Sandero azul, desespero latente
Não tive tempo de pensar em desistir de fazer aquilo, pois meu celular começa a tocar insistentemente desmanchando o ar libidinoso que se instaurara naquele Renaut Sandero azul. Olhei no visor e decidi atender ao constatar que se tratava de uma ligação da Letícia. Me viro para a Mirela para avisá-la que precisaria atender a chamada de minha irmã.
– Oi, Lê!
– Carol, você sabe... me diz que ela tá bem – disse chorando, de tal modo que quase não consigo entender o que ela falava, o que me deixou completamente assustada. Carolina, me diz que você sabe onde ela tá.
Estava realmente complicado entender exatamente qual o motivo do desespero de Letícia, mas o meu só aumentava ao sentir que ela estava falando de Serena. Imediatamente, o meu peito foi atingido por uma dor enorme, cujo motivo exato eu ainda não sabia, mas o modo de falar da Lê denunciava a gravidade.
– Letícia, por favor, me fala o que está acontecendo!!! Por favor – implorei para saber o porquê das lágrimas dela, por mais que já sentisse que estava relacionado à minha sobrinha.
– Ele levou a minha filha, Carol. Ele levou a minha neném. Eu não sei onde ela está. Tô tentando te ligar há algum tempo, eu não sei onde você está e eu preciso muito de você agora, Carolina. Me ajuda a me achar a minha filha, pelo amor de Deus.
As palavras dela confirmaram a suspeita do meu coração. Serena estava mesmo em perigo e apesar do fato da minha irmã não ter sido específica em relação ao “ele”, não era difícil entender que se tratava de Rodrigo, ex-marido dela e pai da menina que agora corria um risco absurdo. Ele, que, por decisão judicial, não poderia se aproximar delas, não aceitou o fim do casamento com a minha irmã, que durou apenas um ano e meio. Esse relacionamento foi recheado de violência. Rodrigo, que se dizia um homem de família, com valores intocáveis, se revelou um perfeito criminoso espancando Letícia diversas vezes, chegando, inclusive, a quebrar o seu maxilar depois de um soco. Porém o que fez a minha irmã, que até então sofria os abusos calada sem contar nada nem mesmo para mim, decidir procurar ajuda foi o ponto mais delicado e grave dessa história: ele a estuprou grávida. O trauma foi imenso e vivemos dias muito difíceis. Quem deu forças para a Letícia recomeçar a viver foi justamente Serena. E agora ela estava lá, nas mãos desse bandido, com quem nunca me dei bem, já que ele me considerava uma pervertida por conta da minha orientação sexual, que era antônima à sua moral e bons costumes cristãos. Não conseguindo mais segurar, chorei copiosamente ainda dentro do veículo.
– Foi o Rodrigo, Letícia? Onde você tá?
– Foi ele, sim... Eu... Eu tinha acabado de buscar a Serena na mamãe e ele me abordou quando eu estava quase chegando na porta com a Serena no colo. Ele... Ele... Disse que era o fim – chorava desesperadamente tentando organizar as palavras, gesto também realizado por mim naquele momento de pura aflição –, que eu tinha perdido a guerra. Me deu um soco forte me fazendo desmaiar e quando eu acordei a minha filha não estava mais aqui. Liguei... Liguei para a mamãe e ela já está chegando. Parece que a minha cabeça vai explodir, mas eu não quero saber de mim, Carolina. Eu quero saber da minha filha, a razão da minha vida.
– Letícia – disse, tentando disfarçar a voz de choro para não deixá-la ainda mais desesperada –, eu sei que é difícil, mas tenta se acalmar que vai dar tudo certo, a gente vai encontrá-la. Vamos ligar para a polícia, vai dar certo. Eu chego aí já, já.
Senti uma mão no meu ombro e só então lembrei que estava na companhia da garota que até então apenas observava tudo inerte e agora me olhava com um semblante de preocupação.
– Carol!!! O que aconteceu? Foi a sua irmã? Quem é Rodrigo?
– Mirela, não tenho tempo de te explicar – falei tentando secar as lágrimas com as minhas mãos. Eu preciso ir agora. Eu preciso ir ajudar a Letícia. Depois a gente se fala, certo?
– Errado! Vou com você. E eu dirijo. Carolina, não discuta, porque você não tem condições de fazer isso agora.
– Não precisa, eu posso dirigir.
Enquanto eu ainda relutava, Mirela abriu a porta dela, chegou em frente à minha e me pediu para passar para o banco do carona, até então ocupado por ela. Se fosse em qualquer outra circunstância eu relutaria, mas ali, naquele momento, eu não poderia resistir. Todas as minhas energias estavam concentradas naquela menina doce, de cachinhos lindos e sorriso encantador. Vendo o meu semblante, Mirela amenizou:
– Eu tenho CNH.
Quando ela fez menção de girar a chave para dar partida no carro, falei:
– Minha sobrinha foi sequestrada. Pelo pai dela.
Dito isso, chorei desesperadamente e então sou envolvida em um abraço terno, carregado de sentimentos variados. Sinto minhas lágrimas molharem o ombro da garota que carinhosamente passava as mãos pelos meus cabelos. Ao nos separarmos, percebo as lágrimas que caem pelo seu rosto. Ela tinha razão, eu não conseguiria ir sozinha.
– Vai ficar tudo bem, minha linda. Eu estou aqui com você.
Indiquei o endereço e partimos rumo à casa de Letícia, em um silêncio de desespero pelas incertezas que faziam daquela noite um filme de terror real. O maior fantasma do passado da minha irmã reaparece para machucar o nosso bem mais precioso: Serena.
(Mirela)
É simplesmente impossível descrever o sentimento que invadiu o meu coração ao vê-la daquela forma. Suas mãos tremiam, seu olhar inquieto tentava fitar um ponto qualquer à sua frente. Sem sucesso. Suas lágrimas de desespero caíam naqueles instantes de silêncio da ligação, quando ela teoricamente ouvia o que sua irmã lhe dizia. Me senti impotente, até quis interrompê-la, mas achei que a opção mais sensata era ficar quieta e tentar lhe ajudar de alguma forma quando fosse possível. Eu queria que aquela dor cessasse. Mal a conhecia, mas ela já era significante o suficiente para aquela situação me afligir tanto.
A casa da sua irmã não ficava tão longe e naquele horário o trânsito já não seria um problema para nós. Me esforcei muito para me concentrar no trajeto, o que era quase impossível dada a situação. No entanto, tinha a certeza de que era minha a responsabilidade de garantir a nossa segurança, então, tentava não desviar o olhar da avenida. Apesar da tensão, eu até que estava conseguindo, até o momento em que sinto sua mão apertar a minha, que estava no volante. Viro imediatamente e pude ver seu pedido de ajuda:
– Mi, fala que vai ficar tudo bem com ela. Eu não consigo nem imaginar o que seria de mim se eu a perd...
– Não vai perdê-la. Vai ficar tudo bem.
Após dizer isso, levei a minha mão para mais perto dela e entrelacei nossos dedos, apertando, na tentativa de lhe passar confiança. Naquele instante, o meu peito foi tomado por uma sensação inédita. Muito forte. Ainda mais forte que a que nasceu durante o nosso primeiro abraço, ou durante o primeiro encontro rítmico de nossas bocas. Eu realmente não poderia garantir que tudo ficaria bem com a garotinha linda que vi na foto do Facebook ao lado daquela mulher tão incrível que agora chora angustiada ao meu lado. O que eu poderia garantir é que essa sensação que se fez presente em mim naquele momento me dava a certeza de que eu faria de tudo para que aquelas lágrimas desaparecessem daquele rostinho lindo.
– Obrigada, Mirela.
– Não precisa agradecer, Carol.
Em seguida beijei sua boca rapidamente, constatando que o gosto de menta proveniente da balinha que ela colocara na boca no caminho até a minha casa, sentido durante os nossos beijos intensos naquele mesmo veículo, fora misturado ao gosto salgado das suas lágrimas. No entanto, este era ainda mais real e emocionante. Não daria para prever que em algumas horas viveríamos tanta coisa e tanto ainda estava por vir.
Fim do capítulo
Não foi hoje que rolou o hot, mas não se preocupem que ele virá em breve.
Esse assunto é bem delicado (vulgo bad), mas precisamos muito abordá-lo, principalmente porque a nossa, entre parênteses, Carol é uma pessoa muito família. Acho que já deu para notar.
Enfim, logo voltaremos!
Bjs!
Comentar este capítulo:
Sem comentários
Deixe seu comentário sobre a capitulo usando seu Facebook: