Capítulo 10 - Amizades e esqueletos no armário
“Tia, tia! O Eduardo me bateu!” Em algum ano do início do milênio, em uma daquelas escolas de ensino bilíngue entre Pacaembu e Higienópolis, um lindo garotinho reclamava para sua professora.
“Eduardo, não pode bater!” A professora repreendeu o menino, que não ligou e na primeira oportunidade, quando a professora não estava olhando, deu outro tapa no amiguinho. A pobre vítima então foi chorar no canto, mas foi abordado por uma outra figura.
“Por que você está chorando?” A coleguinha de classe perguntou, mesmo sem conhecê-lo bem.
“ O Eduardo me bateu.” O menino desabafa.
“Espera aí.” A menina vai até o meliante e dá uma joelhada em suas partes íntimas, fazendo Eduardo pronunciar palavrões estritamente proibidos para a pré escola.
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Otávio abre os olhos e se depara com uma sonda nasogástrica e um soro aplicado em seu braço. Ao seu redor, percebe que está em um quarto de hospital.
“Você nunca mais me assuste com isso!!” Helena vê o amigo acordar e sai da poltrona de acompanhante e se aproxima dele. “Você estava taquicárdico e tendo um ataque de pânico desencadeado pela cocaína e lhe aplicaram benzodiazepínicos.” Ela explica. “Cara, o médico se surpreendeu com a quantidade de cocaína encontrada no seu sangue, não se sabe como você não teve uma complicação mais grave.”
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“Eu odeio tabuada.” Helena, com sete anos na época, reclamava de sua maior dificuldade.
“É fácil, a gente só tem que decorar, você vai ver que não é tão complicado assim.” Otávio abre seu caderno e mostra a tabela de multiplicações.
“Não é fácil, Tavinho!! Eu nunca vou conseguir.” Helena já extravasava a dramática dentro de si.
“Vai sim, você vai conseguir, a gente vai passar juntos de ano e um dia vamos ser dois doutores!” Otávio, otimista, convencia a amiga.
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Lívia chega logo em seguida no quarto, acompanhada por ninguém menos que Bruno, para surpresa de Helena.
“O que ele está fazendo aqui?” Helena pergunta, olhando desconfiada para os dois.
“Quando você mandou mensagem eu entrei em pânico, lembrei que o Bruno tem carro e bati na porta dele para pedir carona.” Lívia explica.
“Fiquei bastante preocupado quando Lívia me falou sobre Otávio. Meu irmão teve problemas com isso, portanto, não tinha como eu ficar de fora de uma situação como essa. Ele está bem?”
“Agora que o pior já passou, ele está sim. Já liguei para a família dele, estavam bem preocupados, resolveram vir, chegam hoje ainda.”
Bruno se aproxima de Otávio e pega em sua mão. “Rapaz, você nos deu um susto danado. Eu já tinha avisado para você parar com isso, mas você nunca dá ouvidos para os seus colegas de classe, não?”
Helena olha para Lívia. “Parar com isso? Há quanto tempo ele está nessa?”
“Desde que éramos calouros nós ficamos sabendo que ele era usuário. Assim, ele não era de usar em todas as festas, ele escondia bem, mas pelo visto deve ter piorado.” Lívia comenta, em certo tom de tristeza. “Helena, eu esqueci de dizer uma coisa, a respeito de ontem, eu-”
“Lívia, agora não é um bom momento.” Helena interrompe. “Mas fique tranquila. Foi melhor assim, eu acho.”
“Vocês não vão avisar o namorado dele? O Yan.” Bruno pergunta.
“No momento ele estava com um colega da Paula, mas não sei se deveria avisá-lo.” Helena explica, e Bruno parece surpreso e triste por acabar de descobrir sobre o término alheio.
“Avisa sim, por favor. Marquei com ele de sair agora à tarde.” Otávio pede.
“Você tem o número dele?” Helena tira o celular do bolso.
“Não tenho. Manda por rede social, ou pede para a Paula ligar para ele, por favor.”
“Mandarei por rede social.” Ela responde, sem ao menos hesitar.
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“Helena, eu preciso lhe confessar uma coisa que só eu e uma outra pessoa sabem...” Otávio chama a melhor amiga no canto da sala de aula, no meio do intervalo em seu primeiro ano do Ensino Médio.
“O que foi?!” A amiga se assusta.
“Eu...eu beijei o Eduardo. E obviamente ele é a única outra pessoa que sabe disso, né. Bom, agora tem você.”
“O Edu? Sério? Então quer dizer que você é...?”
“Eu não sei! Não sei porque eu gosto de meninas também. E eu nunca fiz nada com meninos. Mas eu gostei de tê-lo beijado. Acho que eu gosto dele de verdade.”
“Que fofos! Não creio! O Edu gosta de você também? Como foi o beijo?” Helena, empolgada, queria todos os detalhes.
“Ele me mandou um bilhetinho no meio da aula para a gente se encontrar na casa dele à tarde...ai Helena, não sei se vou.”
“Vai sim! Se você gosta dele, tem que ir mesmo. Não seja que nem eu. Tudo que eu sei fazer é ficar babando pela Keila do terceiro colegial, mas eu nunca teria chances com ela.”
“Para de falar isso, todo mundo sabe que ela gosta de meninas também, você tem que se arriscar, não foi você que disse que tem que ir mesmo?!” Mais uma vez, Otávio, ao lado de sua amiga, tentava convencê-la a tomar a melhor decisão.
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No cair da noite, os pais e os avós de Otávio chegaram após uma cansativa viagem. Tiveram uma longa conversa com Lívia, Bruno e Helena, que foram obrigados a contar tudo. O pai de Otávio, extremamente desgostoso, teve que se conter para não brigar com o filho em pleno hospital. O psiquiatra responsável também teve uma boa conversa com a família do garoto, e, quando este já estava melhor, subiu para a sala do médico especialista.
“Senhor Otávio, correto?” O psiquiatra aperta a mão do garoto com firmeza.
“Sim, doutor. Mas pode me chamar só de Otávio.”
“Então, Otávio, eu andei conversando com sua família, bati um papo também com alguns dos amigos que fazem medicina com você, falamos a respeito do que vem acontecendo.”
“Então eles já fofocaram...” Otávio cruza os braços.
“Não, Otávio, não encare assim. São pessoas que lhe amam e estão preocupadas com você. E me contaram que você vem com esse mesmo comportamento há meses, já.”
“Não é bem assim, eu usei uma vez ou outra, nem sei como meus colegas descobriram, eu fazia escondido.”
“E me explique, por que o senhor fazia isso escondido?”
“Eu não queria que eles se preocupassem...”
“E hoje, diga-me, por que excedeu a dose? Porque pelos seus exames a dose estava altíssima.”
“Eu errei a quantidade, só isso, doutor. Mas eu não vou mais usar.”
“Olha, senhor Otávio. Eu sei que você está em um curso extremamente difícil, já estive onde você está, é uma pressão enorme. Eu sei que as intenções do senhor são boas e o senhor não quer mais, porém vou recomendar para seus pais internação, tratamento e reabilitação.”
“Eu não preciso disso!” Otávio se levanta e, mais uma vez, irrita-se.
“Por favor, acalme-se.” O psiquiatra chama os pais dele. Helena e seus colegas acompanham.
“Filho, você vai voltar com a gente para São Paulo.” O pai de Otávio afirma.
“Mas eu tenho aula, pai! Depois provas, trabalhos! Não posso perder dias assim!”
“Amanhã nós vamos na coordenação e vamos conversar para trancar seu curso. As coisas não podem continuar do jeito que estão.”
“Você precisa de tratamento, meu bem.” A mãe de Otávio, mais branda, tenta acalmá-lo.
“Eu não preciso de nada disso, mãe! Eu preciso me formar! Eu não preciso de tratamento!!” Otávio parecia uma criança fazendo birra, mas por fim, aceitou.
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“Eu não acredito que eu entreguei meu coração para ela, Tavinho...” Helena, com a cabeça no colo do amigo, em um banco de praça próximo ao colégio. “Ainda tem vestibular pela frente, tantas preocupações...”
“Amiga, vai ficar tudo bem. A Roberta não merecia você. E outra, você tem que aproveitar para sair, conhecer gente nova e não se apegar, logo a gente vai para outra cidade, talvez até para outro Estado dependendo de onde passarmos... Vamos começar uma vida nova! Tudo vai ficar melhor, Lena.” Otávio acaricia o cabelo da melhor amiga.
“Quando vai ficar melhor? Porque tudo parece tão longe...nem fizemos as provas ainda.” Aos prantos, a menina desabafa.
“Um dia, minha querida. Um dia.”
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Otávio ficou com sua família em um hotel próximo a faculdade, pois no dia seguinte buscariam as coisas dele para o regresso a São Paulo, enquanto Helena voltou para casa. Não queria ficar sozinha, mas sabia que não podia recorrer a Paula, e ainda por cima ainda não estava cem por cento em relação a Lívia. Procurar alguém para dividir um apartamento não seria tão difícil, afinal, as aulas acabaram de começar, então deve ter muita gente procurando lugar. Só não faria já para respeitar o momento. Ela entrou no quarto do melhor amigo e viu a carreira sobre a escrivaninha. Abriu uma das gavetas e viu um estoque de pílulas, cartelas e mais pó. Questionou-se por não ter percebido antes. Como ele conseguiu esconder por tanto tempo?
Ela tomou um bom banho quente para tentar esquecer o dia. Pensou em ligar para Isabel, que já sabia o que havia acontecido e também já havia mandado mensagem para perguntar sobre a situação. Mas resolveu não fazê-lo. Helena estava frágil e naquele momento não queria que as palavras de Paula fossem verdade. Então voltou para a sala e ligou a TV. Acabou pegando no sono e só acordou com o despertador, no dia seguinte.
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Três semanas de silêncio. Silêncio de Otávio, que não podia usar celular na clínica de reabilitação, por isso Helena somente recebia notícias pela mãe do amigo. Silêncio de Paula, que deletou a ex namorada de todas as redes sociais e bloqueou suas mensagens. Helena pensou que fosse apenas um tempo, mas estava parecendo algo um pouco mais definitivo. Três semanas também foram tempo suficiente para Helena estreitar a amizade com Isabel. Elas estudavam quase todos os dias juntas e conversavam sobre quase tudo. Vez ou outra, Isabel dava as agulhadas dela sobre os privilégios de Helena, que aos poucos aprendia a lidar com o jeito da outra. Três semanas também foi o tempo para Helena achar uma nova colega de apartamento. Era Alessandra, uma das calouras da turma de Helena. Originalmente de Porto Alegre, a gaúcha apresentava os traços e olhos de seus descendentes europeus. Acabara de fazer 18 anos mas já tinha tatuagens desde os 16. Solteira por opção, pretendia permanecer assim.
Em plena manhã de sábado, Isabel foi ao apartamento de Helena para iniciarem um trabalho de farmacologia. As duas estudavam tranquilamente na mesa da cozinha quando, do quarto de Alessandra, saem dois rapazes ao lado dela. Isabel e Helena se entreolham, surpresas. Alessandra se despede dos dois e tira um cigarro e um isqueiro de seu roupão.
“Bom dia, veteranas.” Ela cumprimenta pouco antes de acender o cigarro.
Isabel tosse de propósito para que a caloura não fumasse perto dela, mas sem efeito.
“Você pode fumar na varanda?” Helena pede gentilmente e Alessandra assim o faz.
“Bem, a gente tem que traduzir esse artigo sobre esse novo anticonvulsivante utilizado no tratamento de abstinência do álcool para poder responder às questões. Se quiser eu traduzo metade e você traduz a outra parte.” Helena sugere.
“Meu inglês é bem básico, vou precisar da sua ajuda para traduzir a minha parte...” Humildemente, Isabel confessa.
“Tudo bem.” Helena sorri e puxa a cadeira para o lado de Isabel. Ela começa a ler, já traduzindo automaticamente a introdução. “Acho que aqui eles explicitam o funcionamento fisiológico do cérebro quando passa por uma crise de abstinência, pelo jeito.” Ela comenta. “Engraçado, a mesma área do cérebro que trabalha com vícios também trata de paixões.”
“A gente viu isso em neuroanatomia semestre passado? Não me recordo.”
“Não, não, eu li em um artigo, uma vez. A área tegmental ventral aciona o sistema de recompensa que a gente viu na aula passada de farmaco, certo? É a mesma área ativada por drogas de abuso.”
“O sistema Límbico é realmente mágico.” Isabel demonstra um sorriso tênue. “Mas faz sentido, parecemos viciados quando gostamos de alguém.” O rosto dela se avermelha, enquanto, sutilmente, inclinava-se. “Nosso lado racional diz para fugir, mas a gente faz o contrário e só se aproxima mais.”
“Pelo menos esse tipo de vício, às vezes, vale a pena...” Helena umedece os lábios e também se inclina. As bocas estavam mais próximas uma da outra do que jamais estiveram antes. Helena abre os lábios lentamente, pronta para tocar os de Isabel, quando Alessandra volta da varanda e as interrompe.
“Cara, que chuva chata que começou agora. Tomara que até à noite já tenha parado, senão vai estragar o rolê.” A gaúcha comenta, chateada.
“Bom, Helena, eu prometi que ia ajudar o pessoal da moradia com o almoço hoje, então é bom eu ir, e mais tarde eu tenho que ir para a lanchonete, ainda bem que esse é o último sábado fazendo turno extra. Mas a gente faz assim, eu tento traduzir o que eu conseguir, e as partes que eu não entender eu mando para você, pode ser?” Isabel, envergonhada e afobada, arranja uma desculpa.
“Ah. Tudo bem então...” Helena deixa-se levar pela justificativa e aceita sem contestar, apesar de seu interior praticamente gritar por aquele beijo que não ocorreu.
Fim do capítulo
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AlRibeiro
Em: 10/02/2019
Gosto muito dessas questões acerca do privilégio que você aborda. É algo para o qual pessoas ainda tapam os olhos e os ouvidos.
Bruno me lembra colegas que foram mudando sua forma de pensar e agir, que hoje são pessoas que tem noção da sua situação e do próximo, que entendem que "mimimi" e "vitimização" são termos que não devem ser utilizados quando se trata da luta e da dor do outro.
Ansiosa pelos próximos capítulos!!
Abraçaço :D
Resposta do autor:
Ah, mas você é um anjo <3
Agradeço por ter capturado exatamente a essência que eu quis passar, isso me deixa contente por saber que estamos em sintonia! hahahahaha
Beijão!
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