Contém viol?ncia
Capítulo 3
"Onde você pensa que vai, Maria Roberta?" A voz da mãe fez Berta frear seus All Stars no chão de parqué, extraindo um grito da borracha dos solados.
Berta respirou fundo e virou-se para a ver sua mãe, mãos na cintura e peito estufado, parada no fim do corredor como um galo de rinha esperando pela luta.
"Vou ver a Nina, mãe."
Berta disse, dando um passo para trás, tentando aumentar a distância entre ela e sua mãe.
"Vai ver a Nina uma pinóia, caminha aqui arrumar esse quarto!"
"Mas mãe, eu...eu..."
Antes que Berta conseguisse terminar a frase, sua mãe já estava ao seu lado, agarrando a manga de seu moletom. "Caminha!" Sua mãe sacudiu Berta bruscamente e praticamente a arrastando até a porta de seu quarto, empurrou Berta cômodo à dentro.
"Olha essa imundice!" Sua mãe gritou.
Berta virou-se para seu quarto, perfeitamente arrumado. A cama estendida de maneira impecável, o lençol dobrado milimetricamente equidistante do travesseiro e do cobertor e as bordas do cobertor arranjadas formando triângulos equiláteros nos cantos do colchão. A fronha do travesseiro imaculada, como se nunca ninguém houvesse dormido ali.
"Olha isso!" Sua mãe gritou, abrindo seu roupeiro.
Berta ergueu os olhos marejados para suas roupas, distribuídas por cor em cada cabide, as mais escuras à esquerda em degradê as mais claras para a direita. Os jeans arrumados em pilhas uniformes, as camisetas passadas e engomadas como se estivessem ainda dispostas em uma loja do shopping, as calcinhas e sutiãs dispostos em pequenos quadrados dentro das gavetas.
Sua mãe começou a arremessar tudo no chão, e gritava
"Como que alguém consegue viver assim? Sua porca! Como o seu pai vai querer ficar em casa desse jeito?!"
Berta ajoelhou-se no chão, as lágrimas correndo pelo seu rosto, juntando as peças de roupa em seu colo, querendo esconder-se embaixo da pilha que se formava. Não tinha forças para argumentar e sabia muito bem que contestar só causaria mais ira de sua mãe, apenas se desculpava.
"Me perdoa, mãe, eu arrumo tudo, prometo."
"Arruma mesmo!" Sua mãe agarrou seus cabelos, que mesmo curtos não conseguiram evitar o bote. "Sua relaxada!" disse puxando o rosto de Berta em sua direção. "É tudo sua culpa."
Berta sentia o cheiro que a repugnava desde pequena, a mistura nauseante de álcool desinfetante para as mãos e perfume Thaty do Boticário, o aroma sórdido de seu inferno pessoal em notas etílicas de lavanda.
Sua mãe continuou a puxar seu cabelo, forçando a cabeça de Berta a zigue-zagar em cima do pescoço. "Praga. Traste inútil." Ela destilava seu veneno.
"Eu arrumo, eu arrumo." Berta balbuciava em meio ao choro.
"Ai de você se esse quarto não estiver um brinco quando eu voltar." A mãe de Berta disse antes de sair batendo a porta com toda força, derrubando o pôster da Lady Gaga "Born This Way" que estava pendurado.
Berta soluçava. As lágrimas ainda corriam rosto abaixo se misturando com a secreção transparente que gotejava do nariz. Nem os movimentos rítmicos de seu corpo balançando levemente para frente e para trás conseguiam acalmar Berta. Era uma dor que Berta não conseguiria ninar até se sentir melhor. Era uma aflição que exigia o pagamento em sangue para desaparecer.
Berta rastejou até sua escrivaninha, abriu a segunda gaveta e retirou uma caixa de música nacarada, daquelas com a pequena bailarina adormecida dentro, esperando uma volta na corda do mecanismo para dar piruetas ao som da Valsa Danúbio Azul. Aquela bailarina nunca iria dançar novamente.
Berta retirou um pequeno canivete suíço de dentro da caixa, abrindo a lâmina afiada e reluzente e pousou o metal frio contra o antebraço esquerdo, já saturado de marcas de encontros prévios com aquela minúscula faca que nas mãos de Berta se tornava uma espada. Fechou os olhos e sentiu o aço frio arranhando fundo em sua pele, e imediatamente o calor que milhares de células se aglomerando em volta da ferida irradiavam. Pobres plaquetas, coagulando o sangue mais rápido que Berta gostaria. Somente um risco vermelho restava em sua pele. Berta sacudiu a cabeça. Queria ver gotas, ver rastros de sangue braço abaixo. Até suas feridas eram decepcionantes, mas por hora, a dor do corpo abrandava a dor da alma.
Berta dobrou todas as roupas e as colocou tudo de volta em seu armário exatamente como estavam antes, e só pensava em seu encontro com Nina. Seria um encontro especial, era o dia da parada do Orgulho LGBT de Curitiba ali mesmo na praça 19 de dezembro e assistir a tudo de camarote ao lado de sua bailaria era um acalanto mais que necessário agora.
O ônibus em direção ao Terminal Cachoeira estava mais lotado que o normal naquele domingo. Uma gente colorida, rostos pintados, batons de glitter, mas Berta não se atrevia a olhar. O medo de alguém perceber sua presença, ou o imaginável, olhar para ela como se ela pertencesse aquele grupo de pessoas felizes a estremecia. Berta olhava para o chão e as vezes lia os rabiscos feitos no encosto do assento a sua frente.
"Luiz ama Raiane"
"Camila e Adriano"
"Nirvana Rules"
e um imenso desenho de um p*nis e saco escrotal seguido pelas palavras dignas de obras de Shakespeare: "Pau no cú".
Berta riu timidamente. Quisera ela poder ser desbocada assim.
"Palavras de baixo calão são coisas de gentinha, da escória sem cultura." A voz da mãe em sua cabeça rosnou. Haviam palavras que Berta ficava vermelha só de pensar. "Boceta", por exemplo, se lia em algum livro ou até mesmo nos bancos dos ônibus da vida, causava dilatação de todos os minúsculos vasos sanguíneos em suas bochechas. Imagine no dia que visse uma.
A estação tubo em frente a praça estava lotada. Berta teve dificuldade em sair do ônibus, e foi levada a esmo pela multidão. Queria ter saído para a esquerda, mas foi impossível. Somente após caminhar vários metros compactada como em uma lata de sardinha, conseguiu se desenvincilhar do grupo. Berta não tinha timbre suficiente para galgar seu caminho até onde se encontrava Nina do outro lado da estação, jamais teria coragem de impor-se fisicamente e gentilmente empurrar algum desconhecido que a impedia de prosseguir. Resignou-se a esperar até que todos saíssem.
Passaram-se vários minutos antes de Berta pudesse alcançar seu banco, mas alguns metros antes do seu destino, começou a notar alguma coisa diferente. Seu lugar parecia tão escuro, tão sombrio. A luz que irradiava de Nina não estava mais lá. Berta parou seus passos. Não queria ver, não poderia aguentar tamanha tristeza. "O Cisne Negro" havia voado dali e em seu lugar o cartaz do novo lançamento cinematográfico "O Retrato de Dorian Gray" debochava ainda mais da dor que Berta estava sentindo. Quisera ela ter o seu retrato em casa sofrendo todos as injúrias que a vida teimava em lhe açoitar em seu lugar.
Berta sentou no banco da parada tubo vazia olhando para o chão, o desespero tomando conta de seus pensamentos por ter perdido a única coisa que a fazia feliz nos últimos meses, por saber lucidamente o quão insana e triste isso a tornava.
"Era só um cartaz" Pensou, "Era tudo o que eu tinha."
Berta não entendia como uma coisa tão banal podia machucar tanto. "Ridícula, o que essas pessoas vão pensar de você chorando aqui sozinha. Patética." A voz da mãe na cabeça de Berta começava a tomar forças. "Que fundamento uma pessoa inútil como você tem no mundo? Só causa problemas, não serve para nada. Nem sua mãe sentirá sua falta, pelo contrário, será um alívio para ela não ter que aturar você." E a palavra "alívio" retumbou fundo em Berta, ecoando em lugares ocos onde deveriam estar guardadas as coisas boas de sua vida.
"Será um alívio para todos se eu não estiver mais aqui, principalmente para mim. Não aguento mais."
Berta engoliu seco as lágrimas molhadas e decidiu morrer.
Já era noite e a estação estava fazia. Berta não tinha nem notado as horas passarem. Sentada em seu banco, olhos fixos no chão, vazios como sua alma. Só precisava ter energia para se mover e terminar com tudo. Olhou mais uma vez para o pôster de Dorian Gray para se despedir de tudo, mas alguma coisa diferente chamou sua atenção. Havia um livro na ponta oposta do banco.
Berta olhou a sua volta tentando enxergar alguém. Tudo era silêncio. Ela então deslizou seu corpo lentamente pelo assento até chegar a outra extremidade e pegou o livro em suas mãos. Tinha uma aparência muito surrada. Páginas amareladas e amassadas como rugas em uma face que já sofreu e sorriu muito. A capa já não tinha o vigor das cores que um dia chamavam a atenção para o título. Berta leu em voz alta:
"O Preço do Sal - por Claire Morgan"
Berta virou e leu a contracapa, tentando ainda entender como aquele livro teria parado ali. Olhou mais uma vez a sua volta. Nada. Abriu a primeira página e leu a dedicação da autora:
"Para Edna, Jordy e Jeff" e ao pé da página
"Publicado por G. P. Putnam's Sons, New York City, New York - 1952."
"Meu deus, esse livro é muito velho!" Berta pensou, e continuou a folhear as primeiras páginas em busca de mais pistas. Na página em branco, após os agradecimentos, o primeiro indício de onde o livro poderia ter saído, um carimbo "Biblioteca Pública do Paraná" e uma data escrita a mão em caneta azul, "13/Fev/1953".
Berta sacudiu a cabeça e disse em voz alta "Caraca! Essa pessoa vai ter que pagar uma multa enorme pela devolução atrasada do livro" e riu de sua própria piada.
O som de sua risada ecoando estação afora e extraindo mais risos de Berta. Ela continuou rindo, uma gargalhada gostosa que fazia tremer sua barriga, amiudar seus olhos e tirou seu fôlego por uns segundos e então Berta sentiu-se um pouco melhor, sentiu-se leve.
Continuou folheando o livro cuidadosamente, admirando algumas passagens sublinhadas a lápis, algumas páginas com o canto dobrado demarcando algo importante, ela estava fascinada. Quando chegou ao meio do livro, exatamente na emenda que aglutinava tudo junto, uma folha de papel dobrada em quatro, uma carta.
Berta segurou o papel em suas mãos, mas um grupo de homens entrou estação adentro fazendo barulho. Seu reflexo medular era de sair dali imediatamente, ela sabia muito bem que encontros noturnos com grupos de homens poderiam ser muito perigosos e num impulso entrou no primeiro ônibus que passou, segurando forte em suas mãos o seu pequeno tesouro a ser desvendado e por hora, não pensava mais em morrer.
Fim do capítulo
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