Capítulo 10: EM SEGREDO
A saia justa da madrugada ia repercutir: disso Fernanda tinha certeza. Naquela reunião inesperada na delegacia, cada uma experimentou um sentimento diferente. Fernanda tentava a todo custo disfarçar a paixão nascente com Letícia, esta por sua vez, se sentia insegura diante de Gisele, tendo em vista que os olhares dessa denunciavam desconfiança e ciúme com a policial, especialmente pelas provocações lançadas por Dulce, que não entendia a presença da legista ali, naquela hora.
Dadas as circunstâncias, naquela noite, cada uma seguiu para suas respectivas casas, sem a possibilidade de diálogos que despertassem mais suspeitas e constrangimentos. As muitas interrogações nas mentes de cada uma estimularam uma gama de hipóteses que tirou o sono especialmente de Letícia e Fernanda.
O dia seguinte era de trabalho intenso para os policiais envolvidos na investigação dos assassinatos das mulheres pelo Capitão Gancho. Como previsto, Ernesto dos Anjos deu meia dúzia de nomes de que traficavam ketamina como ele. Depois disso, Beto e Ferreira iniciaram a busca das fichas criminais dos citados e posteriormente a vigilância das ações desses foi montada.
Fernanda que liderava as investigações trabalhava com a equipe de informática da perícia, a fim de fixar a ligação do suposto Capitão Gancho com os locais das chamadas do número de celular fornecido por Ernesto dos Anjos e os locais dos assassinatos.
Mesmo empenhada no trabalho a impaciência de Fernanda por vezes se manifestava pela lentidão que os dados se apresentavam, e as muitas triangulações necessárias para chegar a uma informação mais precisa. Outro fato impacientava Fernanda: a ausência de Letícia.
Entediou se com aquele emaranhado de termos técnicos que os peritos discutiam, deu uma desculpa qualquer e subiu para o andar da perícia médica, direto para o escritório da legista chefe. Encontrou o lugar vazio, decepcionada, seguiu pelo corredor, e pelas janelas de vidro avistou o alvo do seu desejo, munida de seus objetos de trabalho, dissecando um órgão humano.
Fernanda ignorou a atmosfera pouco romântica da cena, o que queria e precisava era estar perto de Letícia, não protelou sua ânsia, bateu com dois dedos no vidro, chamando a atenção da ruiva, que lhe abriu um sorriso, convidando a policial para entrar.
-- Estava pensando em te chamar para almoçar, mas acho que acabei de tirar seu apetite julgando por sua cara de nojo para esse fígado...
Letícia brincou ao perceber a expressão de Fernanda para a bandeja. A morena sorriu sem graça, mantendo uma distância razoável da médica e do fígado remexido por ela.
-- Nojo? Imagina! Mas, com certeza vou fugir por alguns meses dos bifes de fígado que minha avó me obriga a comer...
-- Muito sábia sua avó se te obriga a comer fígado, é uma excelente fonte de ferro...
-- Ah! Nunca vou juntar vocês duas numa refeição... Vocês iriam calcular uma tabela de nutrientes a base de folha e vísceras de animais, esse troços de cozinha probiótica para cada dia da semana...
-- Devo entender que nunca vou conhecer sua família, ou que simplesmente não serei convidada para refeições familiares?
A pergunta de Letícia deixou Fernanda atordoada. Não soube responder a ruiva, instalando um silêncio desagradável. Até Letícia indagar:
-- E então? Foi proveitosa a noite com suas amigas? Catherine Morgan ajudou em algo na teoria do serial killer do seu livro? Ou foi só uma reunião de amigas de infância?
Letícia falou pegando um bisturi, cortando um pedaço do órgão ali exposto.
-- Noite com as amigas? Mas do que você tá falando Letícia? Eu fui pra casa, sozinha, não teve nada de proveitoso nisso...
-- Oh deve ter sido uma decepção para Gisele...
Letícia deixou escapar o tom de ciúme. Apesar de esconder a satisfação ao perceber isso, Fernanda não sabia como conduzir aquela estranheza circunstancial.
-- Letícia eu...
A médica virou-se abruptamente com o bisturi em punho enquanto Fernanda deu dois passos em direção a ela.
-- Opa! Peraí doutora, cuidado com esse treco aí!
Só nesse momento Letícia percebeu sua posição de ataque, devidamente armada, e riu da defesa da morena, deixou escapar um riso e largou o bisturi na bandeja.
-- Pronto, estou desarmada agente Garcia.
Letícia caminhou em direção a policial. Fernanda se aproximou, olhando para boca da ruiva demonstrando seu desejo. A médica não fugiu do olhar de desejo, no entanto, deu-se conta pela janela o movimento das pessoas pelo corredor e recuou, emendando outro assunto:
-- E então? Algum avanço nas investigações?
-- Tudo muito lento, mas, estamos trabalhando. Com alguma sorte, o Capitão Gancho vai contatar algum dos traficantes que o Ernesto delatou, e aí, quem sabe possamos prendê-lo e impedir uma terceira morte...
-- Você deveria ler o livro da Catherine Morgan que te dei... Poderia ajudar a entender a mente do assassino.
-- Pelo jeito vou ter mesmo que ler, a Gisele que poderia ajudar, não pareceu muito disposta a falar do terceiro assassinato do livro.
-- Ah foi? Talvez ela espere algo em troca pela assessoria especializada...
Letícia não escondeu o sarcasmo, mas, manteve sua postura sóbria e controlada. Fernanda deixou um riso escapar no canto dos lábios e arrodeou o balcão onde a legista manuseava uma lâmina no microscópio, ficando ao seu lado.
-- O convite para o almoço era de verdade? Ou você só tem fígado para me oferecer?
A proximidade dos corpos parecia acender faíscas nos olhos das duas. A faísca não estava só nos olhos, por que as peles pareciam atraídas por um magnetismo poderoso, irrefutável.
-- Acho que posso te oferecer mais do que um fígado. – Letícia sorriu mordendo o lábio inferior. – Apesar de concordar com sua avó que sobre a importância salutar desse alimento.
-- Argh! Não tire meu apetite Letíciaaa!
Letícia sorriu, foi acompanhada por Fernanda. Encararam-se. O brilho dos olhares, o descompasso dos corações, as mãos geladas e suadas, aconteciam praticamente em sincronia.
-- Se bem que estou faminta... – Fernanda olhou com volúpia para a boca de Letícia – Até fígado toparia...
Ruborizada a médica se desconcertou batendo a mão em uma bandeja de instrumentais no balcão, demonstrando seu nervosismo, quando ouviu um discreto:
-- Ram ram... – Carol pigarreou. – Eu bati no vidro, mas, vocês não ouviram... Nanda, conseguiram rastrear uma ligação de um dos traficantes, marcaram um encontro para hoje a noite, Beto está montando a operação, pediu que te avisasse.
-- Ah! Obrigada Carol. Muito bom.
Fernanda respondeu franzindo o cenho em seguida sinalizando para que a amiga se retirasse.
-- E o delegado está subindo para falar com a senhora doutora Letícia.
Carol completou, justificando sua presença ali: evitar um flagrante de Wellington.
-- Vamos Nanda?
Carol apressou a morena, para evitar o constrangimento de dar explicações ao delegado. Letícia tratou de se afastar de Fernanda abruptamente, assustando a policial.
-- Calma Letícia. – Fernanda cochichou.
-- É melhor que você ir Fernanda.
No mesmo tom Letícia respondeu, despertando raiva na policial, que saiu pisando firme, revoltada com a atitude da médica.
***********
Com toda operação arquitetada, Fernanda deixou o prédio depois de receber um telefonema de Gisele. Chegou ao flat da amiga, e a encontrou sozinha, sem sua temporária companheira de apartamento.
-- Conseguiu se livrar da Dulce? – Fernanda perguntou ao entrar.
-- Ela foi a uma entrevista de emprego.
-- Tomara que dê certo, assim ela larga do meu pé nessa investigação.
-- Não se engane, é justamente para uma vaga de repórter policial que ela está se candidatando.
-- Não é possível! Cara eu devo ter vendido o cabelo do Sansão pra uma cabelereira de quinta fazer mega hair em outra vida pra merecer a Dulce no meu encalço!
-- Não exagera Nanda, a Dulce te ajudou muito nesse caso, fez mais que eu, que deveria estar fazendo o que me comprometi e prestar minha assessoria para traçar o perfil do assassino.
Gisele falou baixando os olhos. Fernanda acomodou-se no sofá e respondeu:
-- Eu entendo que você tenha que ocupar sua cabeça com sua mente criativa de escritora, a Dulce é que não tem o que fazer, e adora uma encrenca.
-- Não fala assim Nanda! Uma menina que eu tive um affair foi morta na minha casa, e o assassino ainda usou um dos meus livros para se inspirar! Não sou uma deslumbrada arrogante que está alheia a essas mortes!
-- Nome bonito você achou pra uma peguete que você levou pra cama na primeira noite que conheceu: affair.
-- Ah Nanda! Paciência, vai dar uma de puritana comigo agora? Você nunca fez isso?
-- Claro que sim, mas eu sou a que pega qualquer uma, que não se apega a ninguém, que nunca se compromete seriamente em nome de um sentimento, não foi isso que você me disse anos atrás quando me deu um pé na bunda e foi embora pros “estates”?
O tom de Fernanda era irônico, mas Gisele entendeu como a exposição de uma mágoa guardada.
-- Eu não acredito que você vai falar nisso, pior, que você ainda se lembra disso! – Gisele suspirou sentando-se na poltrona à frente da policial.
-- Esse tipo de coisa Gisele, nunca se esquece. Mas, você tem razão, não há porque falar nisso.
-- Agora que começou, vamos falar nisso, por que pelo seu tom, tem uma situação mal resolvida entre nós, então, dispara logo, por que aquelas dezenas de e-mails que trocamos parecem não ter esclarecido tudo.
-- Para né! A gente tinha dezesseis anos, quanto tempo faz isso? Doze, treze anos? Não tem nada de mal resolvido Gisele, você seguiu seu caminho, eu o meu e nos encontramos por acaso, e esse acaso infeliz envolve a morte de mulheres que nos relacionamos, por isso estou aqui, não para discutir briguinha adolescente.
-- Você ainda guarda mágoa de mim Fernanda! Agora isso está claro! Por isso parou de me escrever, nunca estava em casa quando eu ligava, você me odeia?
-- A convivência com a Dulce está te fazendo muito mal sabia? Além de dramática como ela, você está ficando louca também, fantasiando demais. Parei de te escrever e-mails por que você se transformou em uma chata esnobe, contando vantagem das suas amigas incríveis, da fraternidade que você ingressou naquela bendita universidade americana! E você deve ter ligado umas duas vezes só que não atendi, uma no natal e outra no meu primeiro aniversário, não quis mesmo te atender, por que não queria ouvir você enfeitando seu sotaque “ingleisado”.
Gisele ficou boquiaberta com o desabafo de Fernanda, que jogou os cabelos pro lado demonstrando fadiga naquele assunto.
-- Dá pra gente falar desse seu bendito livro agora?
Fernanda disse com cara de poucos amigos diante de uma Gisele atônita.
-- Você me odeia...
-- Gisele, para, por favor! Claro que não te odeio, se eu te odiasse, acredite: você saberia desde que nos reencontramos.
-- Nanda você não me perdoou por não ter continuado nosso namoro... Por ter feito escolhas diferentes do que planejávamos...
-- Ei! Chega desse assunto, eu vou ter uma operação super casca grossa daqui a pouco, vim aqui a trabalho, mas eu vejo que você continua pouco disposta a me ajudar, vou ler seu livro, ou pedir a análise especializada de quem já leu e conhece desse povo maluco aí que você escreve...
-- Ah... Análise especializada... Está se referindo a doutora não é?
-- Definitivamente, a Dulce te contaminou, quer saber? Vou embora, estou cansada, com fome e ainda tenho muito trabalho hoje, boa tarde Gisele.
-- Espera Nanda...
Gisele segurou a mão da morena. A escritora estava trêmula, com os olhos marejados, aproximou-se e apertou mais forte a mão de Fernanda.
-- Não sai assim, chateada comigo.
-- Não estou chateada Gisele, só acho que essa conversa não nos levará a nada, e de fato, vim aqui a trabalho.
-- Você disse que estava faminta, ao menos deixa eu te servir algo. Você almoçou pelo menos?
Nanda balançou a cabeça negativamente.
-- Peço algo na cozinha do hotel, não demora muito...
Fernanda acenou em acordo, não desejava mal estar com Gisele, e o apelo da loira parecia um sincero pedido de desculpas. Como anunciou o almoço solicitado pelo serviço de quarto não tardou. Enquanto a morena praticamente devorava a refeição, Gisele sorriu discreta, outro olhar ali perceberia que o sorriso escondia uma paixão latente, uma admiração bem mais profunda do que uma simples amizade poderia despertar.
-- Que é? – Fernanda perguntou limpando a boca com um guardanapo.
-- Que é o que?
-- Você aí rindo olhando pra mim.
Fernanda recostou-se no balcão, colocando os cotovelos sobre ele, cruzando os braços.
-- Nada demais, estava me lembrando daquele acampamento das férias que passamos juntas em Teresópolis, que você desafiou o Leonardo Balofo...
-- Nossa! Verdade! Ninguém acreditava que eu comeria mais cachorros quentes que o Balofo!
-- E você ganhou o desafio!
-- E passei a noite na enfermaria vomitando...
As duas gargalharam.
-- Devo a Dulce, o fato desse desfecho ter ficado em segredo até hoje! Eu não sei o que ela aprontou, mas a enfermeira virou nossa cúmplice.
-- Pelo que conheço da Dulce, ela certamente sabia de algum podre da coitada da enfermeira e deve ter usado essa informação.
-- Bem a cara dela...
As amigas gargalharam de novo relembrando a cena.
-- Naquele acampamento, a gente... – Gisele ficou tímida, mas completou – Fez amor pela primeira vez.
Foi a vez de Fernanda ficar tímida. Retirou os cotovelos do balcão, mas permaneceu de braços cruzados, evitando olhar para Gisele, que se pôs ao lado da policial, continuando tímida a narrativa daquela lembrança.
-- A gente nem sabia o que estava fazendo direito... Mas foi tudo tão lindo, você encheu aquela barraca de camping de velas, preparou tudo...
-- E quase virou um incêndio! Eu era mesmo muito tapada, acender aquele monte de velas no meio do mato dentro de uma barraca de poliéster...
Fernanda tentou quebrar o clima de romantismo que Gisele rememorava.
-- Estava tudo perfeito, foi tudo perfeito...
Gisele passou o dorso de sua mão no braço de Fernanda, institivamente, a morena sentiu sua pele eriçar, o perfume da loira tão próximo, trazia um misto de sensações em Fernanda: as lembranças, a mágoa, a decepção, e a certeza de que Gisele estava certa, havia sim uma história mal resolvida entre elas, o passado não estava tão superado como a morena supunha até então.
-- Eu preciso ir Gisele. Obrigada pelo almoço, sobre minha vinda aqui, bom, pense no que você pode nos ajudar para nos anteciparmos ao assassino.
-- Eu vou pensar e te ligo quando tiver alguma contribuição a dar...
Gisele disse isso, se aproximando mais de Fernanda.
-- Mas vê se não some... Não precisa vir aqui me visitar só por causa do seu trabalho.
A escritora nesse momento foi expressiva na sua insinuação, praticamente sussurrou ao ouvido da morena. Fernanda sentiu um arrepio percorrer sua pele, quando os lábios de Gisele roçaram no seu rosto, a escritora deixou um beijo demorado na bochecha da policial que respirou fundo tentando recuperar seu estado imparcial diante da amiga.
Fernanda deixou o luxuoso prédio onde Gisele estava hospedada com uma inquietude inusitada. Desde o reencontro com sua amiga de infância e primeira namorada, não assimilara o que manteve guardado por tantos anos, o misto de ressentimento, saudades, decepção e o denso sentimento que representa o primeiro amor.
Buscou se concentrar na operação que se sucederia naquela noite. Enquanto acertava detalhes com seus companheiros de trabalho, percebeu Letícia chegando à sala do delegado. Acompanhou os passos da legista com o olhar, esta sentia a vigilância da policial, se rendeu procurando os olhos da morena, que lhe encarou séria.
-- Nanda tá tudo bem?
Beto perguntou observando a expressão da colega.
-- Está sim parceiro.
Fernanda fingiu indiferença quando encontrou o olhar de Letícia. A ruiva sentiu-se incomodada com a atitude da policial e não hesitou em segui-la até o banheiro naquele andar. Quando saiu de uma das cabines, Fernanda encontrou Letícia recostada no balcão das pias, com os braços cruzados lhe encarando. A morena disfarçou a surpresa, mas não cumprimentou Letícia, como se estivesse alheia à presença da legista, lavou as mãos fitando pelo espelho as reações da médica ao seu silêncio.
Letícia esperou que ficassem a sós, quando a faxineira deixou o banheiro para abordar Fernanda:
-- Preocupada com a operação de logo mais?
-- Não, é praticamente uma operação de rotina.
-- Então essa expressão sisuda se deve a que? Foi obrigada a almoçar bife de fígado?
Letícia tentou brincar, mas não obteve a resposta que esperava da policial. Ao invés disso, Fernanda fixou seu olhar no verde dos olhos da médica a ponto de lhe deixar desconcertada e confusa.
Numa atitude firme, Fernanda em só movimento puxou Letícia para uma das cabines e seus corpos ficaram colados, as bocas quase unidas, o calor que emanava de ambas anunciava o desejo implícito ali, mas, a morena provocou, queria mostrar o domínio da situação, instigada pela raiva à reação da médica ao flagrante frustrado de Wellington mais cedo.
-- Não me torture mais... – Letícia suplicou.
-- Quero ouvir você me pedir... – Fernanda sussurrou respirando ofegante.
-- Fernanda...
-- Pede...
-- Preciso do seu beijo, me beije!
Fernanda sorriu vitoriosa, roçou o nariz no pescoço de Letícia, que a essa altura não estava tão alvo como de costume, quase carmim, tamanho era o rubor exposto. A morena provocou ainda mais, saboreando com a ponta da língua o gosto adocicado e provocante daquela pele macia. A excitação fazia o corpo de Letícia vibrar, a umidade começava a inundar o sex* da legista que pediu mais uma vez:
-- Me beija...
Senhora da situação, em uma atitude praticamente sádica para Letícia naquele momento, Fernanda se afastou e disse:
-- Agora não.
Fim do capítulo
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