Capítulo 4
Berta chegou em casa já era tarde da noite. Abriu a porta da frente o mais silenciosamente possível para não chamar atenção, e caminhou até seu quarto com todo o cuidado. Ela nunca sabia quando suas idas e vindas iriam causar problemas. Sua mãe era tão imprevisível. Certa vez, Berta passou uma semana fora de casa sem sua mãe sequer ligar, perguntar ou mostrar qualquer preocupação com o seu paradeiro, outras vezes, queria controlar cada metro caminhado. Era uma roleta russa, na maioria das vezes a sua mãe fazia até questão de demonstrar a irrelevância da existência de Berta em sua vida, mas em algum dia que a sorte não sorria para Berta, a arma engatilhava a bala derradeira, e Berta sofria com toda a ira explosiva de sua mãe. Aquela noite ela tinha acertado, a bala no tambor do revólver era somente estopim. Berta respirou aliviada ao fechar porta do quarto e acender a luz do abajur.
Rapidamente retirou o livro de dentro da mochila e colocou em sua escrivaninha, correndo o dedo indicador suavemente nas páginas amareladas e abrindo-o bem ao meio, onde se encontrava a carta misteriosa.
Berta abriu o papel diligentemente com o máximo zelo para não danificar a já delicada folha. Ela ajustou a luz da lâmpada para focar exatamente na elegante caligrafia em tinta preta que permeava o antigo documento e respirou fundo, mal contendo sua curiosidade para ler a carta misteriosa.
Apucarana, 15 de março de 1953
Minha querida Bibi
Confesso que está sendo muito difícil escrever essa carta, mas tenho que fazê-lo, pois nunca teria coragem de dizer-te face à face o que preciso.
Quero começar dizendo o quanto você significa para mim, mas palavras me faltam para descrever tanto sentimento. Eu não consigo parar de pensar em você desde o dia que você voltou para Apucarana.
Seu jeito indomável despertou coisas incríveis em mim, que, ao mesmo tempo encantam e assustam e eu não sei como lidar com tudo que está acontecendo. A única coisa que sei é que não posso abandonar tudo o que amo, minha família, meus costumes, meu futuro por uma loucura, mesmo que essa loucura seja a melhor coisa que já senti na vida.
Você é tão destemida, tão dona do seu destino, tão sedutoramente irresistível, e eu me deixei envolver mesmo sabendo que era errado. Eu não sou como você e então preciso me afastar.
Estou partindo para São Paulo amanhã e peço que por favor não tente me impedir, não me procure mais, já é difícil o suficiente ter que viver com a lembrança longínqua dos seus beijos e da noite em que fui sua. Por favor me perdoe, eu nunca vou te esquecer.
Com todo meu amor
星子
Hoshiko
Berta chegou ao fim da carta sentindo seu coração saltitando no peito. Tantas perguntas explodindo em sua cabeça. "Que coisa mais linda!" Berta pensou e sacudiu a cabeça como se chacoalhando seu cérebro pudesse organizar suas idéias, e releu o papel suas mãos, outra e outra vez, apegando-se a cada detalhe. A data, 58 anos atrás. O lugar, na cidade ao norte de Curitiba.Os nomes e pronomes, todos femininos. O enredo, o amor impossível. A assinatura, em ideogramas japoneses. Como pudera um papel tão simples conter tantas maravilhas que atiçavam a curiosidade de Berta a um ponto que nem mesmo ela sabia concebível.
"Como esse livro e essa carta foram parar naquele banco da estação?" Berta pensou, e voltou seus olhos para o livro puído pelos anos de uso.
Abriu novamente suas páginas, tentando achar mais informações que pudessem indicar quem seriam Bibi e Hoshiko. Nada mais a ser desvendado a não ser o carimbo da biblioteca e a data de retirada, um mês antes da carta misteriosa.
"Alguém que foi a parada LGBT hoje esqueceu o livro" Berta concluiu. "E pelo jeito, a pessoa carrega esse livro para todo lado, deve ser uma relíquia para ela, a carta tão emblemática." Berta continuava raciocinando. "Bibi! Só pode ser dela! Quem mais iria guardar a carta? Mas como?" Berta fazia força para aproximar as peças do quebra-cabeça lésbico em sua frente.
"Vou voltar lá amanhã e ficar de plantão, ela há de aparecer procurando isso" Berta olhou mais uma vez para o livro e a carta em suas mãos, colocando a carta exatamente no meio das páginas em seu lugar de repouso.
Fim do capítulo
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