Capítulo 2
Melissa saiu de casa para trabalhar no horário de sempre. Pensou em tirar o dia de folga, mas precisava acertar algumas coisas na academia, e não seria justo deixar seus alunos da primeira turma sem aula. Por esse motivo chegou ao trabalho de forma estranha.
– Parece que alguém enfiou o pé na jaca ontem! – Ingrid, sua estagiária disse sorrindo.
– Você? Nossa, achei que você não gostasse dessas coisas – respondeu um tanto quanto irritada.
– Chefinha, relaxa. Passou rápido o final de semana, não é! Mas logo chega o próximo e você se diverte mais.
– Você está muito engraçadinha! Melhor trabalharmos, ou então vou te expulsar da minha sala.
A garota levou as mãos aos lábios fazendo um x: – Não está mais aqui quem falou, licença.
Todo esse mau humor tinha nome e 1,68 m de altura, ela estava pensando em Valentina, ouviu a porta ser aberta e foi dizendo sem nem olhar para trás:
– Se voltou para continuar me enchendo, melhor saber que não estou para brincadeiras agora.
– Que bicho te mordeu mulher?
Reconheceu a voz de Olivia e perguntou de forma imediata com um sorriso surgindo em seus lábios: – Ela também veio com você?
– Bom dia para você também! De quem está falando mesmo?
– Não seja boba, sabe bem de quem estou falando!
– Se não percebeu, ainda estou sonolenta. E só vim treinar agora porque hoje entro mais cedo no hospital.
– Liv, estou falando sério. Até sonhar com ela essa noite eu sonhei, me ajuda.
Olivia passou a mão no rosto irritada, mas do que era, ou melhor, de quem Melissa estava falando? Mania de falar em código.
– Cara, eu estou com sono e levemente ressaqueada, nem sei se essa palavra existe, mas sim, ou você desenha o que está querendo me dizer, ou então vamos passar uma hora aqui com você falando, falando e falando e eu fingindo entender.
– Que lerdeza! Estou falando da Tina! – gritou.
– Bom dia, atrapalho? – um rapaz chegou na porta acompanhado por outro.
A professora levou a mão ao rosto respirando fundo antes de fazer sinal para que entrassem.
Olívia que só então começava a entender o que possivelmente tinha acontecido no dia anterior, disse em seu ouvido: – Grita mais, prof. Ninguém ouviu ainda – e foi gargalhando para o seu lugar.
A vontade de Mel era dar uma boa resposta a amiga, mas para a sorte da outra a turma já estava mais que completa, afinal, além da própria Olivia, tinham ali mais dois alunos que não eram alunos fixos daquele horário.
Apesar de muito inquieta, Mel se concentrou no seu trabalho e aplicou todo o treino da melhor forma possível, ela tinha fama de ser a professora mais linha dura da academia, já ganhou vários prêmios na categoria Crossfit, o que dava ainda mais visibilidade para a academia onde trabalhava, e era sócia a pouco menos de um ano.
Tinha uma vida confortável, não era muito de balada, nem farras excessivas, apesar de não abrir mão de um bom chopp com uma boa companhia. Nunca namorou sério, sempre correu de relacionamentos, quando via que as suas “companhias” estavam fazendo cobranças demais, tratava de dispensa-las sem pensar duas vezes.
Mas o destino estava lhe pregando uma peça, e ao que parece, esse status imutável de solteira, está prestes a mudar. Valentina povoa seus pensamentos dia sim, e o outro também. Por mais que tente chamar a atenção da moça parece que as coisas não saem muito como planeja, e assim passou a narrar para Olivia tudo o que tinha acontecido no dia anterior, inclusive a dúvida dela sobre ter sido vista aos beijos ou não com a moça que esqueceu o nome.
– Você é muito lerda! Eu falei para ter cuidado. A Tina é muito observadora, ela não vai abrir a guarda fácil para você.
– O que foi que eu fiz para merecer isso?
– Anjinho! Para de charminho, isso não combina contigo. Você não deveria ter ficado com a criatura, com a Tina lá. Mas não pode ver um rabo de saia, daí deu nisso.
– Me ajuda, eu preciso saber se ela viu mesmo.
– Não precisa. Desencana disso. Deixa eu te contar uma coisa que pesa ainda mais no seu currículo. Aqui na academia o boato que corre é que você – fez aspas com a mão – “pega geral”.
– Que coisa ridícula. Não é assim.
– Não é assim porque o termo é totalmente vulgar, eu presumo, mas que você não para com uma mulher só, isso é totalmente verdade.
– Você me julga sem nem me conhecer!
A única reação de Liv ao ouvir isso foi rir, riu de chorar, enquanto Mel fazia caras e bocas na sua frente. Vendo que ela não ia parar de rir, disse irritada:
– Vai me ajudar ou não?
– Tentei te ajudar, mas, você não se ajudou.
– Não vi ajuda nenhum da sua parte.
– Caso não saiba, fui euzinha – apontou para si de um modo afetado – que incentivei a sua crush a ir para a sua festinha ontem.
– Obrigada por isso, mas não surtiu o efeito que eu esperava.
– Pode mudar de ideia, não pense que vai leva-la para a cama no primeiro passeio. Tire o seu cavalinho da chuva e comece a pensar em como fazer para se comportar perto dela.
– O que quer dizer?
– Quer saber uma coisa que a Tina detesta?
– Quero, talvez assim eu consiga ao menos um abraço mais demorado.
– Que carinha mais fofa, – apertou as bochechas da mulher a sua frente – o abraço você já conseguiu, ao menos ela não te afastou sutilmente, né. Se deixou ser abraçada por você. Mas vamos ao que realmente importa. Ela detesta mulheres assim como você.
– O que? – gritou, fazendo a outra levar as mãos aos ouvidos.
– Louca! Não grita. Com essa vou até embora.
– Espera, – segurou a braço da moça pedindo aflita – termina de falar.
– Aff, não precisa chorar. Ela não te detesta como pessoa, e sim o seu comportamento como lésbica, afinal, segundo ela, têm mulheres que reclamam muito de homens que agem da mesma forma que você, mas, pior que isso, é uma lésbica se comportar da mesma forma que certos homens, e muitas mulheres a endeusarem por isso. Entendeu o que quis dizer? Pareceu um pouco confuso para mim, ainda estou com sono.
– Entendi sim. Melhor seria não ter entendido. Acabo de constatar que me interessei pela mulher errada. Além de não me dar um grama de ousadia, ela ainda abomina a forma como me comporto enquanto uma mulher que tem atração física e carnal, digamos assim, por outras mulheres. Fiquei triste agora.
– Você ainda tem tempo de mudar isso. E vou logo avisando, para de me encher com esse assunto. Agora você está com a faca e o queijo na mão, decida se vai usá-los ou não. – pegou a mochila – Outra coisa, se você por acaso brincar com o coração da minha amiga, eu farei questão de te deixar sem sentir prazer pelo resto da vida.
– Impossível!
– Quer pagar para ver?! Não esqueça que sou sua ginecologista há anos.
– Para de falar besteira, mulher! – bateu três vezes no armário de madeira que tinha ao lado – Sua lunática.
– Está avisada, prof. Cuidado com o que fará em relação a ela daqui para frente. Agora, tchauzinho. Vou trabalhar daqui a pouco. – beijou o rosto da professora e saiu sorrindo.
Mel ainda ficou pensando por alguns minutos no que Liv tinha dito, será que era mesmo possível? Balançou a cabeça afastando aqueles pensamentos no momento em que os alunos da próxima aula começaram a chegar. Se distraiu com eles, e assim seguiu o dia, esperando ansiosa pela aula das 20h.
Não muito longe dali, Valentina trabalhava, entre uma cirurgia e outra só pensava em ir para casa. A noite anterior tinha sido intensa e cansativa para ela, no pouco tempo em que cochilou acabou sonhando com o acidente que quase lhe custou a vida, ficou alguns dias em coma, teve algumas costelas fraturadas, ralou boa parte do corpo no asfalto e perdeu um rim. Sempre teve total consciência de que saíra praticamente ilesa, a comparar com a amiga/irmã que estava em sua garupa e veio a óbito no local, sem ter tido chances de ser socorrida.
O acidente tinha sido um ano antes de concluir a faculdade de Medicina, que atrasou, por conta do mesmo. Assim que recebeu alta decidiu se afastar, passou um ano longe de tudo e todos, enfurnada em uma cabana no meio do mato em uma zona rural, onde o pai nasceu. As únicas pessoas que ela aceitava receber, eram os pais e o fisioterapeuta, que era seu padrinho.
Toda vez que sonhava com Margô ficava inquieta, era como se a amiga lhe pedisse socorro, e ainda assim ela vendo o que estava prestes a acontecer, não pudesse ajudar. De certo modo ela sempre se culpou pelo acidente, afinal, voltavam de moto de uma festa em uma cidade vizinha as tantas da noite quando tudo aconteceu. Ela tinha parado de beber no meio da tarde, e insistiu para que a outra fizesse o mesmo, já que voltariam para casa de moto. Margô não quis ouvi-la e entornou todas com os colegas de sala. Na hora de sair, Tina não queria pegar a estrada com ela no estado em que estava, brigaram, e ela disse que se a médica não a acompanhasse, iria pilotando sozinha.
Para evitar uma catástrofe, Tina cedeu e iniciaram a rápida viagem, em uma curva fechada, um caminhão, que entrou na contramão para desviar de um cervo, bateu de frente na moto em que elas estavam. Com o impacto Margô voo, caindo sem vida no asfalto.
Mesmo com ferimentos graves, o corpo de Valentina não fora arremessado tão distante, o que a fez conseguir resistir a espera da ambulância. Desde então ela abomina bebidas alcoólicas e não viaja mais a noite, passou anos sem encostar em motos, mas sua paixão por elas falou mais alto, e hoje em dia já percorre pequenas distâncias com elas.
– Vai para casa?
– O que? – se distraiu olhando para uma foto da sua turma de faculdade que conservava sobre a mesa – Não te ouvi.
– Percebi que passou o dia distraída hoje. Perguntei se vai para casa daqui?
– Vou sim. Estou sem cabeça para treinar hoje. O plantão me esgotou.
– Tem certeza que foi só isso?
– Algum problema, Liv?
– Não, nenhum! Só te achei estranha, tá aérea.
– Lembranças que vem e vão, não se preocupa, estou bem.
– Tem certeza? Saio em uma hora, me espera e jantamos juntas.
– Não precisa, muito obrigada, fica para a próxima.
Se despediu da amiga com um abraço e seguiu para o estacionamento, entrou no carro e fechou os olhos, mais uma vez viu flashes do seu acidente, respirou fundo e encostou a cabeça no banco. Ficou alguns minutos assim olhando para o nada, até conseguir reagir e seguir o seu caminho para casa.
Fim do capítulo
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Mille
Em: 21/10/2018
Olá Lily
Mel terá que mudar bastante para conquistar a Tina.
E que triste o acidente da Valentina, eu acho que a irmã da Mel vai dar um empurrão nas duas.
Bjus e até o próximo capítulo
Resposta do autor:
Bom dia, Mille!
Põe mudar nisso viu, a mulher só dá bola fora, rsrs.
Nesse caso, a Mel vai precisar da ajudar de um "batalhão" para poder chegar até a Tina, a coisa não tá fácil pra ela não viu.
Se cuida, até mais. Bjs!

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