Capítulo 6
Mais uma vez, Alicia chegou em casa naquela tarde, cansada e frustrada, e encontrou Thiago, seu marido, assistindo um documentário; e sua filha de sete anos entretida jogando no tablet. Reteve-se com a porta ainda aberta, como se observasse uma cena de filme, aqueles dois seres que faziam parte de sua vida, completamente alheios a tudo, cada um no seu mundinho particular, nem ao menos haviam notado sua chegada, e por certo não o fariam até o momento que chamasse-lhes a atenção. Então Thiago responderia automaticamente, com o tradicional “- Oi, amor. Como foi seu dia?” E, como sempre, não ouviria sua resposta, voltando a atenção novamente ao programa que assistia.
Luiza, por sua vez, talvez jogasse o tablet sobre o sofá e corresse para abraçá-la, e antes mesmo que conseguisse largar a bolsa, passaria a lhe contar os acontecimentos do dia, os assuntos da escola, exigindo-lhe atenção. Essa, por mais cansativa que às vezes fosse, era sua melhor hora do dia, ao menos tinha a oportunidade de perceber as evoluções da filha, conhecer seus interesses, fazer parte de seu mundo, por mais que passassem pouco tempo do dia juntas. Tentava compensar isso nos finais de semana, mas sempre havia tanto a fazer que raramente se sentia satisfeita com a atenção dada à menina que tanto amava. Chegava, algumas vezes, a ter inveja da babá de Luiza, que mais do que fazer parte da vida da filha, era sua confidente e conselheira, por sorte era uma moça muito ajuizada, educada, de bom caráter, e que amava sua filha.
Alguns minutos haviam se passado e marido e filha seguiam sem notar que chegara. Pensou em fechar a porta silenciosamente, sem chamar a atenção, e simplesmente tomar o rumo do quarto, despir-se de tudo e mergulhar na banheira por alguns momentos. Provavelmente se fizesse isso eles só dariam por sua falta quando a fome apertasse e percebessem que ninguém lhes preparara o jantar.
Ainda pensou mais uma vez em fazer o que a vontade lhe pedia mas, mesmo fechando a porta sem fazer muito alarde, sentiu-se culpada, não com relação ao marido, mas por causa da filha, então anunciou em alto e bom som sua chegada.
- Boa noite, família! – Tentou colocar no rosto alguma centelha de felicidade, e varrer a exaustão.
- Oi, amor...
- Oi, mamãe. Boa noite! – Respondeu-lhe a pequena, mas sem desviar os olhos do jogo. – Estou jogando Running Fred... – Complementou.
- Oi, querida... está bem. Mamãe vai tomar um banho, depois esquenta o jantar, ok?
- Claro... nem estou com fome... Papai e eu comemos cachorro-quente na volta da escola.
- Ah... tudo bem, então vou tomar um banho mais demorado, depois comemos.
Dito isso, e como Thiago não parecia interessado no assunto, nem em comer, e com certeza preferia assistir seu documentário sem ouvir de fundo sua voz, resolveu fazer o que tinha vontade, tomar um banho demorado em sua banheira de hidromassagem, porém, antes de dirigir-se ao quarto, foi até a cozinha e apanhou uma taça e escolheu um vinho para beber, levando-o consigo para a banheira.
A água quente e borbulhante envolveram seu corpo, e com o vinho, permitiu que se deixasse esquecer do mundo ao seu redor, e da frustrante sensação de que era invisível para as duas pessoas que elegera como as mais importantes em sua vida. Queria silenciar esse e outros pensamentos, então apanhou o controle remoto, há muito não usado, e apertou o play. No aparelho de som pequeno, numa das prateleiras da bancada, começou a tocar uma música que há muito também não ouvia, uma canção de Nat King Cole, When i fall in Love.
No início apenas apreciou a melodia, depois se pôs a pensar na letra da música, e tentar encontrar algo em seu casamento que ainda a fizesse se sentir viva. Depois de algum tempo, precisou admitir para si mesma que já não sabia mais o porquê de estarem juntos. Eram bons amigos, mas se em algum momento tinha realmente sido apaixonada por Thiago, esse tempo estava muito longe. Lembrou-se que intelectualmente o homem a tinha atraído, sua atenção e delicadeza a tinham cativado, mas amor, o sentimento que deixa as pessoas completamente entregues, isso nunca sentira, tampouco tinha visto em Thiago algo semelhante.
Talvez em se falando de percepção, se podia dizer que algum dia tinha sido amada, precisava também admitir, tinha sido por Caio, nele sim percebera inúmeras vezes o olhar e a intensidade de seu afeto, mas como por ele não havia sentido nem atração física, sabia que se lhe tivesse aceito, terminaria por magoá-lo ainda mais, porque não poderia ser feliz sem que ela o amasse na mesma proporção, então envolveu-se com Thiago, que era algo mais sereno e menos perigoso.
Lembrando de tempos vividos com Caio e os amigos, afastando de seus pensamentos a ideia de Ellen doente, terminou adormecendo na banheira, depois de três taças, generosas, de vinho.
***
Irritada com um engarrafamento no trânsito, Denise acabou ligando o som do carro e aumentando o volume. Tudo que queria, tudo o que precisava, era chegar em casa e tomar uma boa dose de uísque. Uma amiga lhe convidara para jantar fora, para que colocassem a conversa em dia, mas declinou, se havia uma coisa que no momento não suportaria era ouvir mais alguém falando, falando, falando, mesmo que, diferentemente das sessões, pudesse também desabafar, rir ou simplesmente não ter que ficar analisando as informações.
Muitas vezes, depois de recusar um convite, como o de Gabriela, terminava por se arrepender, porque ao chegar em casa, e sabê-la vazia, assustadoramente silenciosa, via-se tão desnuda que tinha vontade de voltar ao carro e dirigir até encontrar alguém que não quisesse conversar, mas que a abraçasse e deixasse ficar ao ombro. Em outras ocasiões, ser só lhe parecia uma conquista. Conseguir ficar bem apenas consigo mesma representava maturidade, e era um exercício que se impunha depois de se separar de Fernando.
Depois dele, tinha tidos outros relacionamentos, mas todos furtivos, ninguém que a fizesse desejar abrir novamente mão da liberdade, e de fazer o que lhe desse vontade na hora que lhe desse na veneta, tinha cruzado seu caminho.
E como, inevitavelmente, como diz a música, amar é sofrer, tanto melhor estar acostumada com a solidão que ter alguém imprescindível, e perder, como estava prestes a acontecer com Renata. Sabia que não teria a coragem da mulher de enfrentar algo como isso.
Conseguia imaginar como Fernando devia estar devastado com a ideia de perder a irmã, embora tivesse certeza que a dor de Renata era ainda maior, embora sejam sentimentos diferentes. De qualquer sorte, não queria estar na pele nem de um nem de outro. Já doía-lhe o suficiente serem amigas e terem passado por tantos momentos importantes juntas e agora saber que a ausência seria intransponível.
O trânsito voltou lentamente a fluir enquanto voltava seus pensamentos para Amanda. Sabia de seu desespero, sempre achou que um dia terminariam juntas, embora também tivesse conhecimento que ambas tinham encontrado pessoas fantásticas para dividir suas vidas. Talvez se amassem tanto que tinham precisado mesmo se afastar, porque o sex* poderia transformar esse sentimento em alguma outra coisa, mesmo porque seus temperamentos um tanto exaltados as teria feito entrar em constantes atritos, caso fossem um casal. Mas tudo isso eram conjecturas, sabia que não existia padrão, fórmulas perfeitas, endereço... às vezes nos encontramos onde menos esperamos, e para isso é preciso estarmos abertos, do contrário, apenas passamos pelas vidas uns dos outros. De resto tudo é apenas teoria.
Pensando em teoria, devia procurar uma vaga em alguma faculdade, tinha por certo que dar aulas lhe faria mais feliz, muito mais que ser terapeuta. Há algum tempo tinha tido essa ideia mas, por simples comodismo, não tinha ido atrás de algum concurso, nem feito contato com instituições particulares de ensino. Comodismo? Que comodismo?! E lá aguentar horas a fio pessoas entrando e saindo do consultório, contando coisas banais como se grandes eventos, podia ser tachado de cômodo? Devia trabalhar mais esse seu lado masoquista, pois passar o dia a ouvir histórias muitas vezes frívolas como se pudessem mudar o mundo, ao menos o mundo particular de quem as relatava só podia ser denominado de masoquismo.
O celular tocou, interrompendo suas divagações, era Gabriela.
- Amiga, tem certeza que não quer sair para jantar? Estou faminta e sem companhia para sair. Não quero ficar parecendo aquelas pessoas infelizes que frequentam sozinhas as mesas de restaurantes.
Já ia dizer não, mas também estava com fome e, afinal, amigos são para essas coisas...
- Encontro com você no Rivers, em uns vinte minutos, pode ser?
- Claro, chegarei lá antes de você. Beijos, Obrigada. – Respondeu efusivamente a amiga do outro lado.
***
Os dias transformaram-se em semanas, cada um preso em sua rotina, mas todos com a difícil tarefa de tentar descobrir como lidar com o fato de que em poucos meses Ellen desapareceria e os jogaria em um profundo vazio.
- Eu simplesmente não posso. – Confessou Amanda, jogando-se na cama arrasada.
- Amor, infelizmente vai precisar lidar com isso. Temos que ir. – Bruna abraçou a mulher, sabendo o quanto seria penoso para ela o encontro com Ellen e a conversa que inevitavelmente terminariam tendo. Uma vez que Ellen, por certo, contaria pessoalmente à melhor amiga sobre a doença que mais cedo ou mais tarde a vitimaria.
- Jamais poderia imaginar que algo assim poderia acontecer justamente com Ellen... não é justo...
- Eu sei amor. Mas é algo que não temos controle, e nesse momento ela precisa de nós. Precisa do nosso apoio, não de nossa piedade.
Amanda olhou a esposa como se nunca a tivesse visto antes. Mas precisava admitir que ela estava certa.
- Eu sei...
- Então agora vamos. Precisamos terminar de arrumar as malas. E não esquece de pegar o carregador de bateria do celular.
- Vou ligar para a locadora de veículos. Pensei em locar uma caminhonete...
- Como você quiser. E acho boa a ideia de um carro maior, caso resolvamos sair todos juntos.
***
Alicia já estava com a mala pronta. Repassava apenas os últimos detalhes para que nada escapasse, principalmente porque Luiza ficaria com a tia nos dias em que estariam fora. E por mais que confiasse plenamente na irmã, sabia que a filha tinha algumas manias, dentre elas não dormia sem a girafa de pelúcia que ganhara quando não passava de um bebê. Que só gostava de dormir com o pijama rosa de bolinhas. E que era imprescindível que alguém lesse para ela antes de dormir, pelo menos um capítulo da Ilha do Tesouro. Por sorte a afeição que a filha tinha pelas primas garantiria que não estranhasse o ambiente.
Precisava ainda fazer mais duas ligações para se assegurar de que tudo estaria em ordem na redação, durante a sua ausência. Já checara pela enésima vez os e-mails. Colocara o tablet na bolsa. E aparentemente estava com tudo pronto para, na manhã seguinte, entrar no avião rumo a um dos dias mais difíceis de sua vida. O reencontro com Ellen e a esposa.
Por mais que tentasse não conseguia imaginar como a amiga estava lidando com a ideia de que em alguns meses estaria com os movimentos muito comprometidos. Muito menos de onde Renata estava tirando tanta força para lidar com tudo.
Nesse momento percebeu o quanto se sentia sozinha, apesar de o marido insistir em acompanhá-la. Em verdade gostaria que ele não o fizesse, mas não tinha como lhe dizer isso sem que soasse muito estranho. Ele devia ter noção de que não estava indo passear, e se sentiria muito mais tranquila se ao invés de ir consigo ficasse tomando conta da filha, pelo menos no tempo que não estivesse trabalhando.
***
Fernando já reunira algumas roupas e o necessário para passar alguns dias na casa de praia da irmã. Por mais que quisesse adiar essa viagem, sabia que não era possível, e ao menos talvez Ellen ainda não estivesse tão debilitada a ponto de lhe parecer ser outra pessoa.
Em recente conversa com a cunhada soubera que a irmã tentava a qualquer custo não reduzir suas atividades profissionais, mas esse dia chegaria, e sabia o quanto isso a abalaria. Seria como esperar, lentamente, a morte chegar.
Decidira pegar o voo do meio dia porque sabia que Amanda e Bruna chegariam a Floripa naquela noite, e embora isso também parecesse uma covardia, tinha a certeza de que Ellen preferia mesmo conversar primeiro com Amanda, antes dos demais chegarem.
***
- Amor, você se anima ir ao supermercado comigo? Preciso comprar mais umas coisas para esperarmos o pessoal.
- Tudo bem, querida. Quero mesmo comprar mais umas garrafas daquele vinho que tomamos semana passada. – Assentiu Ellen, agradecendo silenciosamente por a mulher não lhe lembrar que não devia beber.
- É bom comprarmos mais cerveja também. Os meninos preferem, você sabe...
- Hum hum. Pensei em fazermos churrasco amanhã à noite. É mais rápido e todos gostam.
- Ok. Vamos comprar mais petiscos também... Vou pegar a bolsa e já saímos, tá?
- Te espero lá na frente. Vou tirando o carro da garagem. Ah, que horas as meninas chegam? Nós de irmos buscá-las?
- Antes das 22h. Mas falei com Bruna e ela disse que já haviam reservado um carro na locadora do aeroporto. Devem chegar aqui antes das onze.
Ellen deu de ombros e saiu rumo à garagem. Sabia que os próximos dias não seriam fáceis, mas precisava estar uma última vez na companhia dos amigos. Precisava fazer com que se mantivessem unidos, principalmente para apoiarem Renata, quando não estivesse mais presente.
Quando Renata apareceu em frente à casa encontrou Ellen no carro, mas sentada no banco de passageiro. Por certo estava indisposta para dirigir, então não tocou no assunto, apenas deu a partida e voltou a falar sobre o que deveriam comprar no mercado.
Fim do capítulo
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