EPISÓDIO 8 – Palavras, apenas palavras...
As três amigas de infância se encontraram em uma pizzaria em Copacabana. Fernanda pouco animada com o mal entendido com Letícia, parecia apática às memórias divertidas que Dulce e Gisele traziam à tona.
-- Nanda você está distraída... Está tudo bem? Chateada com a suspensão?
Gisele indagou cheia de cuidados com a policial.
-- Estou um pouco chateada sim, sem a menor ideia de quando Wellington me tirará do castigo...
-- Você não pode se desculpar com ele pra ver se sei lá, ele te readmite mais rápido? – Dulce sugeriu.
-- Se eu fizer isso, perco minha moral com ele, ou, ele vai achar que estou fazendo piada, e aumenta minha suspensão. – Fernanda disse desanimada.
-- Pelo menos seus colegas estão te mantendo informada sobre a investigação. Foi pra isso que a doutora poderosa e linda foi te visitar em casa? – Gisele perguntou despretensiosamente.
-- O que? A doutora fechação foi na sua casa Nanda? Que babado é esse? De onde surgiu essa intimidade toda? – Dulce fez estardalhaço com a notícia.
-- Ow! Que mané babado! Não tem nada de babado, você não para com essa mania de revista de fofoca né Dulce? – Fernanda tentou desconversar.
-- Meu faro jornalístico, seja ele qual for a inclinação, me diz que aí tem um babado forte... – Dulce insistiu. – Agora é minha vez de dizer, desembucha Fernanda!
-- Ela te deu um livro meu... Se eu soubesse que você estava interessada, tinha te dado um exemplar. – Gisele comentou.
-- Peraí! A doutora escândalo foi à sua casa te dar um livro? Gente, o que foi que eu perdi presa naquela cela? – Dulce continuou a fofoca com as mãos na cintura.
-- Ai Gisele, você também né! Pra que ficar dando esses detalhes pra essa fofoqueira aí? – Fernanda repreendeu a escritora.
-- Eu não sabia que era segredo! – Gisele se defendeu.
-- Olha só, vamo parar de falar besteira, as duas! Não tem babado, nem segredo. A doutora Letícia foi à minha casa sim, para entregar sim um livro que você escreveu, para me ajudar no caso, já que fui suspensa e não estou indo à delegacia, ela fez a gentileza de ir deixar, e só!
Fernanda despejou a explicação, de maneira firme e incisiva, na esperança de que seu tom encerrasse aquele assunto. Mas, Dulce não se intimidou:
-- Você pode enganar os bandidos com essa sua técnica aí, pode enganar até seus colegas de trabalho com esse tom de pit bull antes do ataque... Mas a mim não minha querida. Você tem o mesmo tique quando mente, desde criança!
-- Tique, que tique? Tá doida? – Fernanda disse desviando o olhar para a jarra de suco na mesa.
-- Sim! Suas narinas abrem, como se isso assustasse alguém... Por que quase ninguém presta atenção no seu nariz quando você ruge assim!
Dulce gargalhou sozinha. Gisele sorriu sem graça e Fernanda, essa praticamente rosnou como um pit bull descrito pela jornalista.
-- Ah desisto de você sabe! Eu te odeio Dulce! – Fernanda disse contrariada.
A policial levantou-se sob o olhar das outras, quando Dulce interrogou:
-- Onde você vai? Tá fugindo?
-- Vou ao banheiro, quer se esconder lá pra fuçar o que vou fazer?
Dulce respondeu à provocação de Fernanda mostrando a língua, como uma criança mal criada. Nesse momento, Gisele perguntou visivelmente sem graça:
-- Você acha mesmo que a Nanda está escondendo alguma coisa? Sobre ela e a doutora?
-- Com certeza! Uma coisa que a Nanda não sabe é mentir! Posso não ser uma expert nesse mundo lésbico, mas tem uma tensão sexual entre elas, isso tem!
A jornalista comentou sem perceber os reais motivos da curiosidade de Gisele, no entanto, ao encarar a amiga, concatenou os seus pensamentos com aquela cena e disparou:
-- Ah não Gi!
-- Que?
-- Você está caída pela Nanda?
Nesse momento, Fernanda se aproximava, Gisele fez sinal para Dulce pedindo que a amiga se calasse. Chocada com a própria conclusão, confirmada pelo alvoroço da escritora em mudar de assunto com a chegada da morena, Dulce calou.
-- Pode parar de falar que o assunto chegou. –Fernanda brincou. – E aí? Vamos pedir logo essa pizza? Estou morrendo de fome!
**************
Fernanda chegou à delegacia controlando sua vontade de sorrir e cantarolar, mas não escapou dos burburinhos e cumprimentos dos colegas que se alegravam com sua volta. Antes de qualquer coisa, seguiu para a sala do delegado, conforme fora instruída por Carol naquela tarde.
A escrivã e amiga de Fernanda foi a porta-voz do delegado Wellington, que não deu o braço a torcer, pediu que Carol ligasse para a Agente Garcia, solicitando que ela comparecesse à delegacia com urgência. Mesmo não sendo essa sua função, Carol não se incomodou, e foi taxativa com Fernanda:
-- Sem comemoração, sem se vangloriar Nanda, passe direto pra sala do delegado!
Seguindo as orientações da amiga, Fernanda bateu à porta da sala de Wellington.
-- Entre Agente Garcia, sente-se, por favor.
Obedeceu, notando o delegado desconcertado.
-- Em primeiro lugar, você tem ciência da causa da sua suspensão, não tem?
-- Sim senhor.
-- Um bom começo. Em segundo lugar, vou advertir você de outra coisa: eu não vou permitir sua conduta fora dos padrões, nem tampouco desrespeitar a hierarquia das funções, você está me entendendo?
-- Sim senhor.
-- Eu sou muito cobrado porque foi me confiado uma delegacia modelo, única no país, não vou me queimar com a Secretaria de Segurança Pública, por vícios de prática errada de ninguém, principalmente seus, de quem eu espero muito também, pela profissional que você é.
Fernanda apenas acenou em acordo.
-- E por fim, estou retirando sua suspensão, quero que volte imediatamente à investigação dos assassinatos de mulheres, por que eu imagino que aquele vídeo que conseguimos apreender, tenha algo a ver com suas fontes de informação, é justo que você continue à frente desse caso.
Fernanda sorriu contidamente, a fim de não provocar o delegado. Nesse momento, Letícia bateu a porta.
-- Desculpe-me delegado, não sabia que o senhor estava ocupado.
-- Absolutamente doutora, por favor, entre, a Agente Garcia já estava de saída.
Letícia e Fernanda se olharam estranhamente. A ruiva, transparecendo distância, não se fixou muito tempo nos olhos da policial. Foi a vez de Fernanda forçar um diálogo:
-- Doutora, eu gostaria de falar com você se possível sobre o caso...
-- Meu relatório da autópsia já foi entregue Agente Garcia, infelizmente, não tenho nenhum dado novo para lhe ajudar na investigação.
-- Mas... É que preciso tirar algumas dúvidas, esclarecer alguns pontos, poderíamos conversar?
-- Como disse, está tudo no relatório, se tem dúvida em algum termo, pode procurar o pessoal do laboratório que pode acrescentar algo nos demais itens periciados.
-- Mas... – Fernanda insistiria mais uma vez quando Wellington interrompeu.
-- Agente Garcia, a função da doutora Letícia nesse caso já está encerrada, ela está em outro caso agora, acho que você tem que ir agora à carceragem tentar interrogar o Ernesto, agora ele pode ser acusado também de cúmplice de assassinato, acho que temos um ponto a nosso favor para que ele saia do silêncio.
Insatisfeita com o tratamento frio que a médica lhe dispensou, Fernanda apenas concordou com um gesto, mas permaneceu ali na sala, como se precisasse de mais tempo com Letícia para lhe convencer a falar com ela.
-- Agente Garcia? O que está esperando? – Wellington apressou Fernanda.
Fernanda encarou Letícia que evitou seu olhar. A morena baixou os olhos e saiu sem nada dizer, mas sentia seu coração ser comprimido no seu peito. Se antes enxergava uma chama nos olhos verdes da ruiva quando lhe olhava, dessa vez, captou um tom opaco e inexpressivo.
Carregando esse estranho sentimento, Fernanda saiu da delegacia em direção a casa de custódia onde Ernesto dos Anjos estava preso. Foi acompanhada por Ferreira, que notou a apatia da colega, mas, o policial era mais discreto do que Beto, não interviu, respeitou o silêncio da colega, limitando o diálogo à abordagem que fariam ao traficante.
Ernesto permaneceu na postura de nada declarar. Mas ao ver o vídeo que lhe associava a um suposto assassino, abalou-se.
-- Para não infringir nenhuma regra ou direito seu Senhor Ernesto, vou deixar que você fale com seu advogado, depois ele fará contato conosco. Lembre-se: estamos lhe oferecendo benefícios na redução de sua pena, se você colaborar conosco, mas para isso precisamos de nomes, especificamente desse cara aqui, o que você entregou a ele nesse papel e como podemos acha-lo.
Fernanda ditou as regras do acordo. Ernesto pediu que contatasse seu advogado para lhe instruir diante daquela nova circunstância. Os policiais consideraram uma pequena vitória, pela reação de Ernesto, tudo levava a crer que em breve, teriam informações sobre o intitulado Capitão Gancho.
*******************
O contato do advogado de Ernesto dos Anjos não foi tão imediato como os policiais desejavam. O avanço nas investigações se deu por conta de outros itens apreendidos, como números de telefones, anotações de uma agenda do traficante. Todavia, nenhum dado contribuiu na elucidação dos assassinatos, sendo os contatos do tráfico encaminhados para outra delegacia especializada.
Os dias na delegacia se transformaram para Fernanda em momentos de angústia e inquietação. Hora pelos entraves na investigação, hora pelos raros encontros com Letícia. As vezes que se encontraram, foram obras do acaso, e o desconforto era óbvio. Uma vez se cruzaram no corredor, outra vez à porta do elevador, e outra ainda na sala de Wellington, quando mais uma vez, a policial tentou um subterfúgio para um diálogo a sós com a ruiva, mas, foi igualmente barrada pela médica, repetindo o tratamento frio do último encontro naquela mesma sala.
Na última tentativa, Fernanda voltou à sua mesa, ruminando a indiferença de Letícia, amargando a indignação de não ter sequer o direito a uma explicação no equivocado episódio de Gisele em seu apartamento. Com o olhar perdido, sentou-se, remexendo em seus papéis sem ao menos se ater ao conteúdo destes. Distraiu-se tentando decidir, se valia a pena insistir em um diálogo com a médica, ou se simplesmente desistia de qualquer aproximação. Em meio às suas indagações, foi sugada por Carol daqueles pensamentos. A escrivã girou a cadeira da amiga trazendo-a de volta à realidade.
-- Ow! Que é que foi garota?! – Fernanda disse se recompondo.
-- Pra te acordar! Estou te chamando há no mínimo cinco minutos e você em outra dimensão aí...
-- Estava concentrada lendo isso aqui...
-- Deixe-me ver... Ah! Lendo o formulário em branco de um relatório de busca e apreensão... Leitura interessante, que requer mesmo muita concentração. - Carol disse ao tomar o papel das mãos de Fernanda.
-- Ah! Vê se me erra Carol!
-- Olha Nanda, está com uma semana que estou te observando, tem alguma coisa acontecendo com você, e antes que você culpe a investigação, o Capitão Gancho, ou o Peter Pan, vou logo adiantando, não vai colar comigo. Manda a real! O que está acontecendo?
-- Carol você tá viajando legal! Não tem nada acontecendo, só as preocupações do trabalho mesmo, poxa, a investigação está estagnada! Tem noção do quanto isso me deixa perdida?
-- Não, nenhum nó de investigação te deixa perdida, pelo contrário, quando algum caso está assim, você arruma um jeito, fuça até encontrar outra pista, outra linha pra investigar. Isso não tem nada a ver com o caso, você sabe que terá o nome do suspeito logo, e não é isso que está te deixando assim, tão avoada!
-- Que mané avoada! Estou preocupada e cansada, só isso!
-- Nanda eu sei o quanto você é empacada, que não se abre fácil, mas poxa, sou sua amiga há anos, eu te conheço, não mereço sua confiança?
-- Ai Carol, para né, drama não! Claro que confio em você, só que não tem nada pra falar...
-- Eu vou facilitar para você. Vou dizer um nome, você só balança a cabeça se esse for o motivo ok?
Fernanda concordou sem graça, antevendo que a amiga acertaria em sua hipótese.
-- Doutora Letícia.
Assim como acordado, Fernanda balançou a cabeça positivamente.
-- Você pode pelo menos me contextualizar na situação? – Carol interrogou.
-- Ah, pintou um clima entre nós, eu pelo menos acho que rolou... Mas, fomos interrompidas. Depois ela foi ao meu apartamento, e a Gisele estava lá, ela interpretou tudo errado, e desde então, se recusa a falar comigo, algo que não seja estritamente profissional.
-- Hum... Entendi...
Carol sempre se mostrou sensata nas questões que Fernanda lhe confidenciava, sempre à custa de muita insistência. A morena se habituara a lidar com suas dúvidas sozinha, se reservava quanto a compartilhar sentimentos seus. Sua aparente fortaleza em todas as suas atitudes, limitava o desabafo de suas angústias. Poucas pessoas conseguiam ver o traço frágil que Fernanda escondia. Carol era uma dessas pessoas.
-- Posso saber por que você ainda não foi falar com ela?
-- Ela não quer falar comigo Carol, o que eu vou dizer, explicar o que? Ah doutora eu não tava pegando a Gisele não... E ela dizer: “e eu com isso?”.
-- Nanda, você insegura? Você não sabe mais sacar quando uma mulher tá te dando mole? Justo você?
-- Pois é! Eu não sei! Se for tudo fantasia minha? Sei lá, se eu ofender a doutora, e pow, ficar tudo pior? Fuder minha relação profissional com a chefe da perícia médica?
-- Nanda pelo amor né! Como assim ser paquerada por uma mulher do seu naipe é uma ofensa? E isso está me cheirando mais a covardia do que esmero com suas relações profissionais.
-- Qualé! Eu? Covarde? Tá me zuando né?
-- Não é? Então sobe lá, no escritório da doutora poderosa, e esclareça esse mal entendido, e aí você vai ter as respostas que precisa, e a delegacia de homicídios, terá sua melhor policial com todas as suas faculdades mentais preservadas!
Fernanda nem teve tempo de respondeu, engoliu meia dúzia de justificativas. Carol deu as costas como se desafiasse a amiga, e pelo que conhecia da morena, tinha certeza que seu desafio não ficaria sem reação.
Depois de minutos girando naquela cadeira, como se reunisse forças para caminhar até o elevador, Fernanda se encheu de coragem, e mesmo sem saber o que faria diante de Letícia apertou o botão do oitavo andar do prédio.
Bateu à porta receosa. No entanto, o receio deu lugar ao galope composto pelas batidas do seu coração ao ouvir a voz suave de Letícia, autorizando a entrada de quem batia.
-- Boa tarde doutora. – Fernanda foi formal, adentrando o escritório.
-- Agente Garcia. Posso ajudar em algo? – Letícia empalideceu de repente, e falou pigarreando.
-- Sim pode, me dando cinco minutos de sua atenção para me ouvir, o que venho insistindo nos últimos dias sem sucesso.
Letícia encarou Fernanda. O tom firme da policial pareceu intimidar a médica. Engoliu seco, e tudo que conseguiu foi apontar a cadeira para que a policial se sentasse.
-- Bem, eu acho que te devo uma explicação.
-- Está enganada Agente Garcia, não me deve nada.
-- Ok, não lhe devo, mas eu quero dar uma explicação, mesmo que não tenha nenhuma obrigação.
-- Agente Garcia... Eu...
-- Letícia, por favor.
Ao ouvir Fernanda chamar-lhe pelo nome, a médica desarmou-se e assentiu ouvir as explicações da morena.
-- Na verdade, só gostaria de esclarecer que não tenho nada com a Gisele, ela é apenas uma amiga. Naquele dia, a cena sugeria outra coisa, mas, não estava acontecendo nada.
Letícia desviou o olhar, depositou as mãos sobre a mesa e retrucou:
-- Agente Garcia, não sei o que te motivou a vir se explicar comigo. A sua vida pessoal não me diz respeito, seja com quem for.
-- Eu só pensei que... Naquele dia em sua casa...
A insegurança deu às caras a Fernanda. A morena procurava as melhores palavras em vão, nada soava concatenado, ou expunha menos o que nutria pela médica, até que esta concluiu com objetividade:
-- Naquele dia em minha casa, eu apenas retribui uma gentileza para uma colega de trabalho, que estava em um dia ruim. Se algum momento lhe sugeriu outra conotação, perdoe-me pelo equívoco.
Sem palavras com a formalidade da ruiva, Fernanda sentiu seu peito apertar. Em toda sua vida não enfrentara com tanta angústia as palavras educadas, mas, frustrantes de alguém. Obviamente, já sofrera decepções em relações, em flertes, mas nunca lhe pareceu tão dolorido.
-- Não há o que perdoar. Desculpe-me pelo incômodo e inconveniência, bom trabalho.
Letícia apenas acenou em acordo, outra vez, fugiu do olhar de Fernanda, que lhe fitou uma última vez antes de sair daquela sala, buscando encontrar algum sinal, alguma faísca de esperança sobre a atração que ela julgava existir entre as duas. Bateu porta arrastando consigo além da sua insegurança, uma decepção inédita pela proporção provocada, não conseguiu ficar na delegacia, deu uma desculpa qualquer e saiu dirigindo pela cidade.
Remoendo aquela conversa que se configurou em uma luta de forças interiores estranhas, Letícia recostou sua cabeça na poltrona sentindo seus olhos marejarem. Outra luta se desenhou dentro de si, não tinha motivos racionais para um pranto, mas enfim, sua racionalidade perdeu aquele duelo e deixou cair uma lágrima. Não entendia exatamente o porquê daquele sentimento denso que lhe consumia, nem tampouco seu instinto de auto defesa exacerbado diante de Fernanda.
O duelo acirrou ainda mais sua confusão de sensações, sentimentos, memórias. Perto ou longe de Fernanda, Letícia a mantinha no pensamento, das mais diversas formas. Seus sentidos traziam a morena todo tempo para perto, fosse seu cheiro, sua voz, seu tato... Tanta inquietude, assustava a médica. Admirava Fernanda pelo jeito forte e determinado, sua segurança no trabalho, sua sensualidade, seu mistério, sua beleza e principalmente, o que ela despertava quando estava ao seu lado.
Letícia gostava da pessoa que era quando estava ao lado de Fernanda, sentia-se à vontade em sua companhia, desarmada da obrigação de evidenciar sua inteligência e brilhantismo, permitia-se ser ela mesma, sem títulos, sem currículo, sem os padrões de elegância que fora acostumada a ostentar como característica de sua personalidade.
Por seus padrões rígidos, por sua história de vida tão convencional, Letícia se censurava pelo emaranhado de sensações e desejos que via aflorar à sua revelia. A luta interior era carregada de medo do desconhecido, por isso, sua melhor saída era fugir. Precisava afastar aquela que lhe tirava do foco, que roubava seus pensamentos e a fazia experimentar um ciúme infundado e inaceitável.
O resto da tarde foi improdutiva para a médica. Ainda assim, relutava em sair do escritório, não saberia agir diante de Fernanda se a encontrasse por acaso no prédio, temia que dessa vez, não venceria com sua racionalidade o seu desejo. Protelou sua saída o quanto pode, somando hipóteses acerca da reação da policial aquela conversa, aumentando seu drama interior.
Era noite quando a ruiva deixou o prédio da delegacia. Chovia torrencialmente no Rio. O trânsito caótico pouco incomodava a médica, o que lhe inquietava de forma brutal era o pensamento em Fernanda. Um desvio na sua rota para fugir de uma rua alagada lhe pôs no percurso para Ipanema. De uma forma instintiva, seguiu por ali.
A um quarteirão do prédio onde Fernanda morava, Letícia simplesmente travou. Não conseguia mais prosseguir. Estacionou o carro, segurou o volante do veículo como se aquilo contivesse a vontade que lhe empurrava quarteirão à frente. Aquele fervor de desejo crescente precisava ser apagado. Foi a primeira vez que voluntariamente se pôs sob a chuva, caminhando em meio às pessoas providas de guarda-chuvas, fato que passou alheio aos olhos da ruiva.
*************
Fernanda rememorava sua conversa com Letícia, amargando a rejeição precoce, experimentava a típica dor-de-cotovelo, ao som de um hit internacional qualquer, próprio daquele contexto. Ouviu batidas na porta, com pouca disposição para questões caseiras com algum morador do prédio, caminhou lentamente até abrir a porta e encontrar diante dela, Letícia, completamente ensopada.
Cabelos desalinhados pela umidade, maquiagem se desfazendo com a água, e as roupas coladas ao corpo. Ao contrário do último encontro os olhos verdes cintilavam de novo para a morena.
-- A segurança do seu prédio é mesmo muito ruim... – Letícia disse timidamente.
-- Mas... Letícia? O que você quer aqui? – Fernanda indagou atônita.
-- Quero... Você!
Não houve espaços para questionamentos, nem uma, nem outra avançaram mais, as duas se procuraram ao mesmo tempo, entregando-se a um beijo sôfrego, voraz, completo.
Fim do capítulo
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