Capítulo 24
Capítulo 24 - Caroline
Assim que coloquei o pé para fora de casa eu senti o vento gelado de Úrros, mais gelado do que eu tinha sentido até agora. Percebi que minha blusa não seria o suficiente para me aquecer, muito menos que aquelas ruas seriam iluminadas por algo ou alguém. Continuei sem pensar muito, respirei fundo, até sentir meus pulmões ardendo e querendo soltar todo o ar.
Olhei para a rua escura a frente e comecei a trotar, minha vontade mesmo era de correr forte, rápido. Meus pensamentos estavam a milhão, voando entre São Paulo e Portugal, entre a Chris e a Fer, entre minha clínica e a maternidade, entre meu presente e meu futuro.
O pouco que me conheço sei que preciso de um ponto final para seguir em frente, mas cara, não é simples assim, eu não sei bem se um dia serei capaz de concluir o que a Christiane significou na minha vida. Acredito, de verdade que ela tem alguém, mas infelizmente eu não sou capaz de sentir raiva dela, não posso. Ela ainda significa tudo de bom que eu desejei e planejei ter.
Continuei a correr, rua atrás de ruas, viela atrás de viela. Meus pulmões doem, muito. Estou sem correr há quase dois meses. Antes eu corria toda noite, antes de dormir, depois de ter alguma paciente, depois de ter dado uma resposta para o câncer. O sucesso na cirurgia me dava estímulos para correr, mas o mal resultado me levava a exaustão na esteira. Quando eu não era capaz de salvar alguém eu corria até meus joelhos doerem, até minha adrenalina chegar ao limite, não por culpa, jamais, sei que fiz meu melhor e tudo que pude por ela, mas para ter forças e concentração para a próxima mulher que precisasse de mim.
Mesmo depois de mais de 10 anos operando úteros, trazendo pessoas ao mundo ou salvando outras de sangramentos abundantes, eu nunca tive a repulsa e o incômodo igual ao de costurar a testa dela, da Fernanda. Que droga, essa garota simplesmente me encanta e me enlouquece, minuto a minuto. Que raiva eu senti da Milena, o modo como a Fer deu atenção para ela, como ela se transformou. E eu aqui, incapaz de corresponder, enxergando a Christiane, que nem lembra mais de mim.
Tenho raiva de mim mesma. Uma pessoa que um dia eu amei, mas claramente ainda amo, mas que não me quer, que escolheu outro mundo. Eu deveria largar tudo, sem nem pensar, aceitar o novo, a maternidade, a clínica oncológica, a Fernanda. Sim, eu seria capaz de viver nesse vilarejo frio, se toda noite eu estivesse abraçada com essa portuguesa. Sei que ela nasceu no Brasil, mas tem um sotaque e um jeitinho português lindo. Que enxurrada de pensamentos, correr me permite isso, correr me abre os pensamentos.
Gota no rosto, suor, mão úmida. Estou suando na mão? Visão embaçada a frente. Neve. Começou a nevar. E eu na rua, com uma blusa fininha, que merd*. Onde estou? Quanto tempo corri?
Diminuindo pausadamente a velocidade, me dou ao direito de olhar para os lados, estou em um lugar mais escuro que o normal. Por quanto tempo eu corri? Definitivamente onde estou? Cacete, posso imaginar a Fernanda me xingando nesse momento, seria engraçado se não fosse trágico. Minhas mãos estão congelando, não sinto minhas pernas quase, de tão frio que está.
Estou em algum tipo de estrada, não sei exatamente. Está tudo bem escuro, tudo está iluminado apenas pelo luar e por cima dele uma pesada camada de nuvem, acompanhada da neve. Não consigo ver nem meio palmo na minha frente. Está frio, muito frio. Ao lado da estrada tem arvores, arvores? Sinto meu corpo tremendo, tremendo forte. Quero correr. Meus pés não se mexem, estão congelados. Que sono! Sono? Deve ser o frio. Sono. Sono.
Estou na areia da praia, olho para os meus pés, eles estão quentinhos sob a luz do sol escaldante do Rio de Janeiro. Acho que reconheço essa praia, sim, reconheço. Praticamente cresci aqui. Estou em Cabo Frio, vinha muito aqui com meus pais, antes da minha mãe ficar doente, antes do câncer, antes da quimio.
Ao fundo, o céu azul reina e o mar brilhante transpassa meus olhos. Que lugar aconchegante. Ao meu lado vejo um menino, uma criança, não mais que uns 5 anos. Me lembra muito o Lucas, mas não pode ser ele, muito menos o meu sobrinho.
Crianças jogam bola atrás de mim, meu corpo quente está confortavelmente jogado na praia. Tem um burburinho ao fundo, um barulho de rio 40 graus no verão. Ao fundo meu pai sai da água, cheio de tatuagens indigenas, bronzeado. Não vejo meu pai há uma 8 ou 9 anos, desde que minha mãe faleceu ele se enfiou em uma tribo indígena, para ser médico deles e esquecer do mundo. Posso facilmente acreditar nele assim, um coroa inteirao, andando pela aldeia de bermuda, pintado para a guerra.
Ele saiu da água levemente gelada de cabo frio, andou pela areia, rindo, feliz. Posso sentir ele feliz. Minha mãe, esbelta como sempre foi, intensa no olhar, correndo atrás dele na areia. Não posso deixar de sorrir dessa situação, de sentir a felicidade neles. Ela não aparenta mais ter câncer, ou ainda não teve? Não sei em que ano estou.
- Marmota, não vai entrar na água? - meu pai me pergunta. Verdade! Ele me chamava de marmota quando eu era pequena. Porque mesmo? Não lembro… mas gosto do marmota.
- Não chama a menina de marmota!
- Vê, ela tá jogada na areia, enrolada como uma marmota.
Não falo nada, continuo olhando eles e sorrindo, como são felizes, sempre foram. A vida inteira desejei ter um amor como o deles, um casamento como o deles e ser médicos bons como eles. Posso dizer que na profissão eu cheguei no patamar, mas na vida, nunca me arrisquei a ponto de me apaixonar por coisas simples. A chris sempre me trouxe segurança, sempre me trouxe paz, mas não alegria para transbordar do peito, emoção, sempre foi tudo tão calmo, normal. Não me surpreendo que meu casamento tenha acabado.
- O amor deve ser leve Carol, nunca se esqueça disso filha. Deve ser com emoção, sorrisos, brigas por coisas leves que terminam em beijos. Risadas de bobagens, passeios inesperados, desejos não escondidos. Essa foi a mensagem que te ensinei em vida meu anjo. Olhe esse céu imenso, esse quentinho, está tudo em você, você pode muito mais que isso. Filha, deixe de se prender ao passado, está na hora de mergulhar e ver os peixes, ir fundo nesse oceano de sentimentos.
- Como sabe disso tudo mãe? A senhora me faz falta, como queria seu apoio.
- Caroline, estou com você todo o tempo. Apenas aceite que pode ser feliz, aceite que pode seguir em frente. Filha, fez seu melhor, como sempre, mas acabou, precisa recomeçar, precisa aprender a nadar novamente.
- Tenho medo de nadar. Medo do novo.
- Meu anjo, aposte e ganhe, você é capaz, sabe disso.
- Sua idiota!! Porque fez isso? Vai morrer congelada… idiota! - ouvi ao fundo, fora desse espaço, em outro universo.
- Escute isso filha! É o jeito dela dizer que te ama, de te proteger. Está na hora de voltar e aceitar o novo.
- Aqui é quente, calmo. Tenho tanta saudade de você mainha.
- Não tenha, estou sempre lhe protegendo. Agora vá filha, vá nadar. - levantei daquela areia quente e aconchegante em que eu estava - Eu te amo mãe e sinto sua falta, todo o tempo. - ela apenas sorriu, com os olhos marejados e acenou. Caminhei lentamente para água, estava quente a areia, o suficiente para eu não querer voltar.
Um pé na água e senti o gelado do mar de cabo frio, um gelado inconfundível. Meu corpo tremeu quando a primeira onda bateu no corpo. Não posso continuar, quero ficar na areia, ficar na proteção. Olhei para trás, pude ver minha mãe sentada na areia, sorrindo, acenando para eu seguir em frente, meu pai ao lado, abraçado nela, rindo, como se ela.nunca tivesse ido embora, ela foi o grande amor dele, definitivamente.
Mais um passo, mais uma onda. - “”Não posso entregar meu amor a quem não sabe o que quer””, foi a voz da fernanda em mim. Avancei outro pouco na água gelada, sinto meu corpo contrair - Acabou Caroline, assuma suas escolhas, ou Portugal ou eu””- mais um tremor, meus pés estão congelando - “não posso ficar ao seu lado sem te desejar” - de cabeça mergulhei na praia do Forte, com a água congelando meu corpo, fazendo cada músculo se contrair e voltar a tremer- “ Assumir a maternidade, a oncologia” - estou tremendo tanto de frio que meu corpo está convulsionando. A praia está longe, a superfície do mar também, falta ar, falta calor.
Sinto um peso absurdo sobre meu corpo, mas é algo confortável. Está me aquecendo. Onde estou? Posso sentir o perfume adocicado da Fernanda, e a voz cochichante dela, longe, falando: volta sua idiota, porque fez isso? Volta. - meus olhos estão fechados ainda, mas algo vital, visceral pede pra eu abrir eles, força o espaço entre as pálpebras, força eu a voltar. Olhos abertos, posso ver novamente a floresta, a noite escura e a neve la em cima, caindo no meu olho. Posso ver o cabelo escuro da Fernanda, jogado sobre meu rosto. Ela esta deitada sobre meu corpo me aquecendo. Não consigo me mexer, sinto frio ainda, muito frio.
Dói para respirar, não sou capaz de puxar o ar. Do fundo do torax vem o impulso para tossir. A tosse foi a única maneira de me comunicar com a Fernanda, a unica maneira de agradecer e mostrar que voltei. Ela se assustou com o movimento da tosse, com o barulho, comigo. Deu um pulo e saiu de cima do meu corpo.
- Sua idiota!! Deveria te deixar aqui, congelando no frio. - Eu não conseguia falar, meu corpo estava duro, com muito esforço consegui levantar os labios em um sorriso - Te odeio! Estou te procurando a um tempão! E se eu não tivesse te achado? Hein Caroline?! Fala alguma coisa! Te odeio! - eu sussurrando, quase que respirando fundo soltei:
- Se eu não tivesse com tanto frio, te beijava!
- Idiota! Sério garota, como você faz isso? Preciso te aquecer, vem vamos pra casa, você precisa de um bom chá quente. - Primeiro ela se ajoelhou, ficando em uma postura firme e confortável, passou a mao por baixo das minhas costas e me ajudou a sentar no asfalto. Meu corpo continuou tremendo intensamente, tentando se auto aquecer. A Fernanda, apesar da raiva absurda que ela tentava demonstrar, ela me ajudou carinhosamente a caminhar até o carro e a se sentar no banco do passageiro. Assim que eu consegui me acomodar, ela arrancou o casacão que ela estava usando e jogou sobre o meu corpo, fechou a porta e correu para o banco do motorista, ligou o ar aquecido. Não trocamos nenhuma palavra daquela estrada até a casa dela, pude perceber ela resmungando e me chamando de idiota mil vezes durante o trajeto de uns 15 ou 20 minutos de carro.
Assim que chegamos o mais próximo possível da casa de pedra ( um jeitinho que apelidei a casa dela, que realmente é uma casa de pedra) ela estacionou o carro e desligou o aquecedor.
- Vou desligar o aquecedor, você fica aqui no carro por um tempo, estabilizando a temperatura. Vou entrar em casa e colocar mais fogo na lareira, pra casa ficar quentinho. - A cada palavra dela eu consegui sentir o carinho e o cuidado que estava tendo comigo, por mais que ela estivesse demonstrando estar brava e querer na verdade me bater. Não demorou muito tempo e ela voltou, me ajudou a levantar do banco e a caminhar até a porta da casa, meu corpo estava mais quente, mas os musculos pareciam travados, rigidos.
Assim que passei pela porta da casa da Fernanda, aquela sensação de lar, me preencheu mais uma vez como mais cedo, quando voltamos de Maçores. A sala estava quentinha, aquecida com o calor da lareira. Havia algo aquecendo no fogão, mas nem dei muita bola. Assim que avistei o sofa, meu corpo pediu por ele instantaneamente.
- Fer, deixa eu deitar aqui no sofa.
- Claro que não. Vai deitar lá na cama e eu vou levar alguma coisa para você comer, quente. - E continuou, sem nem considerar nada, me auxiliando a caminhar. Apesar de tudo isso ter começado por uma relativa briga nossa, a Fernanda me levou caminhando até o quarto dela, onde me ajudou a deitar em sua cama. Assim que me acomodei, ela jogou a coberta por cima, olhou pra mim com um olhar doce e carinhoso, que a cara emburrada e brava não era capaz de esconder - Não dorme. Espera ai que vou trazer alguma coisa quente pra você.
- Você fica linda toda brava comigo Fer. - ela olhou pra mim fez uma cara de vergonha, misturado com to puta com você e seguiu para fora do quarto. Não demorou muito, ela voltou com uma caneca fumegando, com leite quente e chocolate.
- Toma esse leite aqui. E é pra beber quente, pra esquentar o corpo. Os musculos já estao menos duros?
- So estao doloridos agora, não sei se por correr ou pelo tanto que tremeram - falei isso soprando longe o vapor daquele leite e já esperando a bronca da Fernanda.
- Toma o leite ai e descansa. Eu vou ficar la no seu quarto.
- Fer, não vai não. Acho que eu melhoro mais rapido se você deitar aqui comigo.
- Gineco, você precisa descansar, não sabemos quanto tempo ficou apagada, naquela estrada, embaixo da neve.
- Eu sei, por isso preciso de você aqui Fer, me sinto segura com você por perto.
- Se eu ficar vamos acabar brigando de novo e eu não quero você correndo na neve de novo. Melhor evitarmos a fadiga.
- Eu fui muito imatura fazendo isso, me desculpa. Por favor, fica aqui comigo, prometo que não vamos brigar e eu não vou sair correndo, literalmente.
- O que você não pede com essa carinha de cão sem dono que eu não faço. Já volto. E você, bebe logo esse leite pra esquentar.
A Fernanda saiu do quarto, ficou fora alguns minutos. Quando voltou estava com mais uma caneca de leite quente, fumegando fumaça. Me entregou mais essa caneca e sentou, na beira da cama, da cama dela, como se estivesse com medo de chegar muito perto de mim.
- Vai ficar ai na beira da cama? Vem aqui mais perto. Eu não mordo, e outra o quarto é seu. - ela me mostrou a língua, e se aproximou mais de mim, por cima da coberta, sem contato. - Vem aqui embaixo, tá quentinho.
- Ainda bem, morrer de hipotermia em pleno século 21 é absurdo demais - falou quase rindo da minha cara e sentou debaixo da coberta, sem contato físico
- Eu vou ficar em Urros.
- Você está em Urros, princesa. Bateu a cabeça na queda é?! - eu soltei a caneca de leite quente, apoiando-a no chão, e com as maos livres busquei a mão da Fernanda.
- Eu sei que estou em Urros Fer, mas o que eu quero dizer é que eu escolhi ficar em Urros. - ela fez uma expressão de que ainda não tinha entendido, caramba que lenta - Fer, enquanto eu estava apagada, que eu não sei quanto tempo foi, eu vi minha mae. Nos duas, junto com meu pai, na praia que eu cresci, em Cabo Frio. Ela falando que eu precisava acreditar no novo, me arriscar. Eu ouvi você me socorrendo Fernanda, eu ouvi você me xingando, e minha mae falando que esse era o jeito quer você sabia me dizer que gostava de mim, que me queria perto.
- Você definitivamente bateu sua cabeça na queda, teve alucinação mesmo.
- Para de ser chata, estou falando sério. Não sei se bati ou não a cabeça, mas quando eu voltei e senti você em cima do meu corpo, me aquecendo, percebi que o que minha mae me disse era verdade, esse é o seu jeito de demonstrar seus sentimentos, e eu devo te dar uma chance. Não uma chance a você apenas, uma chance a mim tambem, de arriscar tudo, de sentir medo do novo, de assumir uma grande responsabilidade, devo isso a ela e devo isso a mim. Amanha cedo eu vou ligar pra Marcela, avisar que aceito a proposta e pedir pra Clara antecipar meu voo, preciso ir ao Brasil resolver tudo que está pendente lá e seguir em frente. Quando eu voltar para Portugal, ai será nossa vez, eu ficar aqui não significa que teremos alguma coisa, tenho total consciência disso, mas abre um espaço de tempo maior para podermos conversar e ver se você me aceita. - Eu falei isso tudo quase que olhando pra baixo, não consegui olhar nos olhos da Fernanda, mas quando eu terminei de falar, respirei fundo e levantei o rosto, procurando os olhos dela, a parte mais transparente que essa pediatra tem, os olhos, o olhar.
Os olhos da Fernanda estavam vivos, brilhantes, enquanto sua expressão não era de surpresa, mas era leve, como se estivesse confiante com a minha resposta e tirado um peso absurdo das costas. Quando vi o leve sorriso, ainda atordoado dela, não pude me segurar e manter a seriedade que o momento exigia, eu abri um sorriso imenso, cheio de sentimentos e da felicidade que eu finalmente estava sentindo depois de tanto tempo fechada. Minhas mãos já sabiam que caminho seguir, mas meus labios foram mais rapidos.
Minha boca estava quente por causa do leite que eu havia tomado e a excitação e medo de contar para a Fer que eu iria ficar em Portugal, a da Fer estava fria, gelada. Quando nossos labios se tocaram, e a lingua pediu espaço a diferença de temperatura foi gloriosa. Minhas mãos procuraram o pesçoço dela, aproximando os corpos, querendo mais contato, simplesmente querendo mais dela, de nos. Um beijo leve, aconchegante, calmo, que aos poucos as maos dela foram procurando espaço em mim, procurando um maior contato.
- Sei o quanto você é justa e correta, não vou te forçar a nada, nunca. Terá o tempo que precisar para estar pronta e preparada para ser feliz ao meu lado. - A Fer falou isso ao pé da minha orelha, sendo mais uma vez linda como ela sempre é. Voltamos a nos beijar depois disso com calma, leve, sem pressa nem aceleração. Nos beijamos até cansarmos e ela encostar a cabeça no meu colo e dormir em paz, calma, sem pesadelos, sem gritos de medo.
Acordei no dia seguinte completamente perdida no tempo e no espaço, atordoada e com o corpo dolorido como se eu tivesse passado horas na academia. Posso dizer que dois meses sem correr, seguido de algumas horas correndo no frio, são o suficiente para quebrar qualquer ser humano. Ao meu lado a cama estava vazia e pela janela estava escuro ainda, nublado e com uma neve intensa caindo. Da sala/cozinha, vinha um barulho de pratos e copos batendo, o que mostrava que a Dona Fernanda já estava em pé e pelo cheiro a algum tempo. Virei e revirei para o lado, tentando achar alguma posição para dormir mais um pouco, mas o dolorido muscular pesou e decidi levantar.
Assim que saí do quarto, vi a cena que anda sendo costumeira e eu adorando, ela de costas cozinhando. Não estava tomando vinho, claro, ainda é muito cedo, algo fumegava em sua caneca.
- Sabia que a cama fica vazia sem você lá? - falei no cangote dela, abraçando-a
- Até parece, você nem se preocupa com isso, saí da cama que você nem se mexeu- ela continuou mexendo em alguma coisa no fogão, que fui incapaz de identificar.
- Estava cansada gostosa. Você conseguiu dormir?
- Perdi o sono no meio da madrugada.
- É mesmo? Porque?
- Eu to pensando aqui e se você for pro Brasil para organizar suas coisas e simplesmente ver sua mulher de novo e querer voltar com ela? E se quando ver sua clinica, seu irmão, você abandonar tudo que prometeu pra mim?
- Jura que você perdeu o sono por isso Fer? - Soltei ela do abraço e puxei ela de frente, rindo delicadamente do medo bobo dela e da carinha de perdida que ela estava. - Que tal confiar um pouquinho mais em você e em mim?
- Eu já confiei uma vez em alguém como você e me quebrei por completo.
- Quer ir pro Brasil comigo? Devo ficar lá umas 2 semanas, talvez menos. - Não pensei nem meia vez em falar isso pra ela, iria fazer essa proposta de todo modo.
- Não posso largar Úrros para ir com você, eu acabei de voltar de férias. Não posso ser tão displicente.
- Se conversar com Marcela e pedir com jeitinho ela deixa.
- Claro que deixa. - Essa ultima frase ela soltou, como um grunido, baixinho, enquanto se soltava do meu corpo e voltava ao fogão.
- O que foi Fer? To meio que cansada de tentar adivinhar você, adivinhar o que você quer falar. Princesa, não tenho bola de cristal.
- Se troca, vamos conhecer a maternidade, depois te levo onde tem sinal de celular para você agendar a passagem.
- Tenho que avisar a Marcela antes.
- Ta comigo, tá com Deus. Me avisou ta avisado pra Marcela.
- Oi?! Você tem linha direta com ela, princesa?
- Não bobona. MAs pode deixar que eu mesmo aviso a Marcela.
- Vamos agora cedo? Eu tenho consultório, atendimento.
- Deixa que eu organizo isso para você. Apenas precisa se trocar e ficar preparada para sairmos.
- Não é assim Fernanda, e os pacientes? Eles vêm de cidades de longe pra passar em uma consulta, não posso simplesmente chutar eles assim.
- Aff, você se preocupa demais com muitas pessoas. Pessoas que você nem conhece.
- Pessoas que confiaram em mim, mesmo sem me conhecer, me entregando seu bem mais precioso, a saúde. Devo me preocupar mesmo com elas. Posso sair mais cedo do hospital para irmos conhecer a maternidade, pode ser? Não vou deixar de atendê-las.
- Por atitudes e frases como essa, muitas pessoas acreditam que você seja a pessoa correta e mais centrada para assumir a maternidade, sempre se colocando a frente dos pacientes.- ela olhou seria, mas verdadeira enquanto conversava comigo.
- Que pessoas Fernanda? O projeto não é como uma ONG? Eu ajudei durante um tempo, no Brasil a encontrar doadores e patrocinadores.
- Pessoas doam grandes valores para o hospital Carol, essas pessoas acreditam que você seja uma boa aquisição para o projeto e para Urros.
- Aquisição? O que você quer dizer com isso Fer? - ela mais uma vez me largou na conversa, retornando a afazeres superfluos.
- Não aquisição, como dizer … uma boa pessoa para estar conosco, pro hospital.
- Fer, juro que não vou te forçar a falar, mas sinto que tem tanta coisa pra você me contar e que não quer falar.
- Para com isso Carol, bobagem sua.
- Você acha que eu sou uma boa pessoa para ficar em Urros, para assumir o hospital? Você esta aqui a tanto tempo, porque você nunca te convidaram pra isso?
- Para de colocar caraminholas ai na sua cabeça. Você é a pessoa perfeita para esse cargo, dedicada, inteligente, leal aos seus princípios. É ginecologista, essencial para assumir a maternidade. Tem bons contatos. E minha observação pessoal, é linda e apaixonante - fechou a frase me beijando.
- Hhahaha, sabe acalmar bem uma conversa hein dra. Mas não pensa que vai fugir de mim muito tempo, vai precisar me contar tudo um dia.
- Um dia gineco. Um dia. Vai se arrumar que eu preciso terminar isso aqui, a gente come e vai pro hospital. Tenho mil coisas pra fazer e vamos sair mais cedo, pra conhecer as obras da maternidade.
Assim que cheguei no hospital, percebi que apesar da neve e do frio, essa população precisava mesmo de atendimento, pois o lugar estava cheio. Se eu realmente quisesse sair mais cedo para conhecer a maternidade, teria que fazer o dobro de trabalho, na metade do tempo, sem perder qualidade. A variedade de atendimentos e pacientes desse lugar me encanta, não fica atrás de nenhum hospital em São Paulo.
Quando já se passava das 13 horas, a Fer apareceu na minha porta, olhando com carinha de sapeca se eu já estava liberada, aproveitou que minha porta estava aberta, pendurou de lado o rosto e lançou:
- Liberada gineco, podemos ir?
- Deu sorte ped, eu acabei de atender a última paciente. Nunca pensei que eu poderia atender em tão pouco tempo. Estou quebrada
- Corre mais hoje a noite e fica perdida na floresta.
- Nossa, que mala. Não vou mais fazer essas coisas. - eu já em pé não pude resistir aquela carinha de sapeca dela, eu estava louca de vontade de encher ela de beijos, isso sim. Rapidamente fechei a porta do consultório, e enquanto ela ainda pensava no mundo, eu pensava apenas nela.
As cenas se deram como flashes. Puxei ela pelo jaleco, tão sexy com cara de médica responsável. Empurrei ela delicadamente contra a porta. Passei uma mão por dentro de seu jaleco. Com a outra envolvi seu pescoço. Dei um passo à frente. Me aproximei do seu corpo. Colei meus lábios no seu. Pedi passagem para minha língua. Massageava seu cabelo. Senti a temperatura de sua boca. Senti seu gosto. Pescoço exposto. Lábios na pele. Gostoso! Rápido!
Saiu do meu pescoço. Voltou aos meus lábios. Abri meus lábios. As línguas se encontraram novamente. Que gosto maravilhoso. Seu perfume estava em meu nariz. Seu aroma me enlouquecia. Desci minhas mãos pelo jaleco, puxei sua cintura para colar mais os corpos.
Não faço sex* a um relativo tempo, meu corpo já dá sinais de que está parado a tempo de mais. Mas ainda não estou pronta para esse passo, sex* é algo importante, significativo pra mim, não sou capaz de arriscar esse momento especial com a Fernanda estragar, entao deverá ser quando eu estiver pronta.
- Vai me apresentar o predio que vou trabalhar ou vai ficar aqui me atacando?
- Ahhhh, como você consegue me enlouquecer assim Caroline? Com um beijo desses eu perco o juizo.
- Nossa princesa, você é tao fragil assim? Para de chororo e vamos, antes que a neve caia mais e você me large na estrada escura e fria. - ela mostrou a lingua, que estava sendo nosso código para brincadeiras. Abriu a porta e saiu pelo corredor, andando um pouco a minha frente, mas eu podia sentir o sorriso dela e seu bom humor.
A Fernanda definitivamente me faz uma pessoa diferente, que arrisca, que sente emoções, impulsiva. Nunca fui impulsiva, sempre fui a pessoa que pensava mil vezes antes de qualquer ação, de qualquer ato. Há 3 ou quatro semanas atras, eu absolutamente nunca sairia numa estrada escura e fria para correr. Na verdade eu me enfiaria no meu escritorio, com aquela maquina de cafe deliciosa que eu tenho e não sairia mais, até eu me acalmar ou a Christiane brigar comigo.
Essa vida em Portugal, que eu estou escolhendo, pode ser de verdade, um passo para a menina jovem e desinibida que eu escondi dentro da irmã mais velha e responsável, da esposa séria e da médica exemplar. A jovialidade dessa pediatra me mostra que dentro de mim, ainda há vida e alegria.
Fim do capítulo
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DiJaq
Em: 08/07/2018
Que maravilha de história! O começo eu achei muito morno e me condoía com o ego da Chris, mas quando a história mostrou mais da Carol, me prendeu a atenção. Quando entrou a Fernanda, borbulhando afetos, aí me conquistou de vez! Não paro de ler e reler! A Fernanda resgatou a vivacidade! Estou amandooo! por favor, continue a nos cativar autora!!!
#teamfer
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