito bonita, Samantha estava ali, segurando a porta do carro de Carolina, em uma quase súplica, uma exigência em conversar com a médica.

            Carolina estava sem reação, era a primeira vez que a cardiologista encontrava Samantha depois do acidente, olhava para a modelo como se ela fosse uma estranha, essa era a sensação, que nunca conheceu Samantha realmente. Tudo o que elas viveram foi uma grande mentira, sentia-se dentro de uma história inventada para um único propósito: o prazer egoísta de Samantha.

            As duas mantinham o silêncio que as envolvia, Carolina queria manter a distância da ex-namorada, mas no fundo, sentia que precisava conversar com ela sobre Lucia, já havia pensado nessa possibilidade, mas pensou em deixar essa opção para o último lugar da lista de possibilidades.

            Samantha insistiu em sua súplica, queria pedir perdão pelos seus erros e falar sobre Lucia.

 

 

-- Carol, eu realmente preciso conversar com você.

 

 

            Carolina estava tensa, seu corpo parecia paralisado, não conseguia falar, não conseguia desviar, correr, era uma inércia incontrolável. Mais um pouco e tinha parado de respirar também, mas tirando forças de onde não sabia que tinha, conseguiu inquirir a modelo.

 

 

-- O que você quer, Samantha? Achei que tudo já estava esclarecido entre nós. – Afastou-se –

 

 

-- Carol, eu sei que eu fiz um monte de merd*, eu te magoei demais, e você tem todo direito de nunca mais querer me ver.

 

 

-- É mais ou menos isso mesmo. – Levantou uma sobrancelha –

 

 

            Samantha lembrou-se daquele gesto tão característico da médica, que sempre fazia isso quando se sentia contrariada, percebeu a pequena cicatriz sobre sua sobrancelha e sentiu a dor de saber que ela estava ali por causa daquele acidente. Sentiu saudades daquele tempo em que teve um pouco de felicidade ao lado dela, mas sabia que nada poderia ser feito para recuperar o tempo que perdeu.

 

 

-- Podemos tomar um café? Sair daqui. Não quero que Lucia nos veja.

 

 

            Aquele nome causava arrepios em Carolina, por fim, ela aceitou conversar com Samantha para saber o que estava acontecendo entre ela e Lucia, e por que estava sendo um alvo para a empresária.

 

 

Suspirou rendida -- Entra aí.

 

 

            Samantha sorriu e deu a volta no carro entrando pela porta do carona, Carolina saiu com o veículo apressada, tentando evitar que alguém as visse juntas, tudo que ela não queria era exposição e gente falando de sua vida.

            Levou Samantha em uma padaria perto do seu apartamento, a modelo conhecia o lugar, as duas sentaram em uma mesinha no fundo do estabelecimento e fizeram o pedido para o café. Depois de alguns minutos de um silêncio incômodo, Carolina resolveu acelerar aquele encontro.

 

 

-- Pois bem Samantha, eu estou aqui, o que é tão importante assim?

 

 

-- Primeiro, eu preciso te pedir perdão. – Olhava tristemente – Eu fui uma filha da puta com você. Durante todas as vezes em que estávamos juntas, eu não fui mulher pra você.

 

 

            Carolina ouvia calada, tantas lembranças vinham em sua mente, um turbilhão de sentimentos invadia seu peito, estava nervosa, a presença de Samantha estava pela primeira vez, incomodando. Como não falou nada, Samantha continuou seu monólogo.

 

 

-- Eu tentei falar com você antes, mas não consegui, eu precisava me desculpar pelo que aconteceu naquele dia do baile, Lucia não tinha o direito de falar daquela maneira com você.

 

 

            Mais uma vez, Carolina sentiu um calafrio percorrer sua espinha, aquele nome estava causando um estrago psicológico tão destrutivo que ela começou a se preocupar com sua saúde. Precisava dar um ponto final àquela história.

 

 

-- Samantha, eu fiquei realmente surpresa com tudo que eu descobri sobre você. – Olhou nos olhos da modelo – Nem nos meus piores pesadelos eu poderia imaginar que você se prestaria a esse papel. – Falou mais baixo – Garota de programa?

 

 

            Samantha abaixou a cabeça, sentiu o peso das palavras de Carolina, olhando agora pra trás, realmente, ela não mediu as consequências do que fazia, poderia ter sofrido qualquer tipo de agressão, ter adoecido, se expôs desnecessariamente, mas o que estava feito não tinha mais como desfazer, apenas encontrar um jeito de conviver com isso.

 

 

-- Samantha, você não precisava daquilo. Sempre teve tudo que você quis na vida. – Pausou – Mas no final não sobrou nada. Tudo virou poeira, e pra que? Eu não vou entender nunca o que passa pela sua cabeça.

 

 

            Um rapaz trouxe os pedidos das duas, café puro para a modelo, queijo quente e achocolatado para a médica, colocou sobre a mesa e saiu deixando as duas naquela conversa tão dura. As duas estavam ali revivendo fantasmas que lhe assombraram por muito anos, mas tudo isso era necessário para a cura.

 

 

-- Samantha, eu não gosto de guardar rancor, mas você abusou de mim em todas as esferas possíveis. – Revirou os olhos --

 

 

-- Eu sei. – Baixou os olhos --

 

 

-- Eu posso até ser capaz de te perdoar, porque parte do que aconteceu foi culpa minha, eu deixei você fazer o que quis, todas as vezes que eu permiti que você voltasse pra minha vida.  Mas não sou capaz de receber você de volta no meu convívio. Isso é demais pra mim.

 

 

-- Eu entendo sua posição, e não vim aqui achando que você faria isso novamente, o que me fez te procurar de novo, foi o fato de Lucia ter comprado o hospital que você trabalha.

 

 

-- Você sabia disso? – Começou a comer –

 

 

-- Não, eu não tinha a menor ideia. – Dizia sinceramente – Eu só descobri porque eu a ouvi conversando com alguém no telefone e ela contou o que tinha feito, eu logo liguei os pontos.

 

 

-- Lucia tem me importunado, já apareceu no estacionamento uma vez e na reunião para anunciar a nova diretoria ela não parou de me olhar. Samantha, ela está com algum problema.

 

 

-- Ela está obcecada por você Carol, tudo que eu faço ela fala no seu nome, fica fazendo comparações, perguntando se ela faz as coisas como você faz, se eu gosto mais do jeito dela ou do seu. Acho que ela perdeu o juízo.

 

 

-- Samantha, eu estou realmente preocupada com isso, se ela fizer alguma coisa contra mim, eu vou denunciá-la.

 

 

-- Faça o que você precisar. Eu decidi que vou me separar, não posso mais viver uma vida que não é minha por causa de dinheiro.

 

 

-- Como assim? – Carolina se espantou –

 

 

-- Eu vou pedir o divórcio assim que eu conseguir organizar minha vida, vou procurar um advogado para me ajudar. – Suspirou -- Depois que eu saí da sua casa, eu fiquei tão perdida, ninguém me ajudou, lembrei de cada palavra que você me disse sobre meus amigos que eles nunca foram realmente meus amigos, pensei em tudo o que você falou sobre não ter nada, não ter responsabilidade, e eu resolvi que iria juntar a grana pra comprar o meu apartamento. Deveria ter feito isso antes, hoje eu poderia estar vivendo bem melhor.

 

 

            Carolina ouvia o relato emocionado de Samantha, por um momento viu que a loira parecia ter escutado alguma coisa que ela falou.

 

 

-- Continuei fazendo programas com Estela e com alguns clientes particulares, juntei uma boa grana e ao invés de jogar fora como sempre fiz, eu comprei um apartamento, pequeno, mas consegui comprar à vista.

 

 

-- Que bom Samantha, eu fico feliz que tenha criado um pouco de juízo.

 

 

-- Pois é, mas quando eu estava para sair da casa de Estela, Lucia voltou dos Estados Unidos e me encontrou morando lá ainda. Ninguém sabia que eu tinha comprado o apartamento, então quando ela me propôs o casamento e vida boa, eu pensei, por que não? Eu já estou acostumada com ela, estarei com toda mordomia novamente, eu posso fazer isso.

 

 

-- Ai Samantha, você sempre foi pelo caminho errado. – Balançou a cabeça –

 

 

-- Verdade. – Deu de ombros – Aluguei o apartamento e tenho guardado esse dinheiro para alguma emergência, casei com ela e fui morar na cobertura que ela tem na Barra. Mas com o passar do tempo eu percebi que pra estar debaixo do mesmo teto, não basta apenas dinheiro e joias, tem que ter amor, e eu não a amo, nunca amei.

 

 

-- Por favor, não me diga que ainda me ama.

 

 

-- Eu te amo sim Carol, mas eu aprendi que o meu amor por você hoje é por tudo que você fez por mim, todas as tentativas de me ajudar e que eu ignorei, eu simplesmente não queria ajuda. – Balançou a cabeça negativamente -- Eu tenho um carinho enorme por você, é uma pessoa que sempre estará no meu coração, mas eu sei que nunca teremos nenhum tipo de envolvimento novamente.

 

 

            Carolina olhava para Samantha, via sinceridade em suas palavras, como sempre ela queria ver o melhor das pessoas, e não estava errada, ela sabia que debaixo daquela máscara que a loira usava, tinha um coração bom.

 

 

-- Samantha, isso é tudo muito lindo, mas você tem ideia da guerra que você vai criar quando quiser se separar?

 

 

-- Eu tenho sim. Mas eu estou preparada pra isso. Eu só tenho medo por você, tenho medo de Lucia colocar a culpa em você e tentar te prejudicar.

 

 

-- Eu acho que isso ela já está tentando fazer. Soube que ela vai encerrar o programa de residência, o qual eu sou responsável, ela quer me desmoralizar, tirar o que eu conquistei. – Seus olhos entristeceram –

 

 

            Samantha sentiu seu coração apertar, ela conhecia Carol muito bem para saber o quanto seu trabalho representava para ela, sua vida era totalmente voltada para aquele hospital e os planos de Lucia pareciam ter atingido seu objetivo mais cruel.

 

 

-- Eu vou tentar dar um jeito nisso, vou tentar convencê-la a vender o hospital e ir embora daqui novamente, voltar para o exterior, e depois que eu conseguir afastá-la de você eu me separo.

 

 

-- Eu confesso que estou feliz por notar uma mudança real em você, Samantha. Posso te fazer uma pergunta?

 

 

-- Não estou.

 

 

            Carolina percebeu que Samantha já sabia o que ela ia perguntar, apesar de todas as decepções, as duas tinham uma conexão muito forte.

 

 

-- Eu não estou mais usando drogas Carol.  – Abriu um tímido sorriso – Eu estou limpa desde o seu acidente.

 

 

            Carolina finalmente sorriu para Samantha, era exatamente essa pergunta que iria fazer, sentia que aquelas palavras eram sinceras, finalmente Samantha apresentava ares de mudanças concretas, mas ainda não confiava totalmente.

 

 

-- Você está falando a verdade? Não é mais uma daquelas cenas que você fazia comigo quando queria que eu voltasse pra você?

 

 

-- Eu juro! Estou fazendo terapia sem Lucia saber, e dessa vez estou levando a sério. Eu não posso continuar vivendo nesse mar de lama que eu me afundei. – Dizia triste --

 

 

-- O que fez você tomar essa decisão?

 

 

            A conversa começou a fluir como duas velhas amigas que elas eram, Carolina queria que Samantha se encontrasse e gostou de saber que a loira estava enfim dando ares de mudanças.

 

 

-- Eu pensei muito Carol, minha vida estava de cabeça pra baixo, eu não tinha nada, não tinha um carro, não tinha uma casa, depois de ter tudo que eu sempre quis, eu não fiz nada para manter o que meu pai me deu. – Suspirou -- E com isso eu cheguei no fundo do poço, eu pensava sempre em você, em como você lutou e conquistou seus sonhos, mesmo sem nenhuma ajuda. – Sorriu – Então eu decidi que eu precisava fazer o mesmo. – Deu de ombros – Mas foi um passo de cada vez.

 

 

-- Eu imagino.

 

 

-- Hoje eu tenho um valor razoável em uma conta que eu consigo me manter por um tempo, até encontrar alguma coisa produtiva pra eu fazer.

 

 

-- Eu espero que você se encontre Sam, eu sempre esperei ouvir isso de você.

 

 

-- Eu senti saudades de você me chamando assim. – Sorriu --

 

 

            A tensão voltou a incomodar, Carolina não sentia nenhuma atração por Samantha, mas a loira deu a entender que se pudesse queria mais da médica.

 

 

-- Samantha, eu preciso ir embora. Larguei um plantão de vinte e quatro horas, mas foi bom conversar com você. Eu te perdoo, mais uma vez, eu espero que você encontre sua felicidade.

 

 

-- Obrigada Carol, eu precisava disso pra continuar. Eu prometo que vou tentar tirar Lucia daqui pra ela te deixar em paz.

 

 

-- Vamos ver o que vai acontecer.

 

 

            As duas levantaram e se despediram, cada uma seguiu um rumo diferente, Carolina assistiu Samantha pegar um taxi na outra esquina e suspirou alto. Pegou seu carro e foi para casa tentar descansar, ficou com esse encontro e os últimos acontecimentos martelando em sua cabeça até finalmente pegar no sono já quase terminando a manhã.

Fim do capítulo