Capítulo 5
Berta olhou mais uma vez para o relógio: 14:20. Já sentia sua bunda quadrada de ficar sentada no banco da estação tubo na Praça 19 de dezembro esperando se a dona do livro iria aparecer e nada.
Pelo menos havia sido uma manhã produtiva, Berta leu mais da metade do livro e a estória fascinante de Carol Aird e Therese Belivet em "O Preço do Sal" a manteve entretida. Berta sonhava com o dia que também viveria um romance arrebatador. Sua vida até agora era permeada de paixões platônicas e o seu único amor real era por Narbe. Tinha beijado somente duas meninas, e a timidez a impedia de se aproximar de alguém, a não ser "online". Nos bate-papos da vida, Berta era a deusa grega que habitava sua imaginação. Quanto mais Berta usava seu alter-ego "online", mais sentia vergonha de quem realmente era. Era difícil separar sua autoimagem dos insultos proferidos por sua mãe. Talvez ela fosse mesmo uma "gorda asquerosa que ninguém nunca vai amar."
Berta sacudiu a cabeça tentando afastar a voz da mãe e tentou distrair-se olhando ao seu redor. Cada pessoa que se aproximava chamava sua atenção. Berta ficava imaginando como seriam as feições da "minha querida Bibi", como a autora da carta se referia a provável dona do livro.
Pelas suas contas, deveria ser uma senhora com mais de setenta anos, mas também quem poderia garantir que a carta pertencia mesmo a tal Bibi. O mistério e a curiosidade estavam tomando conta de Berta enquanto o cansaço e o tédio de passar horas a fio sentada ao lado de "Dorian Gray" começavam a causar dores nas suas costas. Berta já estava tomando uma tremenda antipatia pelo pôster de Dorian, olhando para ela com certo sarcasmo, tinha saudades de Nina ali.
15:37, Olhou mais uma vez para o Cássio em seu pulso. "Chega de ficar plantada aqui." Berta pensou, arrancando um pedaço de papel do caderno e escrevendo um bilhete e em seguida colando-o bem no rosto de Dorian Gray.
"LIVRO O PREÇO DO SAL ENCONTRADO AQUI, FAVOR ENTRAR EM CONTATO COM BERTA (41) 55598130"
Arrumou a mochila e saiu caminhando com direção certa ao seu plano B, que em retrospecto, deveria ter sido sua primeira opção: a Biblioteca Pública do Paraná.
Berta entrou no majestoso prédio da instituição literária e imediatamente congelou. O piso em zigue-zague preto e branco da porta até o balcão de "empréstimos" a fez ficar postada na entrada, decidindo qual melhor caminho a tomar e a voz de sua mãe dizendo em sua cabeça "se pisar nas linhas sua mãe morre".
Berta sabia que a brincadeira de mal gosto que sua mãe fazia quando ela era criança não iria causar qualquer morte na família. O problema era que lembrança da dor de ser erguida pelo seu pequeno braço quando sua mãe a levantava violentamente do chão para evitar as linhas na calçada ainda desencadeava pequenos choques elétricos no seu ombro. Berta não recordava bem que idade tinha quando isso acontecia, mas era quando tinha que olhar para cima e esticar a mão para alcançar sua mãe. Desde então, desenvolveu um medo tremendo de andar de mãos dadas e evitava pisar nas emendas dos pisos.
Disfarçadamente caminhou como se estivesse observando tudo ao seu redor, o teto, as inúmeras estantes vermelhas contendo milhares de livros, os ‘pôsteres' da exposição que acontecia na ante-sala e a campanha para angariar fundos para a reforma da "Gibiteca". Berta se locomovia lentamente de lá para cá, desviando das linhas do chão deliberadamente.
"Posso ajudar" a senhora de cabelos grisalhos atrás do balcão perguntou.
"Ãããã." Berta se deu conta que não tinha formulado a pergunta que precisa fazer e gaguejou vogais desconectadas.
A senhora franziu a testa, reparando na surpresa de Berta a sua pergunta e tentou ajudar
"É retirada ou devolução?"
Berta começou a roer a unha do segundo dedo da mão esquerda, já sentindo Narbe começar a coçar, reclamando da situação desconfortável.
"Moça, está tudo bem?" A senhora falou com um tom calmo, o que deixou Berta mais a vontade.
"Desculpa, eu não sei bem como você pode me ajudar, ou se pode me ajudar. Eu preciso descobrir o nome de alguém que retirou um livro aqui."
"Hum" a senhora semicerrou um dos olhos e repetiu a frase em tom de indagação
"Descobrir quem retirou um livro? Que livro?"
"É um romance antigo, a data no carimbo é de 1953. Tem como saber quem retirou ele nessa época?"
"Menina, essa história está muito estranha. Você tem o livro aí? Deixa eu ver." A senhora acenou com a cabeça em direção a Berta.
Berta sentiu Narbe latejar com todo seu prurido por baixo das mangas longas da sua camiseta. Ela não poderia mostrar o livro, vai que a senhora decidisse confiscá-lo, ele pertencia à biblioteca no final das contas. Em livrarias não existe um "usucapião literário". Berta não poderia abandonar ali a única pista sobre Bibi e Hoshiko.
"Não, eu não tenho ele aqui. Só queria saber se existe alguma maneira de investigar o registro de quem pegou emprestado livros no ano de 1953."
"Ave Maria, moça. Como que vamos saber isso? Não tem arquivo de todas as retiradas e devoluções feitas aqui desde o começo. Imagina ter lugar para guardar tanta ficha? Olha, por que você não traz o tal livro aqui e nós vemos, mas se não tem nada em que eu possa lhe ajudar agora, vou ver as pessoas que estão esperando, tá bom? Até mais." Dizendo isso, virou-se de costas e caminhou para o final do balcão onde mais pessoas aguardavam.
Berta ficou parada ali, sem saber o que fazer até ouvir uma voz vindo da sua direita
"Oi." Uma garota de óculos quadrados, com a armação grossa e preta cintilante, e cabelos na altura dos ombros, loiros com as pontas tingidas de rosa-choque disse saindo de trás de uma das estantes que se encontravam do outro lado do balcão.
Berta deu um passo para trás com a surpresa.
"Desculpa, eu não quis te assustar, mas ouvi a conversa com a Dona Edna. Será que eu não posso tentar te ajudar?"
Berta continuava olhando para a garota sem abrir a boca e ela prosseguia.
"Sou a estagiária aqui e ouvi você falar alguma coisa sobre os arquivos."
"Foi a sua colega que mencionou os arquivos, e que eles não existem depois de tanto tempo." Berta disse em tom baixo.
"Hum, de quando você disse que o livro é mesmo?" A garota perguntou, colocando suas mãos sobre o balcão do setor de empréstimos e debruçando-se sobre ele, diminuindo a distância entre elas.
Berta reparou em seu rosto com mais atenção, ela tinha a pele alva, olhos de um azul-claro quase pálido e os óculos tão exagerados para as suas formas delicadas lhe davam um visual quase caricato. Suas bochechas, escondendo-se por trás da armação, eram marcadas por cicatrizes de acne, o que para a garota provavelmente eram marcas de batalhas prévias com seus hormônios juvenis a ser escondidas, para Berta eram sinais de que ela poderia confiar na estagiária, cicatrizes não mentem.
"1953" Berta respondeu, quase cochichando.
"Hum, tanto tempo atrás... Difícil mesmo ter alguma coisa nos arquivos. Livros que não são devolvidos por tanto tempo são retirados dos registros. Desculpa a intromissão, porque você precisa descobrir quem retirou esse livro?"
"Achei ele. Parece ter muita importância para quem o perdeu e também..." Berta hesitou, mas vendo o olhar minado de curiosidade da garota em sua frente, continuou:
"Tinha uma carta dentro do livro, muito pessoal, julgo que deveria ser devolvida para a dona, só isso."
"Você leu a correspondência de outra pessoa?" A estagiária perguntou com um sorriso quase malicioso.
"Era só para tentar descobrir quem deixou o livro lá. Eu, eu, eu..." Berta não conseguia controlar a velocidade das palavras.
"Calma, calma. Eu não estava te julgando não, aff se você tivesse noção das coisas que eu já achei dentro dos livros que as pessoas devolvem, já li e vi tanta coisa, ler uma carta é o de menos." A estagiária olhou a sua volta para ver se ninguém ouvia e continuou "Você tem a carta aí?"
"Não... quer dizer, não acho legal mostrar. É uma coisa muito íntima sabe? Melhor não."
A garota torceu a boca e ergueu a sobrancelha direita antes de propor
"Olha, eu curso Biblioteconomia e Documentação pela PUC e estagio na Biblioteca faz quase um ano, tem um tanto de arquivos de livros aqui e mais um tanto na antiga reitoria. Não me custa nada dar uma averiguada se existe alguma coisa, algum cadastro de 1953, pode não ter sobre a retirada do livro, mas sobre o livro em si, já que é parte do acervo, a hipótese é pequena, mas quem sabe? Tem coisas do tempo do Machado de Assis lá. Você tem que colaborar, eu preciso saber mais detalhes."
Berta suspirou e contemplou a ideia de mostrar o livro à estagiária, mas a dificuldade de confiar em uma pessoa desconhecida era petrificante.
"E se eu te der o nome do romance, com a data de retirada, será que você consegue investigar alguma coisa?" Perguntou reticente.
"Posso tentar, mas se eu descobrir qualquer pista sobre esse seu livro misterioso você tem que prometer que vai me mostrar."
"Pode deixar."
"E a carta também! Agora fiquei curiosa."
"Hum, vamos ver o que você consegue desvendar primeiro. A carta não é minha, vai que a dona não quer que ninguém leia."
"Nossa, você é difícil hein?" A estagiária sorriu amplamente e continuou "Então me conta tudo o que você sabe hã, como é teu nome?"
"Berta e o seu?"
"Ticiana." A estagiária fez um gesto exagerado e irreverente com a mão ao redor de seu crachá.
Berta escreveu todos os detalhes do livro e seus dados de contato e passou para Ticiana, que concluiu.
"Então tá Berta, eu te mando uma mensagem se descobrir alguma coisa."
"Boa sorte." Berta se despediu e virou-se em direção a saída, ainda desviado das linhas das emendas das cerâmicas do chão.
Fim do capítulo
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