EPISÓDIO 14 – Terceira vítima
Fernanda chegou ao local do crime acompanhada de Letícia, logicamente só esse fato já despertou a curiosidade e os burburinhos entre os policiais e peritos. Especialmente pelos trajes que Fernanda usava, se equilibrando naquele salto, incomum no cotidiano da policial.
Beto e Ferreira se entreolharam, Fernanda tentou fingir naturalidade, mas se quer podia se abaixar para ver detalhes do corpo, uma vez que seu decote não permitia. Letícia obviamente evitou olhares de interrogação dos seus assistentes de laboratório, pedindo um jaleco, luvas e óculos de proteção e sem muita cerimônia, mas com alguma dificuldade se ajoelhou diante da vítima e foi orientando os demais peritos que amostras deveriam ser colhidas ali.
-- Já temos a identificação da vítima? – Fernanda indagou fugindo dos olhares dos colegas.
-- Não. Assim como as outras vítimas. Sem testemunhas também. – Ferreira respondeu.
-- Fernanda, a mesma marca, feita supostamente com ferro quente, a marca que o assassino dos livros da Catherine Morgan utilizava.
Fernanda franziu a testa não só para a observação da médica, mas também por ela tê-la chamando de maneira informal diante dos colegas de trabalho.
-- A vítima tem sinais de luta doutora? – Fernanda emendou a pergunta.
-- Não. Mas veja: ele extirpou os olhos da vítima. Ele usou de mais crueldade, só poderei dar mais detalhes quando fizer a autópsia.
-- Ok então, vamos levar o corpo. Beto o local já foi isolado pelo que vejo, peçam para os peritos vasculharem tudo, qualquer pedaço de papel, marca no piso, aliás, que lugar é esse?
-- Estação de trem desativada. Sem movimento desde que a prefeitura lançou o programa de combate ao Crack, aqui antes era uma cracolândia.
-- O cara é bom, só escolhe lugar a dedo, e é porque são tortos... – Fernanda resmungou. - Vamos fazer uma diligência no local, quem sabe alguém viu algo suspeito.
Fernanda e Letícia evitavam se olhar, mas Beto e Ferreira cochichavam.
-- Aê, vocês dois, dá pra parar com o papo de comadre e trabalhar?
-- Calma aê ow perua, a gente não precisa receber ordens não!
-- Então vamos lá, façam!
Fernanda fez sinal com as mãos para os colegas se dispersarem, evitando assim perguntas descabidas.
-- Vamos remover o corpo F... Agente Garcia, o rabecão já chegou. – Leticia disse se desfazendo das luvas.
-- Tudo bem doutora, encontro a senhora mais tarde.
Fernanda percorreu o local em torno usando uma lanterna, a atmosfera era mórbida, típica de um filme de suspense do Hitcock. Enquanto seguia na direção contrária a saída, encontrou um velho vagão cheio de ferrugem, pichações, e um pequeno barulho vindo de lá. Armou-se em posição de ataque, e sorrateiramente invadiu o vagão e para sua surpresa estava lá, encolhida no escuro sua amiga Dulce.
-- Porr*! Dulce! Puta que pariu! Tá de brincadeira! De novo?
Dulce se levantou trêmula e abraçou a amiga. Mesmo contrariada, Fernanda correspondeu ao abraço.
-- Ow maluca o que acontece com você? Você tá sempre metida em encrenca, como você chegou aqui, nesse exato local?
-- Tenho minhas fontes...
Dulce disse se afastando de Fernanda.
-- Essas suas fontes...Dulce! Você conseguiu um rádio que sintoniza a frequência dos rádios da polícia não foi?!
Dulce ficou desconfiada, tentou se esquivar.
-- Responde!
-- Não consegui um rádio, mas alguém que opera... E me avisa sobre um caso interessante.
-- Eu sabia!
-- Poxa Nanda, você não cumpriu nosso acordo...
-- Dulce não descobrimos o assassino, não posso revelar segredos de investigação, o que você faria com eles? Quando eu pegar esse louco, te garanto que você será o primeiro membro da imprensa a saber de tudo! E não estou preocupada só com o sigilo da investigação, estou preocupada com sua segurança! Você acha que esse louco faria o que se te visse? Acenaria com a mão torta dele e daria boa noite?
Dulce baixou os olhos recebendo a repreensão da amiga.
-- Nanda, eu me escondi aqui quando a polícia chegou, dessa vez não consegui chegar antes. Já sabem quem é a terceira vítima?
-- Não. Exatamente como nos outros casos. Com a mesma marca do livro, e dessa vez, ele foi mais cruel, arrancou os olhos da vítima.
-- Isso estava no livro da Catherine Morgan.
-- Vamos sair daqui, esse lugar está me dando arrepios... – Fernanda puxou Dulce.
-- Você me leva pra delegacia com você? Só pra me manter informada, eu fico quietinha na sua mesa, juro. Vai que aparece outro caso que eu possa fazer um “freela”, minha grana tá curta Nanda! A Gi é uma fofa, não me cobra nada, mas eu fico constrangida, me sustento desde meus 20 anos...
-- Cara, com o patrimônio que sua família tem... Você sabe que tem direito a parte disso, nem é preciso você se entender com sua mãe, basta pedir judicialmente sua parte, qualquer advogado consegue isso.
-- Já disse que não quero Nanda! Aquela mulher me humilhou a vida toda, não quero o dinheiro dela, nem da família nobre dela.
-- Cabeça dura! Vamos então.
-- Ei, espera aí... Nem notei no susto a sua super produção! De onde saiu essa blusa fashion e esse penteado sensação? Nanda onde, e o principal: com quem você estava?
-- Olha só, eu não sou famosa, essa informação não vai render um real a você, então não me torra, que eu te deixo no primeiro ponto de táxi e nada de visita como convidada no meu departamento tá?
-- Ai Nanda, curiosidade de amiga só... Você está um espetáculo! Nunca te vi assim...
-- Está me dizendo que só ando malamanhada é?
-- Não, só estou dizendo que não é bem seu estilo e em uma cena de crime...
A cara de desconfiança de Dulce já tinha uma hipótese formulada. O ar leve da policial só confirmava isso. Fernanda disfarçava, falando superficialmente sobre a investigação, mas, Dulce atentava para outros detalhes: a maquiagem, o salto, a elegância dos trajes e acessórios. Pensava sozinha:
-- “Gisele tá dormindo no ponto”,
Chegaram à delegacia e fizeram os procedimentos de praxe, as burocracias para abertura de inquérito, quanto a Dulce, ficou quieta, como prometera a policial. Mas, não tão quieta a ponto de evitar mandar mensagem de texto para Gisele:
--“Estou na delegacia, o assassino seguiu mesmo seu livro, agora são três mulheres assassinadas, essa última com os olhos retirados mesmo modus operandi do seu livro. P.S: A Nanda está um arraso, acho que rolou encontro com alguém hoje a noite, se liga!”
******
Gisele recebeu a mensagem e não pensou duas vezes, pegou a bolsa e entrou no primeiro táxi em direção à delegacia de homicídios. Agora ela tinha um motivo mais que justificável para intervir na investigação como assessora intelectual: o assassino confirmou que o livro de Catherine Morgan estava se compondo na realidade de vítimas inocentes.
***************
Cansada de esperar notícias, e curiosa como sempre, Dulce andou pelos corredores do amplo prédio da delegacia, até ousou flertar com alguns dos policiais de plantão. Chegou a porta do elevador e viu as placas que indicavam o que cada andar abrigava. Olhou para os lados, como quem cometia um delito, apertou o botão do sétimo andar “perícia médica”.
Dulce andou pelos corredores brancos, algumas portas e janelas de vidro, através delas, via pessoas de jaleco branco fazendo experiências, outras mexendo em balanças, outras com os olhos no microscópio. Ao final do corredor, uma porta com uma placa: “Dra, Letícia Muller Souto – PhD chefe da perícia médica”. Paralela à porta da sala, outra placa indicava: Necropsia.
A jornalista não teve dúvidas, apesar do pavor por saber que encontraria cadáveres ali, entrou sem pedir licença. Gisele estava ali, concentrada, cortando precisamente o tórax da vítima ainda não identificada, quando ouviu um baque equivalente a um corpo que caía no chão.
Com o susto, Letícia girou o corpo e reconheceu Dulce ali no chão desmaiada. Largou o instrumental que usava, retirou as luvas e discou para o celular de Fernanda.
-- Oi Lê... Está tudo uma loucura aqui em baixo, a imprensa já descobriu, o Wellington está perdendo os últimos fios de cabelo, desculpa o jeito seco de mais cedo na cena do crime... – Fernanda falou quase cochichando perto de uma janela.
-- Shi... Calma, não estou chateada, imagino o tumulto que está por aí. Estou trabalhando, os peritos já estão fazendo exames de DNA para tentarmos descobrir de quem se trata.
-- Então ligou só para ouvir minha voz? – Fernanda perguntou mordendo os lábios, a ponto de fazer Letícia esquecer por um momento de Dulce ali desmaiada.
-- Já seria um bom motivo...Mas, a verdade é que estou com sua amiga aqui no laboratório da necropsia,
-- Ah minha santa! Eu tinha que ter algemado a Dulce na minha mesa!
-- Fê... Ela está desmaiada, melhor você vir aqui.
-- Ai...Adorei o “Fê”... Subiria de qualquer forma só pra ouvir você dizendo isso no meu ouvido.
-- Então vem logo...
Letícia falou mordendo o lábio inferior, observando que Dulce voltava à consciência.
-- Oi, Dulce, não é? Como está se sentindo?
Dulce apertou os olhos. Letícia ajudou-a se sentar, e depois a se levantar e sentou-a em uma poltrona.
-- Estou um pouco tonta...
-- Não, você é tonta!
Fernanda disse ao entrar no laboratório.
-- Que diabos você está fazendo aqui criatura? Não te disse pra você ficar lá na minha mesa que eu te traria qualquer novidade? Ao invés disso você vem se estatelar no chão, no meio dos defuntos, atrapalhando a doutora?
-- Ain... Calma Nanda!
Letícia franziu as sobrancelhas censurando o tom de Fernanda com a amiga.
-- Ela não me atrapalhou agente Garcia. Mas, Dulce, o que você sentiu antes de desmaiar? – Letícia disse examinando a jornalista superficialmente.
-- Eu vi você cortando a defunta aí, ficou tudo escuro, e não lembro mais de nada.
-- O que você esperava encontrar em um laboratório de necropsia Dulce? – Fernanda perguntou ainda em tom de censura.
-- Corpos cobertos por lençóis brancos? – Dulce respondeu fazendo careta.
Letícia sorriu do jeito quase inocente da jornalista. Fernanda então orientou:
-- Volta lá para minha mesa, me espere lá, vou conversar com a doutora sobre a vítima.
Fernanda disse com objetivo de ficar a sós com a médica. Dulce tentou se levantar e ficou tonta novamente ao se deparar com o corpo exposto, franziu o cenho e ficou pálida.
-- Ela vai desmaiar de novo! – Fernanda disse se antecipando segurando a amiga pela cintura.
-- Nan... Nanda – Dulce gaguejou.
-- O que foi criatura?
-- Eu conheço essa mulher! É minha amiga!
Só deu tempo Dulce berrar isso, e caiu nos braços da policial, desfalecida. Letícia então sugeriu que Fernanda levasse a amiga para seu escritório, era o mais próximo dali onde podia acomodar a moça diante daquela descoberta traumática.
No escritório da médica, Fernanda deitou Dulce no sofá, enquanto Letícia trazia um copo de água, notando que a jornalista dava sinais que voltava à consciência.
-- Dulce? Está me ouvindo? – Fernanda perguntou segurando o braço da amiga.
-- Sim... Nanda, diz que eu estou delirando, ou que estou em um pesadelo terrível... Não posso acreditar que... A terceira vítima desse louco é minha amiga!
Fernanda segurou o braço da amiga carinhosamente e respondeu:
-- Dulce, você vai precisar vê-la de novo para reconhecê-la, e aí se for a mesma pessoa, entraremos em contato com algum parente para fazer o reconhecimento oficial.
-- Nanda! Ela é minha amiga, nos formamos juntas, ela estava me dando a maior força procurando emprego pra mim! Falei com ela ontem! Não pode ser!
-- Dulce, você viu de longe, estava assustada, pode ter se enganado.
Leticia disse entregando o copo de água, tentando acalmar a jornalista.
-- Eu não vou aguentar ver aquilo de novo... – Dulce disse soluçando.
-- Vamos fazer o seguinte: vou cobrir o corpo, realmente a visão de um tórax aberto não é das mais agradáveis, deixo somente o rosto dela exposto, e abro as persianas e você a vê pelo corredor.
Letícia sugeriu e Dulce acenou em acordo. Fernanda permaneceu ao lado da amiga, enquanto ela confirmava em meio a lágrimas.
-- É ela Nanda! É a Aninha!
Fernanda apenas balançou a cabeça positivamente para Letícia, que fechou as persianas e voltou ao escritório onde Dulce era consolada pela policial.
-- Dulce eu sinto muito por sua amiga. – Letícia apertou as mãos da jornalista. – Fernanda, eu vou esperar o reconhecimento do corpo pela família para prosseguir com a autópsia, você pode pedir para apressarem o contato?
-- Claro. Dulce, você tem o telefone de alguém da família dela? – Fernanda perguntou envolvendo os ombros da amiga em um abraço.
-- Tenho o telefone da casa dos pais dela, acho que ainda é o mesmo da época da faculdade.
Trêmula, Dulce retirou seu aparelho celular do bolso e exibiu o número da agenda para Letícia que anotou imediatamente.
-- Vou pedir ao Agente Ferreira para contatar os pais dela.
-- Anote também o telefone do jornal que ela trabalha, no caso de o telefone dos pais estar desatualizado. – Dulce completou.
Enquanto Letícia desceu a fim de repassar as informações pessoalmente para Ferreira, Gisele ligava para Dulce que atendeu com voz de choro:
-- Oi Gi.
-- Estou aqui na delegacia, na mesa da Nanda, cadê você?
-- Estou no escritório da doutora Letícia.
-- Que voz é essa Dulce? O que você aprontou?
Dulce deixou o pranto correr quando Fernanda tomou o aparelho das mãos da amiga.
-- Gisele, suba para o sétimo andar, última sala, vou autorizar seu acesso.
-- Nanda? O que houve?
-- Conversamos aqui, é melhor.
Em poucos minutos Gisele bateu a porta do consultório de Letícia, encontrando Dulce em um pranto incontrolável nos braços de Fernanda.
-- Minha amiga o que aconteceu?
Gisele disse se sentando do lado oposto de Fernanda, puxando o corpo de Dulce para si em um abraço confortador. Aos poucos Fernanda explicou o ocorrido, deixando a escritora apavorada.
-- Mas o que está acontecendo afinal? Primeiro uma mulher ligada a mim, depois uma ex-namorada sua, e agora uma amiga da Dulce? Nanda isso não pode ser coincidência!
A reflexão assustada de Gisele foi ao encontro do questionamento que a policial fazia mentalmente logo depois de Dulce revelar sua ligação com a última vítima. Fernanda se levantou andando de um lado para outro na sala, intrigada, e mais do que isso, igualmente assustada como as outras duas amigas.
Letícia voltou à sala, notou a presença de Gisele, uma ponta de desconforto foi sentida pela médica, ressentiu o ciúme de outrora, mas, o momento não dava espaço para tais questões, cumprimentou com um gesto a escritora que a essa altura já chorava junto com Dulce.
-- O Ferreira localizou os pais da vítima, estão a caminho. – Leticia sussurrou para Fernanda.
-- Obrigada Letícia.
A expressão angustiada de Fernanda e seu descuido em chama-la pelo nome em público chamou a atenção da médica que fez sinal para saírem do escritório. Voltaram à sala da necropsia, Leticia trancou a porta e abraçou Fernanda intimamente.
-- Eu sei que você está assustada. As vítimas tem algo em comum, não é? Você e suas amigas.
Sem saber ao certo por que se sentia tão segura nos braços de Letícia a ponto de expor sua fragilidade, Fernanda correspondeu a intensidade do abraço.
-- Isso é um pesadelo Lê...
-- Nós vamos descobrir quem é esse assassino e você vai prendê-lo, a justiça será feita.
Dessa vez, os olhos verdes cintilantes de Letícia encontraram os olhos marejados da policial, que se viu desarmada, transparente ao olhar da ruiva. A médica segurou o rosto da morena com as duas mãos e a beijou delicadamente.
-- Vou te ajudar a descobrir esses crimes, e estou do seu lado, bem aqui perto Fê.
Fernanda abriu um sorriso discreto, mas, no seu interior, experimentava uma sensação de conforto, paz e segurança nas palavras e gestos de Letícia. A médica por sua vez, estava absorta no desejo de proteger e apoiar Fernanda que pela primeira vez, deixava de lado sua aparente fortaleza inabalável, conhecer esse lado da personalidade da morena, instalava entre elas um vínculo mais profundo do que a atração entre seus corpos.
Fim do capítulo
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