Capítulo 20 - Transições
Enquanto Lívia aguardava por sua menstruação, ou pelo menos dar o tempo suficiente para fazer o exame de gravidez, ela resolveu se refrear da vida sexual com Bruno. Foi visitar seu irmão e seu cunhado e espairecer um pouco. Também aproveitou para conversar com Alessandra pelo telefone.
“...e daí eu tomei a pílula mas como já havia tomado outras vezes, não sei o que vai dar.” Ela conta.
“Mas tu achas que estás grávida?”
“Não sei...eu venho sentindo náuseas mas acredito muito no poder da sugestão. Pode ser isso. Mas e você? Sua voz parece meio rouca, está tudo bem?”
“Está sim, está sim.” Alessandra pigarreia.
“E como está a vida aí na capital gaúcha? Pegando muitas gurias e muitos piás?”
“Não...eu não peguei ninguém nas férias. Como havia te dito, foquei mais em mim, mal saí, deletei minhas redes sociais, eu meio que recomecei.”
“Nossa, você está levando a sério mesmo esse tal recomeço... mas deletou por quê? Cansou do narcisismo alheio?”
“Deletei porque aquilo não era eu... parecia mais outra pessoa, outra vida.”
“E desde quando você filosofa desse jeito, hein, Alê?”
“Comecei a meditar, refletir mais sobre a vida... limpar a mente faz bem.” Alessandra explica.
“Bem que eu queria aprender a meditar... eu perco a paciência muito fácil. Acho que você é uma das poucas pessoas nesse planeta que consigo ter paciência.”
“Assim eu fico sem graça, guria... mas quando tu quiseres, podemos meditar, daí tu aprendes a ter mais paciência com o Bruno, por exemplo.”
“Estou precisando!” Lívia ri.
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“Estou me sentindo uma adolescente de novo com esses encontros às escondidas...” Isabel comenta, enquanto entra no carro de Helena.
“Tecnicamente não é tão às escondidas porque no fundo seus pais sabem que a gente se encontra, então...”
“Sim. Mas eu já estou meio cansada de voltar a ter horários para toque de recolher. Digo, eu poderia ficar até mais tarde mas estou evitando mais conflitos.”
“Tem razão, agora no começo é melhor evitarmos hostilidade desnecessária. Mas bem que estou sentindo falta de você dormindo lá em casa...” Helena faz bico.
“Eu também estou sentindo falta de trans*r em uma cama! Sexo no carro é bom, mas me dá uma dor na região lombar!”
“Será que não dá tempo da gente ir lá para casa?”
“Helena, são uns 20 km de distância da sua casa para a minha, e com o trânsito, até chegarmos lá já vamos ter perdido boa parte do pouco tempo que temos...”
“Tem algum motel aqui perto?”
“Certeza que você quer ir a um motel aqui nas redondezas?”
“Por que não? Se tiver uma cama, já está bom. O strap-on está no porta malas.”
“Tem um há algumas quadras daqui. Se estiver mesmo disposta...”
“Só me explicar o caminho.”
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As duas chegam em um quarto de motel pequeno, com uma cama redonda ao centro. O frigobar tinha duas garrafas de água, e havia uma televisão na parede e uma porta que dava em um pequeno banheiro.
“Finalmente vou trans*r sem atacar minha coluna!” Isabel ri e se joga na cama.
“E essa cama é confortável.” Helena dá dois tapas no colchão. “Se duvidar é mais confortável que a minha. Dá até vontade de dar nessa cama.”
“Dar? No sentido de eu lhe ch*par?” Isabel pergunta.
“No sentido de me comer mesmo.” Helena responde com naturalidade.
“Você está falando sério, Lena?” Isabel arqueia uma sobrancelha, desconfiada.
“Estou.” Helena responde com seriedade.
“Você nunca fez isso antes mesmo? Nem com garotos, nem garotas?” Isabel continua a perguntar.
“Não.”
“E você quer que sua primeira vez seja aqui em um motel nos confins de São Paulo?”
“Eu só quero que seja com você. Não importa onde.” Helena confessa.
“De onde está vindo isso, Helena?”
“Não sei, estive pensando muito sobre isso. Também confesso que já tive várias fantasias, só não tinha coragem mesmo. Agora decidi que estou pronta. Quero me conectar com você de todas as formas possíveis, Bel.”
Isabel começa a beijar Helena com ternura, calmamente. Roupas tiradas, falo de borracha em prontidão, Isabel parecia bem concentrada.
“Se doer você avisa e eu paro, okay?” Isabel aconselha, antes de definitivamente começar a penetrar.
“Está doendo! Para!” Helena grita, enquanto sente o dildo adentrar.
Isabel o retirou rapidamente. Helena respirou fundo e permitiu uma segunda tentativa. Dessa vez, Helena conseguiu suportar mais. Ela olhou diretamente dentro dos olhos de Isabel, e, apesar do desconforto, sorriu. Isabel continuou lentamente, até retirar e verificar a mancha vermelha típica pós primeira penetração.
Helena se levantou e tentou regular sua respiração. “Caramba, eu achei que apenas comer fosse cansativo.” Ela ri, tentando puxar o ar.
“Está pensando que dar é fácil?” Isabel brinca. “Mas gostou?”
“Se eu gostei de ver uma mulher em cima de mim jogando o cabelo de um lado para o outro enquanto fazia uma cara safada ao me comer? Eu adorei!” O sorriso de satisfação de Helena já respondia por si só.
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Não confiando em sua menstruação irregular, Lívia resolveu fazer o teste de gravidez após a segunda semana do ocorrido. Ela ligou para Bruno e deixou no viva-voz.
“Já urinou?” Bruno pergunta, ansioso, enquanto Lívia termina de encher um copo plástico com urina para colocar o teste.
“Já, estou esperando o resultado.” Ela responde, também apreensiva.
“Apareceu o resultado?” As mãos de Bruno suam segurando o celular.
“Ainda não, Bruno! Espera.”
“Saiba que, seja como for eu vou estar com vo-”
“Negativo! Deu negativo! Graças aos deuses!” Lívia vibra do outro lado da linha.
“Negativo?” Bruno parece desapontado. “Mas tem o risco de ser um falso negativo, não tem?”
“Ai, Bruno, para de ser pessimista! Eu sei dessa probabilidade, mas eu prefiro acreditar que esteja certo. Quando voltarem as aulas eu faço outro teste, ou o exame de sangue. Vamos pensar positivamente!”
Bruno concordava, apesar de ter sentido uma ponta de tristeza com a notícia. Por mais que quisesse evitar e tenha até sugerido outros meios, ele havia se acostumado com a ideia.
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As últimas semanas de férias passaram como um relâmpago. Lívia acabou menstruando, o que foi um alívio para ela e outra sutil decepção para Bruno, que mais uma vez escondeu o sentimento. Os colegas, aos poucos, foram voltando, o que incluía também Helena e Isabel, que combinaram uma pequena reunião no apartamento com amigos e alguns conhecidos na véspera do primeiro dia de aula.
Lívia foi a primeira a chegar na confraternização, pois estava ansiosa em rever Alessandra, com quem conversava bastante ultimamente. Quando ela viu Alê, surpreendeu-se com o estilo diferente: o cabelo, raspado dos lados, evidenciava um modesto moicano. Até as roupas mudaram, mas não deixaram de ter estilo, esbanjando um hoodie sem manga e calças rasgadas. Os braços pareciam mais encorpados, também. A estudante do quarto semestre abraçou a do segundo com uma saudade do tamanho do Universo.
“Você está tão diferente! Tão linda!” Lívia não para de elogiar Alê.
“Eu queria conversar sobre um negócio importante contigo. Pode vir no quarto comigo?” Alê chama, ainda com a voz rouca, bem mais grossa, e Lívia a segue.
“O que foi? É algo ruim?”
“Não, não. É algo bom até. Lembra que no começo das férias eu disse que começaria um tratamento? Pois então. Já era algo que eu pensava há anos e na verdade comecei aqui mesmo, procurei uma terapeuta de gênero, depois psiquiatra, endocrinologista...aí comecei a terapia hormonal.”
“Espera, você vai virar...?”
“Não sei se virar é o termo certo. Mas descobri que sou um homem transgênero. Eu não gostava de me aproximar das pessoas porque eu tinha muitas dúvidas sobre quem eu era, e por isso agora decidi ser verdadeira, digo, verdadeiro com quem eu sou.”
“Sério? É oficial mesmo? E você vai manter seu nome?”
“Meu primo, que é advogado, está correndo atrás da papelada para mudar minha documentação. Daqui uns dias fica tudo concluído, mas eu queria que tu fosses uma das primeiras pessoas da faculdade a saber.”
“Mas que nome você vai usar? Alessandro?” A curiosidade de Lívia aumenta cada vez mais.
“Na verdade não. Eu sempre gostei do nome Dante. Acho que a referência já deu para entender.”
“Dante? Que nome lindo! Já adorei! Lembro que uma vez você comentou algo sobre amar A Divina Comédia. Mas você quer que eu comece a lhe chamar assim na frente dos outros ou você vai esperar?”
“Bem, eu já vou começar a pedir para as pessoas me chamarem assim, então, se puderes ajudar, seria ótimo.”
“Bom, já peço desculpas desde já porque eu estou acostumada com um tipo de pronome, e tenho que trocá-los, mas prometo me policiar o máximo possível!”
“Sei como é, quando a Ariel fez a transição eu também passei por isso.” Dante se conforma. “Tu tens mais alguma dúvida?”
“Na verdade eu tenho...” Lívia coça a cabeça. “Mas acho que seria falta de educação perguntar...”
“Sim, eu vou fazer a mastectomia esse ano ainda. Quanto a faloplastia, penso em fazer um pouco mais para frente.”
“Como sabe que eram essas as minhas dúvidas?”
“Essa costuma ser a dúvida da maioria das pessoas.”
Lívia então faz um cafuné no moicano do garoto. “Fico feliz que você finalmente conseguiu se entender. Semestre passado eu estava preocupada com você. Distanciava-se do nada, tinha todas aquelas regras...”
“Como eu disse antes, estava confuso, perdido. Ainda bem que tu não desististe da minha amizade.” Dante sorri.
Lívia então relembra do peso da palavra ‘amizade’. Seu sorriso se esvaeceu por um breve segundo, o que a fez forçar um novo sorrir para que ele não percebesse. Ver Dante finalmente descobrir quem ele realmente era fez com que os sentimentos de Lívia reflorescessem. “Você não sabe o quão especial é para mim, Dante.” Ela responde, com afetuosidade.
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Com o início das aulas de Semiologia, começariam também as aulas práticas no hospital para que os alunos treinassem a entrevista clínica, perguntar sobre sintomas, histórico de doenças, medicações prescritas, entre outros, com pacientes já internados. Os alunos deveriam formar grupos para serem instruídos pelo professor e médico preceptor. Helena e Isabel se juntaram a Kléber, Bia, Estela, Mateus e Matheus – sim, eles se diferenciavam apenas pela letra H. O médico preceptor era o Dr. Moisés, um gastroenterologista. Cada grupo se reunia em uma pequena sala no andar superior do hospital, onde o médico dava uma aula introdutória antes de começar a prática.
“Boa tarde, pessoal. Eu ficarei o semestre todo com vocês aqui para as aulas práticas. Como de costume, eu auxilio nas disciplinas de Semiologia I e II, então divido meu tempo entre vocês e seus veteranos. A diferença entre vocês é que eles já trabalham com hipótese diagnóstica com os pacientes internados, e vocês só trabalham com o início do raciocínio clínico mesmo. Não vou pedir apresentações porque vocês estão com crachás, então sem grandes preocupações. Se faltarem, não vou marcar, mas sou bom em gravar o rosto, então na data da prova prática eu vou saber quem foi dedicado ou não.” Ele explica, enquanto pega uma caneta para escrever no quadro branco da sala. “Nessa disciplina, vocês vão estudar basicamente a Anamnese. Vocês já viram algo sobre o termo?”
“Não é um tipo de entrevista que o médico faz ao paciente?” Isabel responde em forma de pergunta.
“Show off.” Helena brinca, e Isabel já entendendo um pouco mais de inglês - graças a algumas aulas da namorada - acaba rindo.
“Sim. Basicamente isso...Isabel.” Dr. Moisés se aproxima para ler o crachá da estudante, e então alguém bate na porta.
“Dr. Moisés, a gente já pode ir para a sua ala?” Lívia aparece. Seu grupo também tinha o gastroenterologista como preceptor.
“Pode sim, Lívia, só estou passando aqui alguns conceitos para eles e depois encontro vocês lá em cima. Podem me esperar lá.” O médico responde.
Lívia acena para suas amigas e fecha a porta.
“Continuando...” Ele escreve na lousa os termos Ana + mnesis. “Ana significa trazer de volta e mnesis é memória, ou seja, o paciente vai trazer a memória todas as informações que ele puder para que possamos investigar o que ele tem e assim formar o raciocínio clínico. A anamnese se divide em partes.” Ele escreve todos os tópicos no quadro. Como de costume, Isabel é a única que anota absolutamente tudo que é falado. “Identificação, que são as informações básicas, como nome, estado civil, idade, gênero, profissão, escolaridade, entre outros tópicos que vocês vão ler no livro, mas basicamente esses são os principais. Queixa principal, que é a principal dor ou reclamação do paciente. É o motivo principal que o fez ir ao hospital. As vezes não tem o que colocar pois o paciente só foi para fazer um exame de rotina então coloca como check up na queixa principal. Esse tópico vocês tem que colocar entre aspas porque é exatamente o que o paciente disse. Se ele disse que está com dor na parte de cima da barriga é assim que vocês têm que escrever. Agora no tópico de História da Doença Atual vocês descrevem nos termos médicos que vocês aprenderam na aula de manhã com outro professor o que o paciente está sentindo, por exemplo, essa dor de barriga se torna uma dor em região epigástrica. Aí tem que descrever a dor, falando do tipo, intensidade, fator de alívio, fator de agravo...senhor...Matheus? Estou entediando o senhor?” Dr. Moisés chega perto do aluno que estava quase cochilando.
“Oi? Não, doutor, desculpa, ainda não desacostumei das férias.” Matheus responde, assustado, enquanto o resto do grupo segura a risada.
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Lívia observa a gola do jaleco de Bruno e percebe que está torta. “Deixa eu arrumar.” Ela ajeita enquanto ele, brincando a pega pela cintura. “Bruno! Estamos no hospital.”
“Eu sei!” Ele continua com um sorriso gracioso, mas Lívia se afasta.
“Vocês ficam bonitinhos juntos!” Stéfani, uma das colegas de classe deles, elogia, enquanto Lívia dá meio sorriso em resposta.
“Hey, vocês viram que a menina do segundo semestre virou homem? A garota já está mudando nome e tudo.” Pietro, outro colega de classe, comenta.
“Agora é garoto, Pietro, não se diz garota. E ele não virou, ele percebeu que sempre foi assim e agora passou pela transição.”
“Ele está ficando bombadão.” Bruno comenta a respeito de Dante. “Espero que você não me troque por ele.” Apesar do tom de brincadeira, Bruno parece preocupado.
“Bobo.” Lívia revira os olhos, mas acaba se sentindo um pouco desconfortável com o comentário do menino.
Fim do capítulo
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rhina
Em: 25/08/2020
É cada assunto cabeça que vc traz que está me virando pelo avesso.
Mexendo com meus conceitos. Meu jeito de saber e vê tais assuntos. Aí eu paro de lê e volto a lê. Reflito. Tendo entender.....digo tá bom assim.....penso depois.....ai ai
Rhina
Resposta do autor:
aaaa vc não sabe o quão feliz fico em saber disso!!!!!!!! <3
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