Capítulo 3
Pietra
Sonhei com Clara essa noite, passeávamos na beira da praia, inusitadamente apenas ela usava um biquíni e eu roupas, admirava com água na boca seu corpo. O céu estava azul celeste e as ondas de vez em quando batiam em nossos pés descalços, não falamos nada. Ela pegou minha mão , sorriu de um jeito meigo e deitou a cabeça no meu ombro.
Acordei com lágrimas nos olhos e por uma grande parte da madrugada fiquei pensando no sonho e seu significado. Estava claro que meu subconsciente e muito do meu consciente queria retomar ao menos minha amizade com ela, mas temia, agora sabia que meu pai me vigiava de perto, não deixaria haver uma nova Carolina. E fico imaginando já que ele não pode me mandar embora , vai acabar prejudicando Clara se eu voltar a me aproximar dela, talvez demitindo o pai dela ou coisa pior. Só sei que no meio das minhas considerações cai em um sono sem sonho dessa vez.
Acordei inquieta e cansada, vesti a primeira coisa que vi na frente, mas tomei cuidado especial com o calçado. Agarrei Os Maias , ainda que fosse bom, preferia O crime do Padre Amaro e cheguei cedo na escola.
Enrolei do lado de fora da sala de aula, queria vê-la, mesmo que de longe, chegou novamente com a amiga, as duas vinham de braços dado e a menina sussurrava no ouvido dela. O ciúmes foi inevitável, sabia que não tinha nenhum direito, mas sentia o monstro verde me correr ainda assim, porque ela tinha o que antes era meu, a amizade fácil, os sorrisos de Clara, seu humor cáustico. Ela me nota e sua máscara e posta novamente, abro a boca para dizer um cumprimento ou um "sorri para mim também", mas ela me ignora e vai para sua carteira. A primeira pedrada.
Um idiota na minha "turma" joga um papel nela, fico puta, meus punhos se fecham sobre minhas palmas e sinto as unhas afundarem nelas. Clara digna como sempre nem dá atenção, os idiotas riem como um bando de jumentos relinchando. Eu me sento com raiva queimando, porque eles não a deixavam em paz?! Ela já sofria por algo que não fizera, para que espezinhar mais!
A professora entra, e começa a distribuir números, não entendo nada disso, até que Vanessa gem* na carteira ao meu lado, olho para ela questionando:
- bosta...peguei o número 3.
O meu era 15 , então me dou conta de onde ela está olhando, na carteira de Clara o número 1 , ela continua:
- agora ninguém sobra, já que você entrou para sala. Vou falar com a múmia, talvez consigo fazer um trio.
Eu fico um pouco perdida com essa conversa, me perguntando quem seria múmia, mas então me dou conta que tenho uma ótima oportunidade. Pego o número de Vanessa , ela me olha espantada e solta:
- certeza Pe, vai ter que fazer o trabalho com ela.
- não tem problema.
Ela estreita os olhos e diz com veneno na voz:
- ah e...esqueci que vocês eram unha e carne.
Essa e a infelicidade de morar em uma cidade pequena, todos crescemos juntos, me odeio pelo o que digo em seguida:
- olha estou te fazendo favor, também não quero fazer nada com ela. Mas não acho que a professora vai deixar fazer trios.
Não sabia se era verdade , mas Vanessa não diz mais nada e arranca número 15 da minha mão. Recolho minhas coisas e vou para o lado dela.
Clara está tao entretida que leva um tempo até me notar, eu a observo durante esses minutos, as mãos de dedos longos e unhas bem feitas, a orelha furada em mais de um lugar com vários brincos, o pescoço delgado com a pele morena. Ela finalmente me nota, levanta a sobrancelha questionadora, o que achei um máximo, mas queria ouvir sua voz, e me faço de boba. As vezes temos que ter cuidado com o que desejamos, porque quando ela falou foi com raiva, quase desprezo. Mostro meu número, então a segunda pedrada vem, me deixando totalmente vulnerável. Tento me concentrar o máximo para não chorar, porque eu fazia isso comigo! A professora nos encara e ela não tem outra solução do que pedir para me sentar, eu começo a tentar prestar a atenção na explicação sobre o trabalho, mas sinto seus olhos em mim, me queimando. Mordo os lábios para conter todas as emoções que estou sentindo, a que se destaca, desejo. Tomo um susto quando ela sai, e não volta até a professora mandar todos de volta aos seu lugares.
Eu sabia que ela não viria falar comigo para combinarmos o trabalho, fui até ela, estranhei que levasse suas coisas, mas por um instante ela deixou a máscara de indiferença cair e parecia pronta para me dispensar, falei mais rápido. Acho que devo ter passado algum desespero, porque ela aceitou fazer o trabalho mais tarde. Quando fui para o refeitório, fingia escutar as conversar chatas da meus colegas, enquanto analisava a minha atitude de fazer o trabalho com Clara, ainda que inconscientemente havia tomado a decisão de me aproximar dela, ainda que ela parecesse querer era me ter longe.
E isso foi comprovado quando sai do banheiro, as palavras dela me cortaram fundo a alma. A terceira pedrada.
Tentei com todas as forças manter a minha própria máscara de alegria, mas estava quebrando, e cada vez que me lembrava da voz raivosa dela, mais rachaduras apareciam. O pior era saber que Clara não sentira minha falta quando fui embora, que talvez o que tivéssemos, não significara nada a ela, e não falo só do beijo, mas nossa amizade. Meu queixo treme, dou qualquer desculpa e volto para o banheiro, algum deles brinca que estou com caganeira, penso que isso seria muito melhor do que um coração partido. Elas não estão mais na mesa, entro em um reservado, e sento na privada fechada , e deixo as lágrimas caírem livremente. Não choro apenas por Clara, apesar dela ser o motivo principal, mas por tudo, por antes, por durante e depois. Por estar tão só. Alguém bate no meu reservado:
- tudo bem ai?
- sim - respondo fracamente.
Seco o rosto, não reconheço a voz, quando abro a porta, sinto o sangue fugir da minhas veias. A amiga dela está parada ali, parece preocupada, sigo para a pia e jogo água sobre a face. Minhas lentes estão irritada, penso em tira-las, mas lembro que esqueci meus óculos em casa. A menina me encara pelo espelho, é uma moça bonita, mas tenho certeza que as pessoas apenas observa que está acima do peso. Ela sorri para mim e começa a sair, mas para e voltando a me encarar:
- desculpa pela Clara, as vezes é meio idiota.
Queria gritar para ela, sei da boca grande dela, que a conheço muito antes, mas depois fico pensando que talvez não seja verdade. Eu conheci a Clara criança, essa Clara não sei quem é. Respondo:
- tudo bem.
Mas ela não tinha acabado ainda:
- sei que sabe o que ela passa aqui, Clara só tem medo das pessoas se aproximarem demais e fazerem mal a ela. Mas queria pedir que lhe desse uma chance, a Clara é espetacular, uma amiga sem igual, uma irmã mesmo.
Ela coloca ênfase nas últimas palavras como se quisesse passar algum tipo de recado para mim, e consegue, sinto meu coração leve. Sorrio de volta e digo:
- não quero fazer mal nenhum a ela.
Ela assente a cabeça parecendo acreditar nas minhas palavras, e depois volta-se para saída , antes dela atravessar a porta peço:
- não conte que me viu chorando.
- pode deixar, ah meu nome é Ana.
- prazer, Pietra.
- eu sei. Tchau.
Eu tinha pensado em cancelar o trabalho, não me imporia a Clara se ela não me quisesse, mas então penso nas palavras de Ana. Não vou desistir.
Clara
Depois da merd* que tinha feito, Ana me xingou e exigiu que pedisse desculpas, depois sumiu até o fim do intervalo. Por minha parte me senti mal, porque falara aquilo, mas não desejava.
Ela me esperava na porta depois da última aula, não parecia zangada pela minha boca grande, assim que me viu disse:
- tenho que dar um pulo lá fora, já te encontro na biblioteca.
- pode me emprestar a folha que marcou a pesquisa que precisamos fazer?
Ela me entrega o livro que está na mão e abre a mochila , arranca a folha e me entrega, e sai correndo e percebo que não devolvi o livro. Com irritação sou obrigada a guarda-lo na minha mochila, porque a bibliotecária iria parir um filhotinho se me visse entrando com qualquer livro sem ser da biblioteca.
A biblioteca ficava no último andar, era gelado e silencioso, quando entrei só tinha mais dois alunos , a bibliotecária apenas me olhou e voltou o que estava fazendo. Então sem chance dela me ajudar, nada que não fosse normal para mim. Larguei minhas coisas em uma mesa próxima da janela onde o sol batia e esquentava o lugar e fui tirando todos os livros que poderiam nos ajudar.
Estava instalada na mesa e lendo sobre a Alexandria quando Pietra apareceu, deu um sorriso para a bibliotecária que retribuiu e perguntou se ela queria ajuda, claro!
Ela me nota e diz que não, vem para se juntar a mim deixando a moça espantada. Senta-se e observa os livros, mas antes de abrir qualquer um, coloca sobre a mesa um saquinho pardo, dentro tem várias paçocas. Devo parar um momento aqui e dizer que sou obcecada por esse doce e que ela se lembrar desse detalhe sobre mim , faz meu coração dar uma batida errática. Não me faço de rogada, pego uma e mordo. Quando a encaro, Pietra esta sorrindo largamente, com a boca cheia digo:
- valeu, tava morta de fome.
- imaginei.
Ela não pega nenhuma, aparentemente comprara para mim, me sinto uma estúpida, ainda mais depois do que tinha dito. Engulo e encarando o tampo da mesa:
- desculpa por ter falado aquilo.
- tudo bem, Clara.
Pego mais uma paçoca para manter minha boca ocupada, sinceramente não queria falar tudo o que passava pela minha cabeça naquela hora. Começamos uma discussão para decidir quem faria o que, ela sugere:
- você pode fazer a introdução, eu faço o índice e a conclusão, copiamos todas as informações, depois digito tudo no computador.
Sem tirar os olhos do livro que estava pesquisando, acabo com as ilusões dela:
- a professora não aceita trabalho digitado.
- sent country!
Eu paro a leitura e mais uma vez ergo a sobrancelha questionadora:
- desculpe, as vezes confundo a língua, quis dizer que país atrasado.
- com certeza.
- bom , então não sei. Acho que teremos de nos dividir e copiar em partes.
- tudo bem, mas vou avisando que minha letra continua uma porcaria.
Ela dá uma olhada rápida na folha que anotei algumas coisas, depois me encara, algo passa em seus olhos que não consigo decifrar, fala em sussurro:
- para mim é linda.
Minhas mãos suam na hora e quando vejo estou presa naqueles olhos azuis, reparo nos cílios longos e claros, o nariz reto e lábios finos e rosados, ela morde o de baixo e isso faz com que eu tenha um formigamento no meio das pernas. Quando volto a encara-la, suas pupilas estão dilatadas. Ficamos assim por um tempo, mas não posso precisar quanto.
Então ouvimos um pigarro e quebramos o contato, tomo um susto ao notar Ana parada ao nosso lado. Tem um sorrisinho maroto nos lábios, já sei que vou ouvir muita coisa depois. Ela não está de uniforme, e assim que prestamos atenção nela, sua expressão muda para tragédia grega que conheço , puxa uma cadeira e senta-se bem próximo de mim, mas antes de soltar tudo , nota as paçocas e mete a mão no saco pegando uma, digo emburrada:
- ei são minhas.
De canto de olho vejo o sorriso de Pietra abrir, mas Ana não se dá conta de nada disso, engole a paçoca e finalmente nos brinda com algumas palavras:
- oi Pietra.
- oi Ana.
Olho de uma a outra desconfiada, me perguntando de onde se conheciam, mas Ana vira para mim, agarra meu braço como se eu fosse um salva vida e solta:
- estou desesperada amigaaa...
- o que aconteceu?
- ele aceitou meu convite, para sábado.
- isso é bom! não precisa se preocupar recebo essa semana, vou ter dinheiro da passagem.
- mas a mamãe não me deixou ir.
Nessa hora Pietra que escuta nossa conversa descaradamente se intromete:
- sua mãe não deixa que a Clara saia com você?
Nós duas a encaramos, estou boquiaberta, ela parecia indignada, mas porquê? Não e como se ela fosse melhor que os outros, ou seria? Ela está ali naquele momento comigo não é! Meus pensamentos loucos são eclipsados por uma Ana irritada:
- logico que não, meus pais amam a Clara.
A bibliotecária faz um som de chiado, para abaixarmos a voz, então Ana continua quase sussurrando:
- o problema e que ela não quer deixar a mim e a Clara irmos sozinhas até o Pé de vento - ela se vira para mim e posso ver mesmo que ela está desesperada - por favor Clara temos que dar um jeito, quero beijar na boca.
Eu rio, mesmo não devendo, Pietra se intromete de novo:
- você tem um encontro?
Observo bem a expressão dela , porque se notasse qualquer implicância com isso, a cortaria na hora, mas ela só parecia curiosa mesmo, Ana responde:
- tenho, por isso que não posso pedir a meu pai para me levar, imagina que mico chegar com ele lá.
Pietra se recosta na cadeira e parece estar pensando em alguma coisa, tento:
- talvez meu pai...
Ana me corta na hora:
- nãoooo...
- bom , não sei então Ana. Pede para ele vir aqui.
- Clara , nunca vou me encontrar com ele aqui.- Ana responde séria.
Me xinguei internamente ,aquela sim tinha sido uma ideia idiota, imaginava as "brincadeiras" que os imbecis dessa cidade faria se soubesse que Ana estaria se pegando com alguém. Pietra se inclina para frente e solta:
- levo vocês, meu pai não se importa que eu dirija.
Eu fico tão pasmada que solto para variar sem pensar:
- não.
As duas me encaram, Ana curiosa e Pietra consternada, tento me explicar sem jeito, não consigo me imaginar horas dentro do carro com ela, seria tortura, mas não digo isso, ao invés:
- você é de menor, e duvido que a mãe da Ana vai aceitar isso.
- e verdade - minha amiga diz triste.
- sei que não quer mentir para sua mãe, mas pode dizer que vamos com meu motorista. E sério, posso não ter carteira de motorista aqui, mas sei dirigir muito bem.
Refutei novamente:
- mas e se a polícia parar a gente?
Agora Ana bufa e diz :
- que polícia Clarinha?! Daqui até a próxima cidade só tem mato.
Agora é Pietra que lança um obstáculo:
- mas se seus pais falar com o meu, daí pode dar problema.
- eles nunca falaria nada com seu pai, pode ficar sossegada.
O que Ana não falou, e que os pais dela detesta muito o pai de Pietra, como todos aliás nessa cidade, só que ele tem dinheiro, e isso o deixa tolerável. Ana se vira para mim, os olhos pidões, sei que não vai aceitar, até eu dizer que sim.
- tem certeza que pode mesmo nos levar?
Pietra assente, suspiro e depois digo as palavras que me aterrorizam e me trazem um certa alegria:
- beleza, vamos nessa.
Fim do capítulo
Comentar este capítulo:
edilima
Em: 07/05/2018
Adorando Clara e Pietra.
Aguardando os próximos capítulos
Bj.....
Resposta do autor:
Oi,
Fiquei super feliz com seu comentário Edilima, e que bom que vc esta gostando da minha singela estória. E pode ficar sossegada, os capitulos continuaram saindo sim.
Bbjim
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