Capítulo 18
Augusto deu um mergulho e ficou submerso até sentir que seus pulmões iam estourar. Voltou à superfície e inspirou profundamente e passou a mão no rosto para tirar o excesso de água. Apertou os olhos e mirou a casa ao longe. Uma grande interrogação se formou em seu cérebro devido à forma abrupta como Júlia se afastou quando percebeu a sua aproximação. Havia visto ao longe a amante de seu falecido futuro sogro em pé ao lado da espreguiçadeira na qual sua noiva estava sentada. Não pode ver com clareza o que elas estavam fazendo, nem ouvir o que estavam conversando, mas percebeu que estavam bastante próximas. Quando anunciou a sua presença, ficou intrigado e chocado com a reação de Júlia, pois, apesar de não simpatizar com ela, não podia deixar de reconhecer que ela sempre se comportou de forma muito educada, discreta e reservada. A maneira como ela se afastou de Sylvia praguejando, pegando o filho pela mão e caminhando a passos rápidos o deixou deveras perplexo. "O que será que está acontecendo?" Perguntou-se.
Deu outro mergulho e decidiu observar de perto a mulher que ele julgava como uma prostituta e aproveitadora.
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Júlia terminou de dar banho em Antenor, sentindo o corpo ainda trêmulo. O susto que levou quando ouviu a voz de Augusto, por pouco não a fez cair dura lá mesmo na área da piscina. Recriminava-se por não ter resistido e se deixado envolver pelos encantos de Sylvia e os apelos do seu corpo. Respirou fundo e se convenceu ainda mais de que a decisão em se manter afastada da enteada, pelo menos enquanto aquele homem estivesse presente naquela casa, foi a decisão mais acertada que havia tomado.
Terminou de vestir a roupa no filho, deixou-o no tapete com uns brinquedos e foi tomar o seu banho.
-- Filhinho espere a mamãe tomar o banho dela. Não saia do quarto, certo?
-- Ta bom, mamãe! Antenor não vai sair.
Beijou-o na cabecinha e entrou no banheiro. Preferiu um banho frio. O toque da água a fez tremer.
Em poucos minutos saiu do banheiro enrolada na toalha e ficou surpresa ao deparar com Sylvia sentada ao lado de Antenor.
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Quando a vi saindo do banheiro enrolada na toalha, sabendo-a nua por baixo, só não a agarrei em respeito ao meu irmãozinho que brincava inocente ali no tapete. Olhei-a de cima a baixo e meu corpo todo doeu de excitação ao imaginar aquela toalha caindo.
Ela me ignorou e se dirigiu ao closet. Eu a segui. Ela, de imediato, não me percebeu. Abriu a gaveta do armário, pegou uma calcinha, tirou a toalha e pôs-se a vestir a peça íntima. Eu suspirei e quase morro ao ver aquele corpo escultural inteiramente nu, ali, ao meu alcance. Acredito que meu suspiro tenha saído alto, pois só então ela me percebeu. Assustou-se.
-- Parece que hoje eu vou acabar sofrendo um enfarte! Pode me deixar vestir minha roupa em paz? Já basta o susto que levei na piscina!
-- Calma, ele não percebeu nada!
-- Mas podia ter percebido. Por pouco não nos flagrou!
Os meus olhos corriam pelo seu corpo.
-- Júlia, deixe a porta aberta essa noite. Eu não estou mais aguentando de saudades de você. Por favor! Ou podemos ir para a cidade, para meu apartamento.
Terminou de vestir a roupa, uma blusinha de malha azul clara e uma calça branca de algodão, se virou me encarando bem dentro dos olhos e esclareceu:
-- A minha decisão será mantida. Só voltarei a dormir com você quando esse seu noivinho não estiver aqui, ou melhor, quando você não estiver mais envolvida com ele. É melhor assim.
-- Mas Júlia...
-- Pode me chamar de cafona, de ultrapassada, mas eu não me sinto bem nessa posição clandestina na sua vida, Sylvia. Ou eu tenho você totalmente ou não tenho de jeito nenhum.
-- Eu... Mas veja bem...
-- Eu não vou me contentar em ser sua amante. Fui de seu pai, mas contra a minha vontade. Fui forçada pelas circunstâncias, você sabe disso.
-- Quer dizer que enquanto eu estiver com Augusto, nós não...
-- Isso mesmo!
-- Mas antes você disse que só no caso de ele estar sob o mesmo teto...
-- Disse, realmente, mas ainda assim não está certo. A traição continua. Não quero ser responsável por você trair seu noivo, ou seja lá o que ele for seu.
Eu soprei o ar dos pulmões, olhei para o teto e girei os olhos com impaciência.
-- Você está tornando as coisas difíceis para mim, Júlia. Será que não percebe isso?
Ela me olhou e esboçou um sorriso um tanto sarcástico que eu jamais havia visto em seus lábios.
-- Eu? Eu estou dificultando as coisas para você? Não me faça rir, Sylvia!
-- Claro que está! Dificultando para nós duas, pois sei que você também está sentindo a minha falta.
Ela terminou de pentear os cabelos, passou umas gotinhas de perfume e foi em direção ao quarto sendo seguida por mim. Seguiu para a antessala e se sentou numa poltrona. Eu fiquei em pé a sua frente.
-- Está sendo difícil para mim, sim. Você não imagina como! Não faz ideia da vontade que eu estou sentindo de lhe abraçar, de lhe beijar, de sentir o calor do seu corpo, o cheiro da sua pele. Mas mesmo assim, com todo esse sofrimento, com toda essa saudade, a minha decisão será mantida.
-- Eu não posso acreditar que estou ouvindo um absurdo desses! Se eu o amasse, aí sim, seria traição, mas não é o caso.
-- Sylvia, escute bem! Você, amando esse seu noivinho ou não, fez um compromisso com ele, então será traição sim.
-- Meu Deus, eu nunca imaginei que as coisas fossem chegar a esse ponto!
Agachei-me aos pés dela e tomei suas mãos entre as minhas.
-- Por favor! Pense bem no que você está fazendo! Poderemos estar mortas amanhã. Vamos aproveitar o tempo que temos. Não nos prive de viver esse amor, por causa de um tabu idiota.
Ela semicerrou os olhos e ficou me olhando. Depois de alguns segundos curvou o corpo e me acariciou a face com bastante leveza. Percorreu as linhas do meu rosto com os dedos, depois com a voz carregada de ternura e excitação, proferiu:
-- Está sendo insuportável para mim ficar longe de você, pode crer. Mas é o melhor que temos a fazer, meu amor! Resolva logo essa situação com esse homem. Case-se logo e peça o desquite, ou rompa esse noivado de faz de conta.
Eu me aproximei mais e beijei-lhe os lábios. Ela tentou se esquivar, mas não conseguiu. Porém, depois de mais alguns segundos quando o beijo se aprofundou ela recuou, à custa de um esforço sobre humano.
-- Eu já disse: vou lhe esperar o tempo que for necessário. Toda a minha vida, se for preciso. Mas nunca mais me toque antes de se livrar dessa saia justa na qual você mesma se colocou.
Eu fiquei sem graça. Ela me disse todas aquelas palavras de forma delicada e com a mesma voz suave de sempre, mas me doeu profundamente o impacto das palavras. Senti uma agonia no meu peito: uma mistura de conforto e desespero. Conforto, por saber-me amada por ela e desespero, por não poder ter a mulher da minha vida nos meus braços. Era terrível a minha situação. Decidi que naquela noite mesmo chamaria Augusto para uma conversa séria. Iria chantageá-lo: ou ele iria embora e retornasse somente na ocasião do casamento ou eu romperia o noivado. Se ele não aceitasse a minha decisão, que se resolvesse lá com o pai dele ou que arrumasse outra noiva.
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Encontrei Augusto no meu escritório, sentado próximo à janela mamando no seu inseparável charuto. Ao me ver, ele sorriu e estendeu a mão para mim. Não me aproximei, apenas me sentei num sofá.
-- Sylvia, é surpreendente você ter vindo me procurar! Imagino que tenha sido isso que veio fazer aqui! Ou eu estou querendo demais, sonhando acordado?
-- Guarde suas ironias para você mesmo, Augusto. Mas está certo num ponto: vim procurar por você, porque quero ter uma conversa séria, definitiva para essa nossa... essa nossa relação, se é que pode chamar esse nosso acordo de relação.
Ele se empertigou na poltrona e, depois de uma forte tragada no charuto, me alfinetou.
-- Realmente minha noiva, o que existe entre nós é difícil de ser denominado. Eu também, apesar de lhe amar e desejar profundamente que esse noivado fosse normal, não sei se podemos chamar esse... esse nosso envolvimento de relação.
-- Tudo bem. Nomeie como você quiser. O que tenho a lhe dizer é o seguinte: Eu quero que você volte para Portugal o mais rápido possível e...
Ele se virou de chofre para mim e arregalou os olhos.
-- Você só pode estar brincando! Por que essa conversa de novo? Quem está colocando essa ideia tola em sua cabeça?
-- Não seja ridículo, Augusto! Eu sou mulher de me levar pelos outros? Vamos marcar a data desse casamento para início de fevereiro e quero que você vá para sua casa e só retorne aqui para assinar os papéis.
Se fosse possível eu me casaria logo no dia seguinte e me separaria em seguida, mas tinha tanto trabalho na empresa, tantas coisas a serem resolvidas, uma vez que o final do ano estava se aproximando, que não podia me dar ao luxo de me livrar logo desse fardo. Se me casasse logo, ele ia ficar grudado em mim e eu iria acabar tendo um enfarte ou um derrame. O mais certo seria mantê-lo longe o mais rápido possível. Quanto a Júlia, com ele fora do país, seria mais fácil convencê-la a voltar para os meus braços.
Ele ficou fora de si. Levantou-se abruptamente da poltrona e se aproximou de mim. Sentou-se ao meu lado e me segurou pelos ombros com força.
-- Está maluca? Como acha que vou aguentar ficar tanto tempo longe de você? Não acredito que estou ouvindo isso!
-- Tenho muito trabalho na empresa, Augusto. O final do ano está se aproximando, e, nesse período, o trabalho se avoluma em demasia. E com você aqui, eu não consigo trabalhar em paz.
-- Eu... eu posso lhe ajudar. É só você me dizer o que tenho que fazer...
Disse suavizando mais o tom de voz.
-- Eu quero que você parta no mais tardar segunda-feira, depois de amanhã. E não venha com essa história de que você pode me ajudar. Eu tenho plena consciência de que você não sabe fazer nada Augusto!
-- Eu estou trabalhando na empresa do meu pai e...
-- Está? Então o que ainda está fazendo aqui? Você faz de conta que trabalha. Engana a si próprio e acredita que engana sua família. E, além disso... -- Estava fazendo o possível para controlar a irritação que crescia dentro de mim -- Além disso, você fica em cima de mim o tempo todo. Você é muito grudento. Não me deixa respirar!
Ele largou os meus ombros, levantou-se dando largas passadas pelo cômodo e começou a gargalhar.
-- Não lhe deixo respirar! Como tem coragem de dizer que eu fico em cima de você, que eu fico grudado em você? Passo mais tempo longe! Morro de saudades e quando venho lhe ver, você simplesmente me ignora! Pensa que não percebo como faz tudo para ficar longe de mim?
Parou na minha frente e ficou me olhando com a respiração ofegante.
Mantive-me calada para controlar minha irritação e deixá-lo dizer tudo o queria logo de uma vez, pois se eu fosse interrompê-lo, seria pior. Era melhor deixá-lo espernear.
Colocando o dedo em riste, ele retomou.
-- Primeiro começou me dando sugestões para correr as praias nordestinas, depois sugeriu que eu retornasse ao meu país e agora, exige que eu faça isso! Quer realmente me ver pelas costas!
Continuei calada.
-- Alguém colocou essas ideias ridículas na sua cabeça!
Começou novamente a girar pelo escritório em largas passadas, depois parou de repente.
-- Já sei! Foi aquela prostitutazinha barata que andou lhe enchendo os ouvidos. É! É isso! Ela quer me ver longe daqui para ficar mais a vontade e se sentir dona de tudo! -- Sua respiração começou a ficar mais agitada e alta -- É isso! Ela quer me manter longe e, quem sabe, lhe convencer a me deixar, para que o filho bastardinho se torne o seu único herdeiro.
Eu fiquei cega ao ouvi-lo dizer aquilo. Levantei-me, pus-me na frente dele e, com a voz baixa e entrecortada de raiva, pedi.
-- Repita o que você disse! Repita!
Ele sorriu com sarcasmo e repetiu.
-- Aquela prostituta, aquela amantezi...
Esbofeteei-o com todas as minhas forças. O bofete foi tão forte que ele cambaleou. Levou a mão no rosto e me olhou assustado e incrédulo.
-- Você... você me bateu, porque... porque eu chamei aquela...
-- Não ouse! Não ouse repetir!
-- Você está louca! Ela virou a sua cabeça contra mim!
Falou se debulhando em lágrimas, num choro de raiva, orgulho ferido e auto piedade.
-- Arrume suas coisas e suma da minha casa! Só volte aqui para assinar os papéis!
-- Espere...! Vamos conversar... Eu...
-- Já decidi! Não me force a mudar de ideia! Você não imagina como eu estou louca para romper com minha palavra dada! Então...
Ele emudeceu e ficou me olhando. No seu olhar eu vi um brilho que nunca havia visto antes: Ódio. Naquele momento ele estava me odiando. Acredito que o seu orgulho de macho, de menino mimado, foi ferido como nunca, até então. Ele estava se sentindo humilhado. Antes de deixar o escritório eu lhe sorri imaginando que ele não fosse capaz de fazer nada, mas na verdade eu o subestimei.
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Os dias se passaram e Augusto retardava a sua ida para Portugal. Fez de tudo para chamar minha atenção. Fez-se de vítima, enfurnando-se no quarto alegando alguma doença. Ficou um ou dois dias sem comer, amuado e chorando pelos cantos da casa. Tentou até se aproximar de Júlia e Antenor, mas ela foi apenas educada com ele e manteve-se distante e fria como sempre. Apelou para tia Cláudia, que não se envolveu. Pediu a Antônio e Helena que falassem comigo. Suplicou a Lisa que me convencesse a mudar de ideia. - Minha secretária e amiga Lisa havia se mudado da chácara para um apartamento na cidade. Não tivemos nenhum desentendimento, mas ela sempre gostou de ter um cantinho só dela.
Augusto não obteve êxito em seu intento, pois ninguém se meteu na história. Eu me mantive firme no meu propósito e ignorei todos os seus artifícios que objetivavam fazer-me voltar atrás na minha decisão. Vendo, realmente, que seu teatro não estava surtindo efeito, depois de três semanas da nossa conversa, ele arrumou as malas. Já era a segunda quinzena de setembro e, atendendo ao seu pedido, eu o levei ao aeroporto.
-- Eu me submeto a sua vontade, Sylvia, aliás, como sempre fiz. - Olhou-me com os olhos cheios de lágrimas, mas não eram lágrimas de saudades, eram lágrimas de raiva e revolta.
-- Como eu já disse, retorne apenas em fevereiro...
-- O seu aniversário é no próximo mês, eu...
-- Augusto...!
-- Está certo!
Logo depois o seu voo foi anunciado. Ele tentou me abraçar. Eu não permiti e apenas lhe estendi a mão. Ele me olhou com raiva e ignorou minha mão. Deu-me as costas e seguiu para o portão de embarque.
Fiquei por alguns instantes vendo-o partir e um alivio tomou conta de mim. Senti como se uma carga, pelo menos por alguns meses, havia saído das minhas costas. Virei-me em direção à saída e segui para o carro.
Já no carro voltando para casa eu me permiti sorrir diante da expectativa de seduzir Júlia. Iria tentá-la ao máximo, e tinha certeza de que ela iria acabar cedendo com Augusto do outro lado do Atlântico.
Só que eu não imaginava que o pior ainda estava por vir. O meu noivo iria me dar o troco, mas só depois de muito tempo eu fui ter a certeza de que ele estava por traz do que aconteceu. Ele era tolo, mas nem tanto, e eu o subestimei demais.
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Augusto entrou em sua casa no bairro Alfama, o mais antigo de Lisboa. Entrou silenciosamente, sem alarde, pois não queria se deparar com o pai, no estado de abatimento e revolta em que se encontrava. Dirigiu-se ao seu quarto e se jogou na cama. Era madrugada, e, o que mais precisava naquele momento, era dormir em paz, descansar o corpo da viagem e se recompor.
Estava sentindo uma mágoa profunda de Sylvia. Ela, dessa vez, havia ultrapassado todos os limites. Ele era um Siqueira, portanto, não podia ser de forma nenhuma, humilhado. O nome de sua família era tão ou mais importante quanto o da dela. Não tinha tanto dinheiro quanto ela, é verdade, mas isso era um mero detalhe. O mais importante era a linhagem e, a de sua família, provinha de uma das mais antigas e nobres de Portugal.
Ele demorou a encontrar uma posição confortável para conciliar o sono. Mexeu, virou e, por fim, dormiu, pois apesar da angústia e revolta que lhe consumia por sentir-se tão preterido pela noiva, o seu cérebro estava por demais acostumado a priorizar, em primeiro lugar, o seu bem-estar. Dessa forma, Augusto fechou os olhos e caiu num abismo de sono profundo e sem sonhos.
Naquela segunda-feira acordaria por volta do meio da tarde e inventaria alguma outra desculpa, para justificar ao pai, a razão pela demora do casamento.
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Augusto acordou, arrumou-se e foi para a rua. Do mesmo jeito que entrou em casa, saiu sem falar com ninguém. O jardineiro, porém, o viu sair olhando para os lados, como quem teme ser visto. O homem abanou a cabeça e escondeu o sorriso, constatando que seu patrãozinho estava, mais uma vez, se esquivando de enfrentar o pai. Voltou sua atenção às folhas que desnudavam as árvores e se espalhavam pelo enorme jardim. Já havia enchido vários sacos, mas outras continuavam a se libertar dos galhos. O jardineiro não apreciava muito aquela estação. Ela o deprimia, fazia-o sentir-se vazio, oco por dentro. Seus olhos viviam em constante ansiedade à espera da primavera. Pegou mais uma pá de folhas, colocou no saco e esqueceu-se de Augusto.
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Augusto havia ligado para Cláudio, o seu melhor amigo, assim que acordou, e marcou para se encontrarem no café "A Brasileira", na Rua Garret, junto ao Largo do Chiado. Apesar de naquele momento, estar se desagradando com tudo o que se referia a Brasil, não podia abrir mão daquele café. Era um lugar aconchegante e especial, frequentado por artistas e escritores como Fernando Pessoa, desde 1905. Trazia em sua atmosfera um cheiro gostoso de antiguidade. Iriam permanecer naquele espaço o resto da tarde e parte da noite, pois precisava ter uma conversa longa com seu amigo. Necessitava desabafar com alguém e Cláudio era a pessoa mais indicada. Era sério, verdadeiro, sensato e justo. Mesmo se arriscando a ouvir o que não queria e receber muitos puxões de orelha, Augusto sentia necessidade da tranquilidade e equilíbrio do amigo. Cláudio, muitas vezes, fora a sua bússola e Augusto sempre se agarrava a ele como a uma tábua de salvação. As palavras sábias e bem colocadas daquele rapaz de estatura média, de cabelos pretos e pele clara, clareavam suas ideias e guiavam seus passos. Mas, muitas vezes, os conselhos do amigo se perdiam no percurso até os ouvidos de Augusto. Em Cláudio ele encontrou um amigo, um pai e um irmão.
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Sentou-se numa das mesas do fundo e pôs-se a esperar o amigo. Como ninguém é perfeito, Cláudio não fugia à regra: nunca fora pontual. Augusto acendeu um charuto e plantou os olhos na porta. Mais de meia hora depois ele o vê entrar e caminhar em sua direção com as passadas tranquilas de sempre, como se os ponteiros do relógio estivessem sempre a esperar por ele. Claudio em seus 33 anos, era assim: para ele o tempo era um mero detalhe. Vivia em função das coisas que mais gostava: ler, escrever, assistir e fazer crítica de teatro, namorar sem grandes compromissos; viver a vida sem as grandes preocupações que acometem a maioria das pessoas. Ele tinha tempo para observar, apreciar, medir e pesar os problemas existenciais do homem. Era um grande estudioso e pesquisador da alma humana, e, como de acordo com o emérito sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, estamos destinados a viver sempre na vizinhança e na companhia de outros, ele, Cláudio fazia das mesas dos cafés, das páginas dos livros, das ruas das cidades pelas quais passava, o seu rico, produtivo e saboroso laboratório. Em meio às xícaras de cafés e taças de vinho, em meio a linhas recheadas de palavras de diversos idiomas, ele retalhava, dissecava, compunha e recompunha a natureza humana.
Já havia publicado alguns livros onde construíra personagens, os mais simples e os mais complexos, fazendo, porém, o arremate: todo homem, a princípio, é igual em suas dores, força, anseios, medo e fraquezas. As diferenças foram criadas pelo próprio homem, para viver na ilusão de que é diverso do outro.
Cláudio nunca precisou trabalhar em toda a sua existência. Era filho único de uma família riquíssima. A sua herança lhe permitia viver essa e outras vidas sem levantar uma palha. Mas, apesar de todo o dinheiro que tinha, era simples e despojado. Ao passar pelas ruas, quem não o conhecia, nunca suspeitaria do quão rico era. As suas roupas eram comuns; os seus sapatos, gostava de usá-los até ficarem muito gastos. Dizia que quanto mais velhos mais confortáveis. Tinha verdadeira adoração pelos seus antigos casacos de couro: amava as pequenas linhas e rugas que se formavam no couro pelos anos de uso. Cláudio não era o milionário brincando de menino pobre. Ele era, pura e simplesmente, ele mesmo em toda sua essência, sem verniz, sem máscaras. Tinha amigos pobres e transitava em suas casas sem se sentir deslocado com as diferenças. Para ele, tanto fazia tomar café numa xícara de duralex, como numa de porcelana chinesa da época "Tang", "Song" e, por fim, "Ming". Era o que sempre dizia aos seus amigos esnobes.
Cláudio não se interessou em aprender a dirigir e, sempre que podia, dispensava motorista. Adorava andar a pé pelas ruas de Lisboa. O som produzido pelo simples atrito da sola do sapato ou da sandália no calçamento das ruas, lhe acariciava os ouvidos, e, enquanto caminhava, ele se deixava embalar por esse som, e sua mente viajava e criava novos personagens para novas histórias.
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Augusto se levantou com a aproximação do amigo. Apertou-o num amplexo caloroso e Cláudio grudou-se a ele como um polvo fixando seus tentáculos. Adorava apertar Augusto, pois sabia que ele não suportava essas manifestações calorosas de amigos em público. Dizia que não ficava bem, não era elegante.
-- Estava com saudades de você, meu amigo! -- Confessou Cláudio sentando-se numa cadeira e ficando de frente para Augusto.
-- Eu também! - Augusto sorriu e sentiu como era bom estar ali na companhia dele. A sensação de proteção e segurança lhe aqueceu o peito, mesmo sabendo que suas orelhas iriam ganhar alguns centímetros a mais.
-- Você está corado! Está com uma cor bonita. Andou indo às praias?
Augusto meneou a cabeça.
-- Não. Não dessa vez. Tomei sol apenas na piscina da casa de Sylvia.
Cláudio deu um sorriso maroto e perguntou.
-- E como ela está? Continua linda, imagino!
O semblante de Augusto fechou-se e Cláudio percebeu.
-- Continua. Continua linda e fria como uma geleira! Não sei o que está acontecendo com ela. Anda muito estranha. Mais distante do que sempre foi. Está arredia demais.
-- Ela passou, nos últimos tempos, por uma situação tremenda, Augusto. Perdeu o pai de uma hora para a outra e teve que assumir o negócio da família, que não é pequeno! Não deve estar sendo fácil para uma jovem na idade dela. Já era madura e teve que amadurecer mais ainda e de forma dolorosa.
-- Mas isso não justifica o tratamento que tem me dispensado desde que se mudou para o Brasil. Eu sou o noivo dela, Cláudio! Mereço consideração! Mereço amor!
Cláudio pediu um café para o garçom que se aproximou e depois se virou novamente para o amigo.
-- Você pode acusar Sylvia do que quiser, menos de falta de consideração por você. Esqueceu-se das circunstâncias do seu noivado?
-- Mas ela não ficou minha noiva apenas porque meu pai ameaçou me deserdar! Ela me amava, me ama!
-- Augusto, ela pode até ter se enganado achando que realmente queria se casar com você, constituir uma família...
-- Você está querendo me dizer que ela não gosta mais de mim, que não me ama mais? -- Seus olhos cresceram e se fixaram mais no amigo.
Cláudio bebericou o café.
-- Realmente o café brasileiro é o melhor do mundo, e olhe que eu sou um homem viajado!
-- Diga-me, Cláudio! Você acha que ela não me ama mais? Meu irmão suspeita que ela me traia, mas eu não acredito nisso. Fiquei cismado, é verdade, mas não vi nenhum homem a rondando.
Cláudio apertou os olhos e ficou observando-o. Gostava demais de Augusto, era o irmão que não teve. Sentia necessidade de protegê-lo, e sempre fazia isso, mas o egocentrismo dele era uma coisa que o deixava perplexo. Mesmo compreendendo grandemente a natureza humana, às vezes se enervava com a estupidez, com a cegueira do amigo.
-- Seu irmão foi leviano ao lhe dizer isso! Ele não tinha esse direito!
Cláudio já teve inúmeras oportunidades de ver Sylvia em companhia de algumas mulheres, principalmente de Emanuelle, e a tensão de sensualidade que percebeu entre elas era, até certo ponto, palpável. Em muitas dessas ocasiões chegou a sentir pena de Augusto, não que elas demonstrassem ostensivamente o nível de intimidade que havia, mas em pequenos gestos despretensiosos, em rápidos e furtivos olhares, em doces sorrisos era possível perceber as insinuações e promessas. E o seu amigo não enxergava nada, porque naquela cabecinha fechada, ele só via a si próprio.
-- Diga-me meu amigo, com toda a sinceridade, você acha que ela não me ama mais?
Cláudio olhou-o dentro dos olhos por alguns segundos:
-- Você já parou para se perguntar se você a ama? Se já a amou algum dia?
Ele soltou uma risada.
-- Já vem você com esses questionamentos sem sentido. Como pode me perguntar uma coisa dessas, Cláudio? Eu sou louco por aquela mulher.
-- Mesmo? Acredito mais que você seja louco pela tranquilidade e vida confortável que terá se se casar com ela.
-- Mais uma teoria maluca sua. Eu também tenho dinheiro. Não estou com Sylvia por interesse.
Cláudio sorriu e tomou mais um gole de café.
-- Augusto, Augusto! Às vezes tenho vontade de partir seu crânio e estudar seu cérebro!
Augusto fechou a cara, visivelmente amuado e deixou os olhos se perderem pelo ambiente. Cláudio sorriu e continuou chamando-o à realidade.
-- Casar-se com Sylvia é um grande negócio, meu caro. O seu pai não é tolo. Os negócios dela expandem-se pelo mundo, os dele se restringem apenas a Portugal e Espanha.
Augusto continuou calado.
-- Ele, além de conhecer a conta bancária, percebeu a retidão de caráter dela, a nobreza de coração e tratou de inculcar nessa sua cabecinha de bagre, que você sempre foi apaixonado por ela. E você achou muito cômodo e muito oportuno acreditar nisso.
-- Rapaz, quem sabe dos meus sentimentos sou eu! Quem é você para falar assim de mim! Deu para ler pensamentos agora?
Cláudio meneou a cabeça numa constatação de que suas palavras não surtiriam grandes efeitos, mas ele acreditava no velho ditado: "água mole em pedra dura, tanto bate até que fura".
-- Você se aproximou de Sylvia por achá-la bonita, atraente, claro, mas principalmente para mostrar a sua família que era capaz de namorar uma moça mais rica e mais inteligente do que as esposas e namoradas dos seus irmãos. Estava tão desesperado para esfregar isso na cara deles, que se deixou, mais uma vez, manipular por seu pai.
-- Cláudio, você bebeu hoje? Andou usando alguma droga?
Sem ter condições de argumentar com o amigo, se agarrava a indagações evasivas.
-- Por sempre pensar somente em si, não parou um segundo para perceber que estava usando Sylvia.
Augusto voltou os olhos para o amigo e Cláudio viu o brilho provocado pelas lágrimas que se formavam.
-- Você não tem o direito de falar assim comigo, Cláudio! Você está sendo cruel!
-- Não, Augusto. Estou sendo realista.
-- Eu jamais usaria Sylvia! Eu a amo.
-- Eu sei que você gosta dela, tem carinho, mas amor, amor de verdade, você só tem por você mesmo! Eu, por exemplo: você ainda me conserva como amigo, por pura conveniência e comodidade. -- Cláudio sabia que estava sendo duro com ele, mas achava que era necessário -- Todas as pessoas necessitam, em algum momento da existência, se ver de forma nua e crua, e eu lhe dispo Augusto, tiro todas as suas roupas, todas as suas indumentárias. Eu lhe mostro, para você mesmo, como você é: nu, cru, sem máscaras. E você, mesmo esperneando, precisa disso.
-- Hoje você está ligadão, Cláudio! O que foi LSD ou heroína?
-- Você sabe que não consumo drogas.
Augusto esboçou um sorriso de esgar e acendeu outro charuto.
-- Você já leu A arte de insultar, de Schopenhauer?
-- Eu não tenho tendência a ser pessimista e, pelo que sei, para esse Arthur, o mundo é uma eterna dor.
-- Tem um trecho desse livro que se encaixa perfeitamente com o seu jeito de ser Augusto. Vou dizê-lo para você.
-- Se for muito grande, nem comece. Estou sem paciência.
-- Não. Não é grande!
-- Não sei como consegue gravar tudo o que lê.
-- você sabe que tenho memória fotográfica. Vamos lá. Preste atenção:
" O Homem - Um Ser Egoísta
O motor principal e fundamental no homem, bem como nos animais, é o egoísmo, ou seja, o impulso à existência e ao bem-estar. [...] Na verdade, tanto nos animais quanto nos seres humanos, o egoísmo chega a ser idêntico, pois em ambos une-se perfeitamente ao seu âmago e à sua essência.
Desse modo, todas as acções dos homens e dos animais surgem, em regra, do egoísmo, e a ele também se atribui sempre a tentativa de explicar uma determinada acção. Nas suas acções baseia-se também, em geral, o cálculo de todos os meios pelos quais procura-se dirigir os seres humanos a um objectivo. Por natureza, o egoísmo é ilimitado: o homem quer conservar a sua existência utilizando qualquer meio ao seu alcance, quer ficar totalmente livre das dores que também incluem a falta e a privação, quer a maior quantidade possível de bem-estar e todo o prazer de que for capaz, e chega até mesmo a tentar desenvolver em si mesmo, quando possível, novas capacidades de deleite. Tudo o que se opõe ao ímpeto do seu egoísmo provoca o seu mau humor, a sua ira e o seu ódio: ele tentará aniquilá-lo como a um inimigo. Quer possivelmente desfrutar de tudo e possuir tudo; mas, como isso é impossível, quer, pelo menos, dominar tudo: ‘Tudo para mim e nada para os outros" é o seu lema. O egoísmo é gigantesco: ele rege o mundo.'"
Augusto, depois que Cláudio finalizou, ergueu a mão para o garçom e pediu um pãozinho e mais café, só que dessa vez, pediu para acrescentar um pouco de leite. Precisava se concentrar em alguma coisa, pelo menos por alguns minutos, que não fosse em Cláudio. Não estava com a menor disposição de discutir aquela maluquice de Schopenhauer. "Ele egoísta! Só mesmo na cabeça de Cláudio! Ele possuía a sua dose de egoísmo, como todo ser humano possui. Nada absurdamente gritante, como lhe queria fazer crer, seu amigo. Gostava de ouvir seus conselhos, mas não um absurdo daqueles." Ruminou com seus botões.
O seu pedido chegou logo e ele avançou no pão com certa gana, pois urgia espantar de seu cérebro as palavras citadas por Cláudio.
-- Vejo que não almoçou, Augusto.
-- Não mesmo. A última coisa que comi foi no voo, um lanche leve e insosso.
Cláudio pôs-se a observá-lo devorar o pobre pão. Em poucos minutos, não restava nem um farelo sequer. Ele pediu outro e imediatamente o garçom trouxe. Cláudio não pode deixar de sorrir. Será que era fome mesmo ou mais uma tática para fugir do assunto? Pensou. Tinha certeza de que a citação entrou num ouvido de Augusto e saiu pelo outro. Aquelas palavras, ditas para ele, eram como pérolas aos porcos. Mas, mesmo sabendo disso, ele tinha esperança de que um dia seu amigo desviaria o olhar para algo mais, além do próprio umbigo.
De repente, Augusto parou de comer e virou-se para Cláudio.
-- Sylvia está estranha, muito estranha. E eu tenho quase certeza que é coisa da amante do finado Antenor.
-- O que o levou a pensar assim, Augusto? -- Cláudio sentiu a comichão da curiosidade. Mais uma personagem a desvendar: a amante do pai de Sylvia.
Augusto deu outra mordida no pão, tomou um gole do café, engoliu a mistura, limpou a boca no guardanapo.
-- Um tempo depois que o velho morreu, Sylvia e a tia dela, dona Cláudia - olhou para o amigo e deu um breve sorriso -- quase sua xará convidaram a prostitutazinha, a amante interesseira e o bastardinho para morarem lá na chácara com elas.
-- Verdade?
-- Absoluta! Eu estava lá, esqueceu-se? Eles já estão lá há alguns meses. E, não sei dizer como, mas tenho a impressão de que ela influencia Sylvia contra mim. Acho que ela me quer longe para que o bastardinho seja o único herdeiro.
-- Será que é isso mesmo, Augusto? É o comportamento dessa mulher que o faz pensar assim ou apenas ciúmes de sua parte?
-- Ciúmes? Claro que não! -- Augusto ergueu as sobrancelhas como a analisar o comportamento de Júlia. -- Tenho que admitir que ela é uma pessoa muito fina, muito educada, mas tenho certeza que isso faz parte do jogo. Uma prostituta de luxo tem que saber entrar e sair dos lugares, não é meu amigo?
-- Prostituta de luxo? Então deve ser muito bonita e ainda jovem! -- Cláudio sondava, pois, suas suspeitas já começavam a invadir a sua mente.
-- Linda! Perfeita! Exuberante! A maldita é dona de uma beleza suave e ao mesmo tempo extremamente sensual. -- Ele, parecendo esquecer-se dos ressentimentos, sorriu como se estivesse vendo o rosto de Júlia -- Os olhos dela, Cláudio, são lindos! De um azul profundo! Você olha e sente vontade de ficar olhando sempre. São ternos e profundos, hipnotizantes!
-- Nossa! Meu amigo! Queria conhecer essa mulher! -- Cláudio incentivou-o a falar mais -- E o corpo, como é?
Augusto sorriu novamente e fez o desenho no ar com as mãos.
-- Tudo no lugar, meu caro. Curvas perfeitas e generosas. Eu a vi de biquíni e quase enfarto. Só não me aproximei em respeito à Sylvia. -- gargalhou.
-- Ela e Sylvia se tornaram amigas?
-- Sim. Elas conversam bastante. Você sabe como Sylvia é: pura, ingênua. Não vê que a mulher é uma bandida oportunista.
-- Sei. -- Cláudio já havia entendido tudo. Olhou para Augusto mais uma vez, sorriu e pensou: " Ingênuo é você meu amigo, que nunca percebeu que sua noiva também aprecia mulheres e, é quase certo que esteja encantada com a madrasta".
-- Eu tenho que dar um jeito de tirar essa mulher de lá.
-- Como, Augusto? Ela não invadiu a casa, foi convidada. Não há nada que você possa fazer. E, talvez, ela não seja esse monstro que você está pintando.
-- De novo não, Cláudio! Nunca concorda comigo! Nunca me dar razão.
-- Calma. Só estou conjecturando.
-- Você não conhece essa mulher. Antenor só não se separou de Madeleine porque morreu antes. Ele ia largar a esposa para se casar com a amante! Teve um filho com ela, o bastardinho.
-- O seu futuro cunhado! -- Cláudio o alfinetou rindo alto.
Augusto franziu o cenho. Nunca havia pensado no menino como seu cunhado. Estranhou ouvir aquilo. Sacudiu a cabeça, como para expulsar o pensamento. Jamais! Jamais o teria na conta de cunhado. Ele seria sempre um bastardo inoportuno e inconveniente.
Depois de mais algumas horas de conversa, se despediram. Augusto levantou-se, jogou umas moedas sobre a mesa, olhou para Cláudio e disse:
-- Depois nos falamos. Já está tarde e ainda não vi meus pais depois que cheguei.
-- Eu vou ficar mais um pouco!
***************
Depois que Augusto foi embora, a situação entre mim e Júlia continuou a mesma ou melhor dizendo, piorava a cada dia. Ela mantinha-se inabalável na decisão de não se aproximar de mim. Eu estava morrendo de saudades. Estava sendo insuportável vê-la e não poder tocá-la. Com o passar dos dias, ela foi se distanciando mais ainda, pois quando conversava comigo, se revestia de uma tranquilidade como se nada estivesse acontecendo. Conversava comigo, como se estivesse conversando com tia Cláudia ou outra pessoa. Eu fui ficando, a cada dia, mais chocada, pois tinha quase certeza de que com o afastamento de Augusto, ela voltaria a se aproximar de mim.
Comecei a me sentir insegura quanto ao seu amor. Eu não conseguia, de forma alguma, manter aquela aparente tranquilidade. Dúvidas se avolumavam em minha cabeça: " será que ela realmente me ama? Como pode ficar tão tranquila enquanto eu me contorço de saudades? Como pode sorrir para mim, como se tivesse sorrindo para qualquer pessoa? Aquela velha ternura que transbordava dos seus olhos quando me olhava, continuava lá, intacta, mas fora isso, ela se mantinha distante.
Muitas vezes eu lhe perguntei o que estava acontecendo e ela dizia que não estava acontecendo nada e repetia o que eu não mais suportava ouvir: "não vou me envolver com você, enquanto não resolver sua situação com seu noivo". Eu me angustiava, me desesperava, não conseguia me concentrar no trabalho, não conseguia dormir direito. Eu me deitava e meu corpo ardia, clamando por ela. Minha mente vagava feito louca em busca de sua imagem, de sua voz, de seu perfume. O seu nome ressoava em cada canto do meu cérebro: Júlia! Júlia! Nome tão doce, tão suave! Só em pronunciá-lo, ainda que mentalmente, meu coração disparava e meu estômago se contraía.
O afastamento dela me fez ficar ainda mais doente de paixão. Quando vinha para casa no final do expediente, a expectativa de vê-la me provocava um intenso frio na barriga e moleza nas pernas. Entrava apressadamente em casa e percorria cômodo por cômodo a sua procura. Quando a via, a respiração faltava e as palavras negavam sua presença em minha boca. Não conseguia balbuciar nada, nem ao menos um cumprimento. Ela, então, levantava os olhos em minha direção e sorria. Sorria o maravilhoso e paralisante sorriso e derramava sobre mim o intenso azul do olhar. Eu sentia uma vontade louca de correr para ela, mas minhas pernas não me obedeciam, talvez pelo medo de ser, mais uma vez, rejeitada.
Numa sexta-feira de outubro, dia próximo ao meu aniversário, ela estava sentada ao alpendre nos fundos da casa, tocando violão enquanto tia Cláudia cantava e Antenor cochilava numa rede. Eu fiquei parada numa das portas da copa-cozinha que dava acesso àquele espaço, ouvindo-as. Como ela estava de costas para mim, demorou a me perceber. Era delicioso, inebriante vê-la tocar! Quando a via dedilhando o violão, ficava tão encantada, tão emocionada que meus olhos marejavam. Depois de longos minutos ela sentiu-se observada e voltou a cabeça na direção em que eu estava. Olhou-me e, depois de breves segundos, sorriu. Ao ver aquele rosto lindo com os olhos pousados em mim, aquele porte elegante esbanjando uma mescla de sensualidade e paz, eu mais uma vez estremeci e paralisei. O meu coração batia descompassado e na minha mente a súplica que não cessava: "Permita-me lhe amar, meu amor! Volte para mim!"
Tia Cláudia, vendo-me, tirou-me do estado de letargia.
-- Oi querida! Você chegou? Estou aqui cantando umas velhas canções com Júlia! Venha, aproxime-se!
Forcei as pernas que pesavam feito chumbo e ensaiei alguns passos na direção delas. Sentei-me numa cadeira de modo que ficasse de frente para ela. Os papéis haviam se invertido: antes era ela quem ficava nervosa na minha presença, agora era eu. Estava sem saber onde colocar as mãos, pois as mesmas ansiavam por deslizar em cada curva daquele corpo magnífico; ansiavam por si perderem por entre os fios daquela cabeleira negra e sedosa. Júlia! Júlia! Como é doce e doloroso amar você!
Eu me sentei e me pus a olhá-la. Não me incomodava o que tia Cláudia pensasse, uma vez que ela sabia do que acontecia entre nós. Minha tia ficou me observando, atentamente. Ela vinha percebendo o meu estado de espírito e estava preocupada. Eu, no entanto, me esquivava de lhe revelar o tormento pelo qual vinha passando. Mais alguns minutos em que o silêncio reinou quase que absoluto, ela se voltou para Júlia.
-- Vamos lá, Julinha, agora vou cantar Perfídia. Adoro essa música. --Sorriu para mim, pigarreou e começou a cantar.
Eu não conseguia olhar para mais nada, que não fosse para ela. Deleitava-me de prazer observando os dedos percorrendo as cordas do violão, os braços perfeitos com uma leve penugem; os cabelos caindo por sobre os ombros, o pescoço longo e suave; as pernas cruzadas, que se revelavam parcialmente por sob a saia hippie; os pés graciosos com as unhas bem-feitas num esmalte rosa clarinho, protegidos por uma leve sandália rasteira. Suspirei e pedi a Deus que me desse forças para suportar a dor que me estraçalhava.
Meus olhos deslizavam por ela, captando cada detalhe do seu corpo. Fixei os seus pés e, sem consegui controlar, comecei a me imaginar beijando-os delicada e vagarosamente; me vi suspendendo a sua saia e revelando aos meus lábios e dedos, as maravilhosas e perfeitas pernas. O meu corpo começou a esquentar e o calor, que teve início em minhas entranhas, era abrasador. Mordi os lábios, semicerrei os olhos e, esquecida dos demais, não percebi que os olhos de tia Cláudia estavam plantados em mim. Ali me deixei ficar despindo, em minha imaginação, aquela mulher que me tirava o sono, que cruelmente se negava a mim, depois de me ter permitido privar, experimentar e saborear as delícias dos seus segredos, da sua intimidade.
Júlia era viciante, vital, e com suas negativas, com sua recusa em me amar, era como um doce veneno que, a cada dia, me fazia sentir-me morrer.
************
Depois daquele fim de tarde embalado ao som de voz e violão, os dias transcorreram sem novidades. O mês de outubro chegou ao fim e eu me recusei, apesar da insistência de tia Cláudia, a comemorar o meu aniversário de 25 anos.
Eu continuava me rasgando de saudades de Júlia, enquanto ela se mostrava tranquila. Eu estava tão transtornada, que já estava realmente começando a acreditar que ela havia me esquecido. Que havia esquecido o amor que dizia sentir por mim. Era inconcebível para uma alma corroída de paixão e desejo como a minha, que uma pessoa poderia amar e conseguir ficar distante da pessoa amada, vivendo sob o mesmo teto. Eu não a via desesperada, angustiada, chorosa. Sempre que eu chegava do trabalho, me deparava com ela sempre calma, com o sorriso terno e aquela tranquilidade, que para mim, estava se tornando uma afronta.
Eu estava emagrecendo a olhos vistos e um dia desmaiei na empresa. Fui levada ao hospital e tomei soro. Pedi que não contassem a ninguém na minha casa. Não queria preocupar minha tia. O médico pediu uma bateria de exames e me puxou as orelhas.
-- Precisa trabalhar menos e comer mais, dona Sylvia! A senhora está fraca. Basta olhar para a senhora para ver que anda negligenciando a alimentação.
Eu não disse nada. Fechei os olhos e fingi dormir. Se ele pudesse me dar um remédio para o que realmente estava me afligindo... Depois de algumas horas em observação voltei para o escritório. Fui mais cedo para casa e passei a me esforçar para me alimentar melhor. Mas, como sempre fui de comer pouco, era uma tarefa quase que impossível me alimentar adequadamente.
Fiquei o resto da tarde e toda a noite no meu quarto. Tia Cláudia foi a minha procura.
Recostou-se na cabeceira da cama e sem dizer uma palavra me aconchegou em seus braços. Ficamos por intermináveis minutos em silêncio. Fui relaxando com os afagos que ela fazia em meus cabelos e acabei dormindo. Não sei quanto tempo depois abri os olhos e a encarei.
-- Tia, acho que dormi!
-- Dormiu sim, meu bem! Você estava precisando. Anda muito abatida!
Abraçou-me de novo e falou com a voz terna, o que me fez sentir segura, protegida. Nunca havíamos falado tão abertamente sobre o meu envolvimento com Julia, mas vendo como eu estava sofrendo, ela resolveu tomar a iniciativa.
-- Todo esse seu sofrimento vai passar, minha querida! Não faça nenhum julgamento precipitado sobre ela. Pois saiba que não é só você que está sofrendo.
Aquela notícia, de alguma forma, me deixou angustiada e uma espécie de raiva gritou em meu peito.
-- Eu não entendo tia, porque ela insiste em ser tão teimosa. Augusto está bem longe daqui. Que mal há em ficarmos juntas.
-- Meu amor, você tem que compreender que ela teve uma criação conservadora! Tenha paciência que tudo vai se resolver. Na verdade, a solução está em suas mãos, você sabe disso.
-- É. Eu sei! Eu poderia deixá-lo, romper esse noivado, mas tenho medo de que ele se mate. A senhora sabe que ele já tentou algumas vezes.
-- Minha filha! Augusto jamais tirará a própria vida! Esteja certa disso! Aquelas tentativas foram para chamar a atenção. Ele nunca tomaria uma caixa de remédio inteira.
-- Prefiro não me arriscar, tia. Não suportaria carregar uma culpa dessas. Vou me casar e pedir a separação, assim que ele receber a herança.
-- E aquele odioso do pai dele vai cumprir a palavra?
-- Só me caso depois que ver os papéis da doação dos bens.
Tia Cláudia me beijou a cabeça e anunciou, sem aceitar reclamação.
-- Vou pegar um lanchinho para você. Nem adianta dizer que está sem fome!
Ela saiu cantarolando uma canção do seu tempo de juventude e eu me acomodei melhor sob as cobertas.
**************
Augusto tocou a campainha e o mordomo o levou até o escritório. Ele entrou e se aproximou do sofá em que a mulher estava sentada. Mais uma vez, ele admirou a beleza e elegância dela.
-- Como vai, Madeleine?
-- Bem e você, Augusto! Fiquei surpresa com o seu telefonema! Está acontecendo alguma coisa com minha filha?
Augusto olhou fundo nos olhos da sua futura sogra e pigarreou.
-- O que tenho para lhe falar Madeleine, não sei se terá tanta importância para você, mas eu considero grave.
-- Por que acha isso? Mas, deixe de fazer rodeios e fale logo! Você sabe que paciência não é o meu forte.
Augusto levantou-se e deu largas passadas pelo cômodo. Enfiou as mãos nos bolsos da calça e, aproximando-se da janela, ficando de costas para Madeleine, soltou.
-- Sei que você não se interessa pela vida da sua filha, pelo que pode estar acontecendo com ela, pelas amizades que ela fez lá no Brasil, mas eu acho que você deve saber...
-- Deixe de rodeios e fale logo!
Madeleine nunca gostou de Augusto. Sempre o achou inadequado para Sylvia, mas antes ele do que mulheres.
-- Você tem que me prometer que não vai contar a Sylvia que ficou sabendo disso, do que vou lhe contar, por meu intermédio!
-- Tá, tá bom, Augusto. Eu prometo, mas fale logo que daqui a pouco tenho um compromisso.
Augusto aproximou-se novamente dela e sentou-se ao seu lado.
-- Júlia, a amante do seu finado marido, com o filho bastardo, está morando, na chácara há alguns meses...
Madeleine levantou-se num salto, como se tivesse sido mordida por uma cobra.
-- Isso é mentira, Augusto! Como pode inventar uma coisa dessas? Você deve ter brigado com Sylvia e agora quer se vingar dela! Minha filha jamais permitiria que aquela desqualificada entrasse na minha casa!
Augusto deu uma risadinha sarcástica.
-- Sinto lhe dizer, mas a mulher foi convidada a morar lá, minha querida. Convidada por sua filha e sua cunhada, a tia Cláudia.
Madeleine tornou a se sentar. Permaneceu calada por alguns segundos. Depois se virou para Augusto e, como quem dispensa um serviçal, o despachou.
-- Augusto, pode ir agora.
-- Mas... o que você vai fazer com essa mulher lá em sua casa? Você vai expulsá-la não vai?
-- Vou pensar. Agora você precisa ir embora. Tenho um compromisso e já estou atrasada.
Augusto saiu da casa de Madeleine sentindo uma alegria incomum. Entrou num taxi, assoviando uma canção, e se dirigiu ao aeroporto.
Fim do capítulo
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cris05
Em: 05/09/2018
Sylvia, pelo amor de Deus, se livra desse Augusto! Ele é muito covarde pra tentar suicídio.
Autora, não demora, por favor. Tomara que a Júlia se sensibilize com o niver da Sylvia...rsrs.
Resposta do autor:
Boa tarde, Cris.
Obrigada pelo comentário.
Não vou demorar a postar.rsrs. Bj.
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