Lá vou eu
Ao chegarmos ao Local, Carol foi imediatamente ao encontro da sua irmã, que chorava segurando uma fralda, sentada numa cadeira de madeira, abraçando as próprias pernas. Ao seu lado, uma senhora – que julguei ser a mãe das duas – segurava uma xícara com algum líquido que fumaçava, porém, o seu desespero também era bastante notável. O abraço daquelas duas irmãs foi uma das cenas mais impactantes que eu já vi em toda a minha vida. Havia medo. Havia incerteza. Havia preocupação com uma criança que elas tanto amavam. Nem percebi que as lágrimas também deslizavam pelo meu rosto. O desespero era tanto que elas sequer notaram – ou, pelo menos, comentaram – a minha presença. Até que alguém toca a campainha e a senhora vai abri-la, enquanto Carol e Letícia permaneciam abraçadas.
A senhora retorna até nós acompanhada de um homem que aparentava ter uns trinta anos. Ele também abraça Letícia demoradamente. Ao me ver, questionou:
– Quem é essa moça?
– É minha aluna. Nós estávamos no shopping quando a Lê me ligou informando o que tinha acontecido – respondeu Carolina.
– Olá, Mirela – cumprimentou Letícia, embora estivesse com o rosto completamente inchado, bem diferente do que mostrou pouco tempo atrás no shopping.
– Letícia – disse a abraçando, o que a fez desabar em lágrimas novamente –, vai ficar tudo bem com a sua filha.
– Mirela, esse é o Fabrício, nosso irmão e essa é Regina, nossa mãe.
– Olá. A situação é muito triste, mas vamos torcer para que tudo fique bem com a Serena –disse olhando para os dois.
– Exato – concordou Fabrício – e vocês ligaram para a polícia?
– Sim, primeiro falei com eles e só depois com a mamãe e a Carol. Dei o atual endereço do... Do bandido para que eles procurem ele por lá.
– Vamos ficar atentos, manter o celular carregado e aguardar na esperança de que a nossa menina está bem e logo vai voltar para casa. Mas antes precisamos ir à Delegacia registrar o Boletim.
– Precisamos fazer isso imediatamente.
– Vamos todos para lá.
– Vão no seu carro, Fabrício, que Mirela e eu vamos no meu – Carol anunciou.
– Tá certo, Cá.
Eu apenas observava toda aquela movimentação e, apesar da angústia, me senti feliz por saber que poderia continuar protegendo a minha maravilhosa professora que agora está tão frágil e triste. Ao entrarmos no carro novamente, deixei que Fabrício partisse na frente e antes de fazer o mesmo dei um selinho demorado na Carol, que, às lágrimas me perguntou:
– Será que a minha menina está bem, Mi?
– Vamos fazer o que for preciso para que ela fique.
Ao chegarmos na Delegacia, Letícia registrou o B.O. e só nos restava esperar. Quase uma hora depois chegou a notícia tão aguardada por todos ali reunidos: Serena fora encontrada e estava bem, inclusive, está a caminho da Delegacia onde estávamos. Ainda não sabíamos ao certo o que aconteceu com ela, mas o que mais importava naquele momento é que ela voltaria para a sua família.
As reações foram completamente diferentes, porém emocionantes. Dona Regina começou a gritar desesperadamente, chorando de uma maneira muito intensa. A impressão é de que o tempo todo ela estava tentando ser forte para acalmar a todos – principalmente Letícia –e só agora a ficha havia caído sobre o perigo que correra a sua neta. Já Carol e Letícia se abraçaram imediatamente, pronunciando algumas palavras que não pude compreender. Ali, tive a certeza de que aquelas cenas ficariam na minha cabeça para sempre. Fabrício, em meio a todo aquele sentimento de alívio – que só se faria presente completamente quando Serena estivesse junto deles – que invadira aquele ambiente depois da referida notícia, falou:
– Precisamos prender esse criminoso e garantir que ele nunca mais encoste um dedo na minha sobrinha ou na minha irmã – concluiu, finalmente liberando as lágrimas que ele aparentemente prendia até então.
– Não será preciso – informou o policial, deixando todos sem entender absolutamente nada.
Letícia, que ainda estava nos braços de Carolina, também chorando, perguntou.
– Como assim?
– O sujeito, Rodrigo Saviari Nogueira – disse lendo em um papel que carregava –, cometeu suicídio. Aparentemente, a intenção dele era fazer isso na frente da criança. Ele a levou no seu carro até o endereço que a senhora forneceu, a colocou em uma cadeirinha presa a um cinto e então disparou na sua própria cabeça.
– Desgraçado!!! – praguejou Fabrício.
– Gente, é um milagre! A minha neta sobreviveu.
– O que leva uma pessoa em sã consciência a se matar na frente de uma bebê, que, por sinal, é sua filha, ainda mais na casa em que ele morou com a Letícia? – questiona Carol.
– Não se pode duvidar de absolutamente nada que possa ter vindo do ser cruel e desumano que é o Rodrigo. Honestamente, eu estou muito aliviada por saber que ele morreu. Só assim eu me sinto cem por cento segura. Sou contra que o Estado sentencie tal punição para algum indivíduo, mesmo que seja alguém como ele, mas, nesse caso, a sentença foi dada por ele mesmo – desabafou Letícia, seguida pelo policial:
– E ele provavelmente nem estava em sã consciência. Pela quantidade de drogas que se encontrava no local do crime, pode-se deduzir que ele estava sob efeito de tais entorpecentes. De todo modo, o laudo do IML indicará.
– Mas o mais importante: cadê a minha filha? Já está demorando muito. Eu não aguento mais ficar longe dela.
O policial confirmou que ela estava a caminho e a aflição de não saber onde Serena estava foi substituída pela de não saber que horas ela chegaria. Mas já era um grande avanço. Da incerteza à expectativa de que o tempo passasse depressa. Eu apenas observava a reação de todos ali, principalmente a de Carol, por mais que às vezes suas expressões permitiam múltiplas interpretações, o que me deixava bastante confusa. Ela estava diferente. Claro que estava aliviada por saber que sua sobrinha estava bem, mas me pareceu ter algo a mais se passando por aquela cabecinha. O fato é que não tive tempo de me dar nenhuma resposta sobre isso, já que a atenção de todos se voltou para a criança que acaba de entrar na sala nos braços de um policial. Letícia correu em sua direção e a pegou no colo, chorando descontroladamente. Em seguida, Carol e os demais também se aproximaram, enquanto eu decidi observar mais ao longe.
– Oi, Mamã. Ti Calol. Vovó. Tito.
– Amor da minha vida! Você tá bem? – perguntou Carol.
A menina apenas sorriu e deitou no ombro da mãe que sequer conseguia dizer alguma coisa. Ouvi durante a espera que ela tinha um ano e oito meses e, portanto, não sei se ela compreendeu a cena que presenciou, mas de fato, agora ela estava, finalmente, segura, assim como Letícia havia dito. Ainda era preciso realizar mais alguns procedimentos na Delegacia e Fabrício sugeriu.
– Cá, vai com a garota que a gente se vira aqui.
– É, pode ir, maninha. Obrigada demais – disse Letícia a abraçando.
– Tem certeza, Lê?
– Tenho. Vamos ficar bem. Hoje eu vou dormir na casa da mamãe, ok?
– Ok. Fiquem bem.
Em seguida, Carol a abraçou, beijou o topo da cabeça de Serena que abou dormindo mesmo com toda a movimentação ali, se despediu também de Fabrício e, por último, de sua mãe, que apontou para um espaço mais reservado indicando que queria conversar a sós com Carol. A curiosidade era grande de minha parte, mas a única coisa que me restou foi me despedir dos irmãos de Carol e de Serena enquanto isso. A observei dormindo por alguns instantes e é incrível como os bebês nos trazem uma paz tão única. Enquanto isso, o papo das duas mulheres seguia em uma aparente discussão, embora ambas fossem bem discretas.
(Carol)
Não acredito que a dona Regina vai me trazer problemas depois de tudo o que aconteceu. Mas a cara que ela fez ao demonstrar o seu desejo por nossa conversa particular me obrigava a crer em tal impossível. Até imagino do que se trata, se bem a conheço.
– Por que me chamou aqui, mãe?
– Quero que você me diga o que faz com essa garota. Ela até parece ser menor de idade. Carolina, o que você pensa que está fazendo da sua vida? Não adianta negar porque eu vi a forma como ela te olhava. Carolina, você está comendo essa menina?
– Sua vulgaridade não me surpreende, senhora. É lamentavelmente comum que prestes esse papel. Mas vou deixar algumas coisas claras por aqui. Primeiro, eu sou independente da senhora moral, social, afetiva, financeira e legalmente há um bom tempo. Logo, a senhora não tem absolutamente nada a ver com as minhas decisões em aspecto algum, incluindo minha vida amorosa e sexual. Segundo, e olha que esse é bônus porque não mereces essa informação, a Mirela é maior de idade. Terceiro, não estou comendo ninguém e, quarto, se estivesse, não seria da sua conta.
– Muito bem! Palmas pra você, sua sapatão imunda. Eu só quero estar aqui para ver de camarote quando você quebrar a cara com essa menina.
– A senhora também falou isso a respeito da minha escolha profissional, lembra? Professora, fracassada, sem dinheiro e infeliz. Mas então, mãe, foi isso o que aconteceu?
– Você deu sorte. Apenas.
– Dei sorte de nunca ter explodido com a senhora e vindo parar aqui por isso.
– Não me chama de senhora, porr*. Você sabe o quanto eu odeio ser chamada assim.
– Desculpe-me, senhora, eu não sabia.
– Vá se foder, Carolina. Aliás, vá se foder com um macho porque ninguém merece dar para dedos, não é? É ruim?
– Bem, se a senhora estiver com vontade de descobrir, o máximo que poderei fazer é torcer para que encontre alguém que te sane a dúvida.
– Sapatão imunda.
– Acho que encerramos o nosso assunto, não é mesmo, senhora?
Ela nada disse, apenas se retirou me deixando completamente enfurecida, apesar de disfarçar isso para não preocupar ninguém e especialmente Letícia, que já havia extrapolado o limite de preocupação naquele dia. Então, me retirei da sala sendo seguida por Mirela até o carro.
– Acho que já posso dirigir.
– Tudo bem. Se você quiser eu chamo um Uber, não quero te fazer ir até a minha casa de novo. É longe.
– Claro que não. Vamos. Te deixo lá.
– Certo.
Entramos no carro e sentimentos vastos começaram a me invadir. Para amenizá-los, decidi ligar o rádio e colocar na minha estação favorita. Mas foi impossível sequer definir o que estava tocando. Me concentrar nela, na Mirela ou mesmo no trânsito era uma missão que eu não estava conseguindo cumprir. A única coisa na qual eu conseguia pensar naquele momento era a conversa com a minha mãe e tudo o que ela havia me dito. De certo, ela nunca aceitou o fato de eu ser lésbica. Achei que com o tempo as coisas se resolveriam, mas passados quinze anos a situação continuava quase a mesma, exceto por uma diferença crucial: eu não era a universitária insegura de dezenove anos que morava com ela e dependia dela até para comprar uma calcinha nova. Agora dinheiro não era mais um problema, eu morava sozinha e tinha a minha própria vida. No entanto, menti quando disse que não dependia dela afetivamente. Eu nunca consegui conviver bem com a não aceitação dela e, embora a essa altura do campeonato já não houvesse mais esperança, a única certeza que tinha é que eu nunca ia me conformar com aquilo. Era a minha maior dor.
Se eu a amasse menos seria tão mais fácil. Na verdade, era tudo o que eu queria. Queria acreditar nas coisas que eu dizia a ela, queria ser a personagem segura e firme que criei para atuar diante da minha mãe sempre que o assunto era esse. Mas sempre que a nossa conversa se encerra, a distância entre mim e aquela adolescente frágil e insegura cai gradativamente. Eu finjo que não me importo com o peso de “decepcioná-la” e pensar o quão cruel isso pode ser, já que o motivo para essa decepção era eu ter decidido ser eu mesma e aceitar que nasci para amar mulheres.
Porém, a verdade é que isso me machuca ao ponto de me fazer recuar. E quantas vezes já recuei. Quando ela definitivamente me tirou da sua vida, eu corri para ela dizendo que faria qualquer coisa para que ela me aceitasse de volta. Até um namorado fake (que aceitou tal situação de bom grado tentando me ajudar) eu apresentei para tentar agradá-la. Não deu, eu não consegui fingir. Mas o fato é que minha vida inteira parece uma farsa. E voltando ao dilema de estar em algum lugar entre a tia Carol e a professora Carolina, parecia que havia cada vez menos espaço para essa pessoa entre essas realidades. Logo, aquela determinação que brotou quando decidi entrar com Mirela na sua casa fora substituída pelo tão familiar sentimento de fraqueza e solidão. Não só as palavras vomitadas pela minha mãe, como todo o episódio de Serena, me pareciam confirmar que eu deveria focar na minha família e eliminar qualquer possibilidade de viver o que quer que fosse com Mirela. Eu mal percebi, mas já havíamos chegado ao destino. Uma espécie de piloto automático me conduziu pelas ruas e avenidas de uma Fortaleza que tão gentilmente acolheu a minha angústia. Senti uma mão sobre a minha e levei alguns segundos até tomar coragem o suficiente para retirá-la de lá.
– O que foi, Carol?
– Nada – disse, friamente.
– Eu não entendo.
– Nem eu. Eu só queria te agradecer por ter sido tão solícita esta noite.
– Não precisa agradecer, eu faço o que for possível para te ajudar.
– Muito obrigada, Mirela!
– Você não gostaria de dormir aqui hoje? Acho que vai ser melhor porque...
– Desculpe-me, mas não posso.
– Tudo bem, então. Boa noite! Fique bem.
Dito isso, ela veio em minha direção na tentativa de me beijar, mas eu a desviei o rosto a deixando visivelmente contrariada.
– Mirela, me desculpe, mas eu realmente não posso.
Ela nada mais disse. Saiu do carro e entrou no prédio sem olhar para trás. Sua indignação era perfeitamente compreensível e era possível imaginar o quão confusa ela não deve ter ficado diante da minha reação, depois de tudo o que aconteceu nesta noite. Dos amassos às lágrimas. Do desejo à tristeza e também ao alívio. Eu não queria magoá-la e por mais que eu não tivesse certeza disso, me pareceu que ela não queria apenas um envolvimento físico comigo. O sentimento era ainda mais profundo. Digo com propriedade porque também sentia algo muito diferente por aquela garota tão inteligente, tão linda e tão prestativa que há pouco enchia este Sandero com a sua graça.
Chegando em casa, liguei para Letícia que me disse já estar a caminho de casa pronta para finalmente descansar ao lado da sua filha tão amada por nós e que vivenciou tamanha barbaridade neste dia. O relógio marcava 03:12 e, no entanto, nada do sono me visitar. Decidi, então, abrir uma garrafa de vinho e curtir a companhia dela, enquanto a ambiguidade se fazia presente na minha cabeça: eu estava pensando em não pensar em Mirela. Para me acompanhar naquele momento, coloquei uma canção de Rita Lee tão impactante na voz de Zélia Duncan, que invadia o meu quarto, enquanto aquela bebida de tonalidade e sabor tão maravilhosos adentravam o meu corpo:
“Num apartamento
Perdido na cidade
Alguém está tentando acreditar
Que as coisas vão melhorar
Ultimamente.
A gente não consegue
Ficar indiferente
Debaixo desse céu
Do meu apartamento
Você não sabe o quanto eu voei
O quanto me aproximei
De lá da Terra.
As luzes da cidade
Não chegam nas estrelas
Sem antes me buscar
E na medida do impossível
Tá dando pra se viver
Na cidade de São Paulo
O amor é imprevisível como você
E eu
E o céu.”
O fato, Zélia, é que na cidade de Fortaleza o amor também é tão imprevisível. Incompreensível. Inevitável. Assim como as minhas lágrimas neste momento são inevitáveis. Eu não consigo ficar indiferente debaixo desse céu. Mais uma vez, estava me colocando em último lugar, a diferença é que dessa vez estava levando junto comigo para essa posição tão injusta a garota que penetrou meu coração rápida e verdadeiramente. E acho que agora ela também deve estar num apartamento perdido na cidade tentando acreditar que as coisas vão melhorar ultimamente. Choro silenciosamente, sendo abraçada pelo álcool e pela música até pegar no sono.
Fim do capítulo
Demorei um pouquinho porque esse começo de ano está super movimentado para mim, mas é isso. Sintam-se à vontade para me mandar elogios, críticas, sugestões, etc.
https://www.youtube.com/watch?v=qcpzvyujmts
Link da versão que a Carol estava escutando. Quem quiser enaltecer a Zélia também tá valendo e quem lembrou do vídeo de terça do Apto. 202 quando falamos nela igualmente.
Beijos e até breve.
(Ah, e para quem não conhece o 202 fica a dica
https://www.youtube.com/channel/UCwZ3HhzkUvBYa2bYZR9Uf3Q)
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