Boa noite,
Espero que tod@s estejam bem. Segue mais um capítulo para vocês e, informo que ideia de ser uma "quadrilogia", vingou e anda teremos mais um capítilo com o mesmo título.
Uma boa leitura e um ótimo finalzinho de noite.
Xeros.
Capítulo 43 Sacrifícios (Parte 3)
- Essa Evelyne é realmente bastante presunçosa, não é mesmo? – Cosima fechou a transcrição momentaneamente enquanto encarava Delphine, que possuía uma expressão de surpresa e ao mesmo tempo parecia estar ofendida.
- Por que você diz isso?
- Primeiro veja tudo o que ela fez a mãe passar! A propósito, eu já disse o quanto a Manu é fascinante?
- Pelo menos umas três vezes desde que começou a ler! – Delphine cruzou os braços e as pernas e se recostou na espreguiçadeira logo a frente da de Cosima. Ambas estavam na varanda privativa de seu bangalô e há horas a morena estava debruçada sobre a leitura da transcrição do diário de Melanie Verger. Tendo, por vezes, lido trechos em voz alta, levando Delphine a experimentar novas e ainda mais surreais sensações sobre aquelas memórias.
- Eu tenho essa sensação estranha de que se eu a conhecesse, a adoraria. Sabe como é? A Emanuelle Chermont vai muito além do que eu poderia imaginar e do que conseguir pesquisar sobre. – Cosima explanava e gesticulava vividamente com as mãos e parecia suspirar sempre que se referia a Manu. – Definitivamente deve ter sido uma experiência única ter convivido com ela e fica fácil para mim compreender o que a Melanie sentia por ela. – Recostou-se com o livro contra o peito. – Já essa Evelyne... – Delphine empertigou-se em sua cadeira e mordeu o lábio inferior com os olhos arregalados. – Confesso que não sei o que a Melanie viu nela.
- Mas Cos... Você leu por tudo o que a Evelyne passou! – Soava estranho para ela referir-se a si mesma na terceira pessoa. Nunca havia feito aquilo em toda a sua existência. – Suas perdas, e as pressões que foram impostas a ela... – Tentava defender a si mesma, contudo não podia negar que, naquela época, ela era uma pessoa ainda mais difícil que atualmente e que o egoísmo era parte marcante de sua personalidade. – Bom, peço que tenha um pouco de paciência com a Evelyne. Assim como a Melanie teve, e continue com a sua leitura. – A morena a olhou com uma das sobrancelhas erguidas e fez um pequeno biquinho. Sua clássica expressão quando parecia duvidar de algo. Mas a leitura estava sendo tão fascinante que não seria esforço algum seguir o conselho de sua amada.
- Mas Del, tem certeza que queres que eu continue lendo aqui e agora? – Abriu os braços e indicou a idílico hotel em que estavam. – Pensei que esse final de semana seria para ficarmos juntas.
- Cos... – Levantou-se e sentou ao lado dela, aproveitando o espaço largo e confortável da espreguiçadeira dela. – Eu falei para você que tenho coisas importantíssimas e delicadas para lhe contar acerca da Ordem e da minha história. – Cosima concordou com um aceno de cabeça. - E que tudo isso também se faz necessário para que possas vir a fazer parte da Ordem. – Os olhos da morena brilharam com aquela informação. Desde que aquela possibilidade se fez real, ela mal conseguia se conter de tanta excitação.
Aninhou-se entre as longas pernas de Delphine, recostando-se sobre o abdômen dela, permitindo que aquela posição possibilita-se que ambas lessem juntas. A loura presumiu que, com a velocidade que Cosima devorava o livro, ela concluiria a leitura até o final do domingo e isso lhe daria tempo de lhe contar tudo o que precisava naquele momento.
- Muito bem. – Voltou a abrir o livro.
- Onde você parou? – A loura a questionou.
- A Melanie havia acabado de chegar à mansão da Manu, após sair do hospital. – Ela buscava aquela página exata.
- Cos, você sabia que já esteve na mansão Chermont? – Delphine disse e olhou para baixo, buscando os olhos dela que também buscaram os seus.
- Você quer dizer... – Ela nem concluiu a frase, pois Delphine anuiu com a cabeça enquanto sorria docemente.
- Ela faz parte da herança da Ordem. – Tentou se explicar devido a interrogação no olhar da morena. Pensou que ainda era cedo para falar que aquele castelo era uma herança sua, pois era Evelyne Chermont.
- Isso torna tudo ainda mais real para mim! – Cosima suspirou. – Se eu já conseguia me transportar para dentro da leitura, agora com essa informação será ainda mais maravilhosa a experiência. – Disse com um ar infantil em sua face. Delphine acariciou seu rosto com denotada adoração e uma absurda vontade de contar-lhe tudo naquele exato instante, mas precisou se conter. – Muito obrigada por me proporcionar esse prazer sem igual! – Ergueu o livro e o encostou nos lábios. – Já é um dos meus tesouros! – Suspirou ao sentir o cheiro marcante do couro misturado com o odor das folhas de linho e do óleo da caneta tinteiro utilizada. Pensou rapidamente que nada que envolvesse Delphine poderia ser simples. Claro que ela não poderia simplesmente lhe enviar um e-mail com o arquivo da transcrição em anexo. Isso nem de longe combinaria com ela. Mas aquele caderno luxuoso e único sim!
Encontrou a página onde havia pausado a leitura!
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Os dias que seguiram ao meu retorno à Mansão Chermont foram de descanso e estudos. Mesmo a contragosto da Manu, eu insistia em retornar de onde havia parado e justamente por estar acamada, eu tive mais tempo para ler acerca da história da Ordem e de suas criadoras originais. Foi inevitável o meu encantamento ao ler os secretos pergaminhos de Sapho e das demais escribas da Ordem, embora poucos deles estivessem traduzidos para o meu idioma. Aquela história era tão rica e cheia de momentos maravilhosos que decidi, naquele instante, que iria compila-las em um único livro. Algo que serviria de legado e herança para as gerações vindouras de mulheres da Ordem. Comecei então a tomar notas e, em poucos dias, eu já tinha páginas e mais páginas de material escrito. Fazer aquilo, me ajudava a manter minha mente ocupada e longe dos temores que estavam por vir com o meu casamento, embora esses pensamentos perdiam espaço para aqueles que tinha uma única pessoa como motivo. Lutava para não deixar minha mente vagar até você meu amor, já bastava as noites insones em que eu tentava imaginar seu paradeiro ou nos piores momentos, em que eu imaginava que poderias estar com outras mulheres.
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- Um instante! – Cosima pausou a leitura e virou-se para Delphine. – A Melanie está se referindo aqui ao que seria o esboço do Livro da Ordem? – A loura sorriu. – Aquele mesmo que ambas temos uma cópia cada?
- Exatamente esse! – Cosima sentiu-se transbordar de excitação e de uma alegria sem igual. Para uma historiadora era algo incrível, poder vivenciar a experiência única de ler sobre a produção de sua fonte mais rica.
- Mas pensei que ambas o escreveram juntas!
- Elas escreveram sim, mas foi a Melanie quem teve tal ideia e que convenceu a Evelyne de fazê-lo. Mas estou adiantando o que está por vir. – Delphine se repreendeu e causou uma gargalhada divertida em Cosima, que logo voltou a debruçar-se sobre ela e retomou a leitura.
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Na primeira manhã da primavera parisiense eu acordei me sentindo ainda mais forte, como se todo o mal que me debilitou, houvesse chegado ao fim. Desci as escadas saltitando e cumprimentando todas as mulheres com quem eu encontrava e todas me devolviam um lindo sorriso. Após tomar o meu café da manhã, no qual estranhei a ausência da Manu e consequentemente de Izabelle. Questionei a Josephine sobre o paradeiro de ambas e a resposta que obtive, me fez engolir o restante de meu café da manhã com rapidez e ir até onde elas estavam.
Corri pelos corredores do castelo, passando pela cozinha onde senti o maravilhoso cheiro da compota de framboesa que borbulhava num caldeirão sobre o imenso fogão de lenha. Cogitei parar para provar um pouco, mas a vontade de encontrar Manu era mais urgente. Irrompi no imenso jardim que ficava aos fundos do castelo, passei pela estufa das orquídeas de Manu e pouco antes de alcança o gigantesco e traiçoeiro labirinto vivo que havia ali eu ouvi o barulho que tanto adorava. O som abafado e ritmado de cascos de cavalo contra o solo firme. Corri ainda mais rápido e poucos metros a frente eu as vi. Várias das mulheres da Ordem, um grupo de mais ou menos vinte delas, algumas inclusive que eu nem conhecia, estavam cavalgando em belíssimos espécimes de cavalos e éguas. Hábito nem um pouco recomendado para mulheres da alta sociedade.
Várias delas apenas trotavam, como se estivessem praticando, mas outras cinco corriam em disparada, entre elas Manu, que venceu as demais sem aparente esforço algum. E assim que ela me viu, veio em minha direção.
- Bom dia minha querida Mel! Vejo que está bem melhor! – Manu disse um pouco ofegante, bem menos do que seria esperado para o que ela acabara de fazer – A cor retornou ao seu belo rosto.
- Me sinto como se estivesse pronta para enfrentar uma batalha! – Brinquei enquanto me aproximei da égua malhada e acinzentada que ela montava.
- Essa é a Minerva! – Disse Manu com escancarado orgulho. – Minie, essa é a Mel! – Ela brincou, e apresentou sua égua a mim.
- Prazer Minerva. És belíssima. – A égua pareceu compreender o elogio, pois baixou a cabeça diante de mim e bateu a pata dianteira direita no chão três vezes. Eu ri maravilhada. Era realmente um animal majestoso e elegante, ou seja combinava perfeitamente com Manu. – Josephine me falou que vocês estavam treinando para um importante evento que ocorrerá essa noite! Confesso que fiquei curiosa!
- Sim minha querida! – Manu desmontou Minerva e retirou suas luvas de couro. – Na primeira noite da Primavera nós realizamos a Corrida das Amazonas. Uma celebração à Artemis! – Manu abriu os braços e disse com orgulho. – Apenas as melhores Amazonas da Ordem competem e a vencedora da corrida ganha algumas regalias e denotado prestigio entre as demais. – Caminhamos em direção aos estábulos que ficam logo após a pista oval que seria utilizada para aquela corrida. Outros belíssimos animais estavam ali sendo alimentados e tratados, mas um deles me chamou a atenção. Uma incrível égua com a pelagem mais negra que eu já havia visto. Sua crina era mais longa do que o normal. E ela parecia extremamente indócil, como se ainda fosse selvagem. Manu notou que a deixei falando sozinha e que havia, sem perceber, caminhado em direção à égua.
- Que animal fabuloso! – Eu disse em admiração e completamente capturada pela exuberância daquela égua.
- Essa é a Atalanta[1]! Ela pertence à Evelyne e apenas ela é capaz de montar nessa besta! – Manu olhou com certo desdém para o animal que pareceu compreender o sentimento da mulher e relinchou alto, bufando em seguida, para depois pôr-se a correr em círculos em sua diminuta cerca.
- Porque a chamas de “besta”? Ela é incrível! – Pensei que não poderia ser diferente. Um animal seu não poderia ser comum e sim extraordinário.
- Ninguém jamais conseguiu domá-la totalmente. – Manu pareceu ponderar por alguns instantes. – Pensando bem, combina perfeitamente com a Evelyne. – Me olhou de canto de olho. - Mas veja a crina e a cauda dela... Estão longas demais, pois só quem consegue se aproximar dela é a Eve e só ela as tosa. Além do mais, ela já machucou nossas melhores tratadoras. – Atalanta parou bem no meio do cercado e começou a trotar como se estivesse marchando. Definitivamente aquele animal possuía uma personalidade e tanto.
- Manu! Eu poderia participar da corrida? – Perguntei o que estava com vontade desde que soube da existência daquele maravilhoso evento.
- Infelizmente, ou seria felizmente? Não! – Ela voltou conferindo as baias dos outros cavalos que já eram guardados pelas demais mulheres, para que pudessem estar descansados para a noite.
- Mas por que? – Protestei como uma criança mimada.
- Primeiro porque você ainda não é da Ordem. Segundo você ainda está se recuperando e por ultimo não possuis uma montaria adequada. – Eram bons argumentos e não poderia lutar contra nenhum deles, uma vez que Manu dificilmente perdia uma argumentação. Ensaiei alguns protestos, mas por fim conformei-me, ou pelo menos o fingi fazê-lo!
Passei o dia emburrada e pelos cantos. Tentando focar a minha atenção em meus estudos, mas estava falhando, pois só conseguia pensar naquele incrível evento que aconteceria e do qual eu teria de ser apenas uma mera espectadora. Logo eu, que me considerava uma grande Amazona e que cavalgava desde que me lembrava por gente. Quando a noite chegou, o castelo estava em festa e pude ver, de minha janela, as luzes das tochas que iluminavam o campo onde ocorreria a corrida.
Na hora prevista eu saí de meu quarto e segui até onde todas estavam. Reconheci alguns rostos e outros eram estranhos para mim, contudo o mesmo interesse e curiosidade a meu respeito continuava. Tanto que tive de literalmente fugir de algumas aproximações mais ousadas. Aproximei-me de Josephine que segurava uma tocha.
- Onde está a Manu?
- Criança, ela virá conduzindo a marcha de apresentação. Aliás, ali vem elas. – Indicou com um movimento de cabeça. Me dirigi até onde ela mostrava e logo vi um grupo de 10 mulheres sobre incríveis animais. Todas elas vestiam túnicas beges, com capuzes que cobriam suas cabeças. Suas vestes eram justas e as saias permitiam que suas pernas ficassem livres. O destaque ficava com Manu, que vinha logo a frente, trotando imponente e segurando uma lindíssima coroa de flores que seria dada a vencedora daquela corrida. Mais atrás vinha Izabelle que também se destacava, pois usava sob o capuz uma linda tiara dourada.
- Izabelle usa aquela tiara porque é a Protetora da Emanuelle?
- Não criança, aquilo indica que ela foi a ultima campeã da corrida. Aliás, ela a venceu nos últimos dois anos. Ou seja, é quem deve ser batida. – Disse empolgada. E esse ano temos uma boa possibilidade. Vê aquela ali? É a Fabianne – Ela se aproximou de mim e indicou uma mulher negra que estava ao lado de Izabelle e parecia ser extremamente forte. – Será interessante ver uma nova campeã, para variar um pouco.
- Como assim?
- Além da Izabelle, apenas uma outra Amazona venceu as corridas nos últimos dez anos. E acredito que já presumiu de quem se trata. – Ela me olhou sugestivamente e percebeu que eu havia compreendido a mensagem. – Isso mesmo! A Evelyne venceu essa corrida seis vezes e todas elas montando a Atalanta, a égua mais rápida que já vimos. – Fiquei realmente impressionada.
Contudo meu amor, em se tratando de velocidade, o tamanho importava muito, porém quanto maior, a amazona ou o cavaleiro mais pesado para o cavalo. Foi inevitável para mim sorrir de canto de boca e juro que lutei o máximo que pude contra a ideia que se formou em minha mente. Seria loucura? Eu pensei. Que se dane! Essa era eu! E quando Manu começou a proferir suas falas eu disfarcei e me afastei dali, e assim que estava fora da visão de qualquer pessoa, corri como nunca em direção aos estábulos.
- Isso é loucura! – Eu repetia em voz alta para mim mesma, na vã tentativa de enviar uma mensagem para meu cérebro e desistir no ultimo instante. Mas sabia que não daria certo, pois quando coloco uma coisa em minha mente, você bem sabe o que acontece!
Frei minha corrida bruscamente assim que alcancei o cercado de Atalanta! A noite estava escura e aquela parte da propriedade estava mergulhada na mais profunda escuridão e por alguns instantes eu não consegui vê-la. Forcei a minha visão, só então vi uma das coisas mais belas e mais assustadoras que já vira. Duas bolas de fogo se acenderam e vidraram em mim. Senti minha alma gelar e logo comecei a tremer. Ela se ergueu e caminhou lentamente em minha direção. Assustei-me e quase cai para trás com a primeira bufada dela e pude ver como ela condizia com a definição de besta dada por Manu.
Eu sabia que deveria recuar, sair dali, mas algo me atraia para aquele fabuloso animal e parecia que o mesmo acontecia com a égua. Hesitante, comecei a andar e circular o seu cercado e ela fez o mesmo, me acompanhando, sem tirar os olhos de mim. Ousei sorrir! Repeti esse movimento mais duas vezes e ela me seguiu em ambos. Não posso negar que a tensão existia e era palpável, mas eu queria demais toca-la. Alcancei a porta do cercado e ela pareceu compreender o que eu pretendia, pois se afastou. Tentando tremer o mínimo possível, eu a abri e a deixei bem escancarada. Sabia que poderia ser um erro, pois ela poderia muito bem passar por cima de mim e fugir rumo a liberdade e certamente você me odiaria por aquilo. Mas não haveria ninguém ali para abri-la para nós.
Finalmente estávamos no mesmo espaço e eu conseguia sentir a energia que emanava dela. Com toda a cautela eu tentava me aproximar e assim que eu cheguei próxima o suficiente, ergui lentamente a minha mão para que ela a cheirasse. Estremeci com mais uma bufada e alguns esperneios. Seria um aviso? Não o ouvi. Na verdade Atalanta desejava determinar a relação que se estabeleceria ali e eu também. Eu sabia que não poderia simplesmente domar a vontade de um animal como aquele, contudo não poderia demonstrar fraqueza. Então inclinei minha cabeça um pouco para baixo e estiquei meu braço com a mão espalmada, contudo havia algo nela. Algo que eu havia guardado do jantar. Torrões de açúcar que logo atraíram a atenção da égua. A vi hesitar duas vezes, mas na terceira ela se aproximou, e então eu senti seu hálito quente e depois sua língua áspera em minha mão, capturando os torrões de açúcar.
Estava estabelecida uma conexão. Então ousei acaricia-la com minha outra mão, e para a minha surpresa, ela o permitiu.
- Que linda garota! – Lhe disse em tom baixo. Passei minhas mãos pelas longas madeixas negras de sua longuíssima crina e pude sentir sobre minha pele a brutalidade de sua força. Seu pelo era lustroso e brilhante e suas patas eram vigorosas. – Realmente belíssima! – Afastei-me para apanhar uma sela de tamanho médio que havia ali. Não era a mais adequada para alguém do meu tamanho, mas era o que tinha disponível. E assim que me virei para coloca-la, Atalanta revoltou-se e ergueu-se, ficando apoiada apenas nas patas traseiras e relinchava alto. – Tudo bem, já entendi. – Como num gesto de obediência eu coloquei a sela no chão e só então Atalanta pareceu relaxar.
A compreendi. Ela era livre demais, poderosa demais para ser selada. Para ser domada daquela maneira. E isso me fez pensar em você! Aproximei-me com cautela pois acabara de aborrecer aquela égua e precisaria agir com calma. Mas ela não mais resistiu e me permitiu novamente acaricia-la. Escutei gritos entusiasmados ao longe e percebi que a corrida estava prestes a ter inicio. Precisava me apressar. Seria um desafio e tanto, alcançar a envergadura de Atalanta sem a ajuda de uma sela ou de outra pessoa, mas eu não queria desistir. Havia ido longe demais! Respirei fundo, então entrelacei meus dedos na crina dela e com a outra mão fiz um impulso simultâneo com minhas pernas e, após bastante esforço eu me firmei.
Foi então que compreendi o motivo de gostares tanto daquele animal. Ela era poder puro em sua mais perfeita definição e montá-la em pelo me permitia sentir o vibrar de seus músculos poderosos e o pulsar de seu vigoroso coração. Demandei os primeiros trotes e sem maiores resistências ela o fez. Seguimos e logo estávamos do lado de fora do cercado. Demos algumas voltas para estabelecer aquele vínculo que acabara de ser estabelecido. E eu já estava me sentindo como se sempre houvesse sido a amazona da Atalanta, contudo um estrondo ao longe nos assustou, levando-a a arquear e quase me derrubar. Precisei me agarrar a ela para não cair e com certo esforço eu a tranquilizei. Mas aquele som significava uma coisa, que a corrida havia começado e sem nós.
- Garota... – Curvei-me e acariciei seu dorso, falando próxima às orelhas da égua. – Espero que você faça jus ao seu nome... – Enlacei os pelos da crina dela em meus punhos e apertei-a sob minhas pernas com força. – Pois temos uma corrida para vencer! – Então a incitei e com um relincho alto ela arrancou num galope que foi acelerando de forma impressionante.
Contornamos o cercado de grama e em poucos metros estávamos alcançando o campo onde as demais já estavam bem a nossa frente. Provoquei Atalanta ainda mais e a poderosa égua negra apressou suas longas passadas e logo eu pude sentir que nossos corações pareciam que estavam no mesmo ritmo e sentir o vento fresco da noite em meu rosto me proporcionou a mais plena sensação de liberdade.
Consegui visualizar, a medida que me aproximava, que as mulheres que assistiam a corrida se erguerem para ver o que parecia ser impossível. E assim que passamos diante delas, fixei os olhos em Manu e mesmo um pouco distante, pude perceber a surpresa e a reprovação neles. Mas eu não poderia deixar aquilo me incomodar ou me atrapalhar naquele instante. Foquei toda minha atenção no galope velocíssimo de Atalanta e em poucos instantes conseguimos alcançar as demais corredoras, mas estávamos uma volta atrás.
A medida que fomos ultrapassando cada uma delas, o choque era o que eu conseguia ver com o conto dos olhos. Eu juro que consegui ouvir a Izabelle dizer “Isso é impossível!” Quando a ultrapassamos. Eu ri diante daquela reação e assim que estávamos a frente delas, Atalanta correu ainda mais. Parecia que aquela égua tinha a clareza do que deveria fazer. Como se ela fosse feita para correr.
Faltavam mais duas voltas e pelo ritmo que estávamos, provavelmente conseguiríamos alcançar as demais na ultima e muito provavelmente seria uma chegada bastante acirrada, mas assim seria ainda melhor. A impressionante velocidade que alcançávamos me mostrava que eu não havia escolhido o melhor dos vestidos para tal, pois a saia folgada subia, deixando minhas pernas a mostra e o vento que nos atingia, começou a desfazer a minha trança fazendo com que mechas de cabelo voassem diante de meus olhos.
Aceleramos ainda mais e eu ficava ainda mais impressionada com aquele animal espetacular e logo estávamos nos aproximando de onde Manu e as outras estavam. Eu havia prometido não olhar para ela, pois não pretendia receber aquele olhar reprovador novamente. Bastava que teria de lidar com ela assim que a corrida terminasse. Foi então que um vislumbre me fez duvidar do que eu havia visto. Achei absurdo demais e como foi só uma fração de segundos, pensei que era a minha mente me pregando uma peça. Me obriguei a focar na corrida, pois no passo que íamos, venceríamos com folga.
Bem antes da linha de chegada, já éramos as terceiras, atrás apenas da Fabianne e da Izabelle. A adrenalina me fez já antecipar o gosto da vitória e num impulso único ultrapassei ambas, pois estavam preocupadas uma com a outra e nos deram uma brecha. E assim que atingimos a liderança, galopamos ainda mais livres e o orgulho que partilhávamos podia ser sentido por quem nos visse naquela pista. Eu sabia que assim que passássemos na frente de Manu, certamente ela mudaria de opinião.
Quando nos aproximamos, eu busquei Manu, mas o que vi fez meu coração entrar num ritmo descompassado. Ela discutia com outra pessoa. Outra mulher! Era você! E assim que Atalanta e eu cruzamos a linha de chegada em primeiro lugar, os meus olhos e os seus se encontraram, pois você se aproximou da pista.
Preciso lhe confessar que depois daquele instante só me lembro de acordar, totalmente desnorteada na manhã seguinte. Num quarto diferente daquele que eu ocupava ali, contudo, era um quarto que eu conhecia, pois sempre que podia me esgueirava e entrava nele para poder apreciar tudo o que havia ali. Era o seu quarto. Repleto de seu cheiro, de suas coisas, de sua essência.
A claridade da luz do sol que incidia sobre mim fez meus olhos doerem e quando tentei me apoiar para me erguer da cama, senti uma dor latejante em meu punho direito e percebi que ele estava enfaixado.
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Cosima soltou o caderno sobre seu colo, desvencilhou-se dos braços de Delphine e se pôs de pé, andando de um lado para o outro, visivelmente incomodada com algo. Delphine estanhou aquela atitude, pois até onde pode ler, aquela passagem não representava nada tão significativo assim.
- O que houve Cos? – Sentou-se e a olhou preocupada.
Cosima virou-se para ela e abriu a boca três vezes para responder-lhe, mas não tinha certeza de como contar aquilo para Delphine. Sabia que o pouco que havia conseguido transcrever do diário antes da loura fazê-lo foi muito falho e passível de interpretações errôneas. Mas o que a estava afligindo naquele momento era fato de estar lendo o relato exato de algo com que ela havia sonhado tão vividamente. Era um daqueles misteriosos sonhos com o passado, como se não fossem apenas isso e sim fossem memórias. Retomou o caderno em mãos e leu as passagens seguintes em voz alta.
“Levantei-me da cama e percorri o quarto que me era tão conhecido. Eu possuía pouca lembrança do que ocorrera na noite passada após a corrida. Perambulei pelo quarto, acariciando os livros que lias. Percebi que haviam alguns novos, entre eles muitos dos quais eram proibidos de serem lidos. Desejei poder lê-los e discutir com você. Percebi também que algumas velas estavam mornas, indicando que foram usadas recentemente. Isso só poderia significar que o que eu imaginei de fato ocorreu. Você havia retornado e mais. Havias passado a noite ali comigo, talvez velando o meu sono – eu desejei intimamente – Talvez apenas estudando seus livros e pergaminhos.
Pensei ter ouvido sua voz e corri até a janela, mas só consegui vislumbrar uma cabeleira loura entrando no castelo, logo abaixo da sacada do quarto. Então ouvi a conhecida voz de Manu entrando no quarto e me repreendendo por estar fora da cama.
- O que você está fazendo de pé? – Manu me advertiu e tentou me guiar de volta para a cama. - A Evelyne me matará se souber que a deixei sair da cama! – Ela arrumou os inúmeros travesseiros que repousavam em sua cama – Aquela minha filha tem um gênio e tanto, como você bem sabe. – Disse enquanto se afastava em direção a porta e chamou por alguém. Izabelle entrou tendo uma bandeja de prata em suas mãos.
- Aqui está o emplastro que me pediu Manu! – Ela me sorriu. Pensei que talvez ela estaria chateada comigo, pois a venci na corrida, contudo ambas sabemos o quão generosa e bondosa a Iza é! - Você está bem?
- Eu... eu... – Senti minha cabeça pesada como se houvesse bebido algum elixir de sono.
- Mel? Fale Comigo – A voz de Manu foi se afastando... – Melanie?! – O desespero era nítido, mas assim que me recostei na cama e respirei fundo, o que pareceu ser um mal estar que me causou uma certa falta de ar, foi passando e eu consegui lhes responder!
- Sim Manu, só estou me sentindo meio tonta! – Levei a mão a cabeça.”
A morena pausou a leitura em voz alta e fixou seu olhar perdido.
- Cosima, o que foi? – Delphine levantou e se dirigiu para ela. Estava visivelmente assustada com o tom de voz tremulo de sua amada ao ler aquele trecho. Não fazia ideia do que poderia estar acontecendo com ela. Inclusive tentou estabelecer a conexão, mas fora bloqueada por ela. A morena lhe olhou de volta e pensou que Delphine a consideraria louca se contasse que havia sonhado exatamente o que acabara de ler.
- Nada Del... Apenas... – Esfregou sua mão na testa. – Tudo o que leio aqui mexe, de alguma maneira comigo. – Delphine sentiu uma pontada de excitação. Será que haveria algum tipo de memória vindo a tona? Seria isso se quer possível? Era difícil para ela prever o que aquela leitura poderia causar em Cosima e cada nova página representava um fragmento de esperança.
- Quer parar um pouco? – Lhe tocou a mão. Cosima ergueu os olhos e viu a ternura como Delphine lhe olhava. A abraçou firmemente.
- Eu sinto que preciso terminar essa leitura Del... Você compreende isso? – Lhe olhou intensamente. – Isso lhe incomoda?
- Claro que eu entendo Cos. – Acariciou o rosto dela. – E não me incomodo com nada disso. Espero e não vejo a hora de poder comentar sobre tudo nele com você. – As conduziu de volta a onde estavam. Cosima voltou a aninhar-se nos braços dela e abriu o caderno.
- Então lerei mais algumas páginas antes do jantar! – Disse com ar divertido.
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- O que aconteceu comigo? – Indiquei o pulso levemente inchado e recebia cuidados de Manu.
- Parece que a pancada na cabeça foi forte! – Izabelle brincou.
- Eu bati a cabeça? Como?
- Após o final da corrida Mel. – Manu iniciou a explicação. – Lembras de ter vencido a corrida e de tê-lo feito montando a Atalanta, certo? – Ela pareceu preocupada com a minha perda de memória.
- Sim sim, disso eu lembro! – Ela respirou aliviada.
- Muito bem! Então lembras que a Evelyne retornou. – Ela disse aquilo com certo pesar na voz. – Preciso alertá-la, antes de qualquer coisa, ela ficou muitíssimo irritada por teres pego e montado a Atalanta. – Olhou para Izabelle e ela anuiu com a cabeça, indicando que estava numa belíssima enrascada. – Por isso eu deixarei para ela toda a repreensão. Mas voltando aos seus machucados. Assim que venceste a corrida, a Eve se aproximou com a intenção de tomar a Atalanta de você. Contudo, assim que a égua viu e reconheceu a sua antiga amazona, ficou indócil e começou a saltar, erguendo as patas dianteiras, jogando-a ao chão. – Eu realmente não lembrava de nada daquilo. – Somente a Eve conseguiu acalmar aquela besta.
- Não fale dela assim! – Manu e Iza se entreolharam apreensivas.
- Mas preciso dizer que você realmente é uma pessoa surpreendente Srta Mel. – Izabelle me festejou enquanto saia do quarto. – Ah, o almoço será servido logo. – Ela ainda disse.
- Eu ouvi almoço? – Me animei.
Desci as escadas sentindo dores pelo corpo devido a queda e a montaria sem sela. Certamente passaria alguns dias assim, mas tudo aquilo havia valido a pena, pois eu havia ganhado a Corrida das Amazonas. Inflei o peito e cheguei na sala de refeições com a esperança de encontra-la lá. Frustração!
Sentei-me ao lado de Manu e comecei a comer o delicioso assado com legumes com a avidez de quem não comia há dias.
- Vejo que o apetite não foi atingido pelo seu acidente. – Josephine brincou.
- É preciso algo muito mais sério para tirar a minha fome. – Eu disse sem pensar, mas Manu lembrou-se de como me encontrou no hospital e de qual havia sido o motivo daquilo. Mas logo todas estávamos rindo e festejando sobre a noite anterior e sobre o meu impressionante feito. Manu me avisou que havia recebido uma carta informando que Alba estaria em Paris em poucos dias e aquela notícia também me animou ainda mais.
Foi então que passos firmes ecoaram vindo da cozinha e todas foram parando de rir, só então ergui os olhos no exato instante em que você havia entrado na sala. Você estava com a cara fechada e evitou me olhar. Fiquei observando-a lavar as mãos e procurar o lugar mais longe possível de mim.
- Então Eve... Como foi com a Atalanta? – Manu a questionou e eu senti meu sangue gelar ao ver a dureza no olhar dela para a mãe.
- Ela me deu um pouco de trabalho... Mas a domei novamente! – Disse entre dentes. Mas eu vi que ela havia tido alguns problemas com a égua, pois havia uma mancha de sangue na manga de sua blusa.
- Você está machucada! – Falei mais alto do que eu e você gostaríamos, alardeando aquilo para todas.
- Não é nada! – Você baixou seu braço, tentando escondê-lo, pois era evidente que não querias admitir que Atalanta havia lhe dado mais trabalho do que você gostaria de assumir.
- Eve! Deixe-me ver isso! – Manu ergueu-se e foi até ela.
- Mãe! Não é nada. – Puxou seu braço com violência e saiu da mesa, batendo a porta atrás de si.
- Ela é orgulhosa demais... – Manu não concluiu seu pensamento, pois foi surpreendida por minha saída brusca da mesa e da sala, indo atrás de você.
A vi sentada no terceiro degrau da escadaria do castelo e foi inevitável para mim sentir uma pontada de alegria por tê-la ali tão próxima, porém eu sabia que lhe devia desculpas pelo que fiz na noite anterior.
- Você precisa limpar esse machucado! – Você se assustou, pois estava de cabeça baixa, examinado o cotovelo e o antebraço ralados. Assim que você ergueu seus olhos, pude ver, por alguns instantes algo terno, muito diferente da dureza de alguns instantes antes, mas logo você se recompôs.
- Não precisa se preocupar comigo. Não é nada de mais e posso cuidar disso sozinha. – Você se ergueu e me deu as costas, subindo as escadas. Contudo, eu não me dei por vencida e fui novamente atrás de você. O seu choque ao me ver entrando em seu quarto a enervou ainda mais. – Agora invades meu quarto? Não basta roubar a minha égua? – Ela estava magoada.
- Bom, não sei ao certo, mas há algumas horas eu acordei nessa cama e nesse quarto. – Abri meus braços. – E não fui eu quem vim para cá sozinha. – A provoquei. Você bufou e andou de um lado para o outro do quarto, como um animal enjaulado. E inevitavelmente pensei em Atalanta. – De quem foi a ideia? – Ergui uma sobrancelha e repousei minhas mãos em minha cintura. Isso a deixou encurralada. Eu não fazia ideia de onde vinha toda aquela coragem, pois você era o tipo de pessoa que causava temor nos outros, mas de alguma maneira, não mais me assustavas.
- Manu... Quer dizer... Eu achei por bem você dormir aqui, pois... – Eu estava achando encantador o seu desconforto. – De uma certa maneira me sinto responsável por seu estado. – A que estava estavas se referindo? Eu não tinha certeza. – Afinal de contas a égua é minha. – Minha frustração foi evidente para você. – E como precisavas de alguém vigiando o seu sono, eu me voluntariei para isso. Até porque eu já iria passar a noite em claro estudando mesmo. – Você se apressou em se justificar.
- Isso me lembra que lhe devo desculpas! – Me aproximei e você não recuou. Pelo contrário, firmou o olhar em mim e me senti estremecer. Sempre foi impressionante para mim esse efeito que me causavas. – Desculpas por ter pego a sua égua. Mas é que eu realmente queria participar da corrida. - Cheguei bem próxima a você. – E quero me redimir, pelo menos, cuidado desse ferimento. – Estendi minha mão tremula diante de você. Vi seu olhar subir e descer de minha mão para meus olhos e, lentamente a vi ceder. A tensão em seus ombros foram diminuindo e a frieza de seus olhos deram lugar a um brilho diferente.
Senti o repousar de sua mão quente sobre a minha e involuntariamente suspirei alto e fechei os olhos. A ouvi sorrir baixinho e me repreendi por ter tido aquela reação diante de você. De ter lhe dado aquele poder. Querendo reavê-lo de alguma forma para mim eu apertei sua mão e acariciei seu pulso. Juro que pude sentir o acelerar de seus batimentos e constatei com certeza que não eras imune a mim.
Gentilmente eu ergui sua manga e pude ver a extensão do machucado. Felizmente não era nada mais sério, mas ainda havia um pouco de terra que precisava ser lavada para que não houvesse risco de infecção. A conduzi ao lavabo e com todo o cuidado do mundo eu usei minha mão não machucada para buscar a água na bacia de porcelana e fazê-la escorrer por sobre todo o ferimento. Repeti isso várias vezes e com uma pequena toalha de seda que fora deixada ali para a troca de meu curativo, retirei toda a sujeita e com uma segunda, enrolei onde parecia um pouco mais profundo. A todo instante eu sentia o peso do seu olhar em mim. E por estarmos tão próximas eu podia sentir o seu perfume. Aquele que eu tanto conhecia das suas coisas e além disso havia o calor perturbador do seu hálito. Tinhas a respiração pesada e aquilo estava me desconcertando de uma maneira impensada.
- Prontinho! – Soltei seu braço bruscamente e com isso bati meu pulso machucado contra uma cômoda, gemi alto.
- Ei... Cuidado! – Foi a sua vez de buscar minha mão. – Como está isso aqui? – Você parecia sinceramente preocupada.
- Eu até havia me esquecido disso, até agora! – Fiz uma careta de dor e me derreti por completa quando vi a forma como me olhavas. Era encantamento que eu via em seus olhos.
- Me permite? – Você me guiou até a cama, onde sentei na ponta. – Deixe-me dar uma olhada nisso aqui. – Desenrolaste a faixa e ambas vimos que o inchaço havia aumentado um pouco. - Dói? – Minha expressão falou mais que minhas palavras. Você analisou meu pulso com uma expressão séria. – Vem comigo. – Você me guiou para fora do quarto e descemos as escadas de mãos dadas. Entramos na cozinha, onde muitas das mulheres estavam, incluindo Manu e Izabelle e lá você me deixou. A vi caminhar pelo jardim de Manu que me olhava com expressão surpresa. Apenas dei de ombros indicando que não estava entendendo nada.
Após alguns instantes você entrou trazendo ramos de várias plantas nas mãos. Murmurava algo enquanto perambulava pela cozinha, como se procurasse algo. A vi recolher algumas panelas e leva-las ao fogo. Pegou um socador para moer uma estranha raiz laranja.
- Pretendes fazer uma infusão de Cúrcuma? – Manu se intrometeu no que fazias.
- Não mãe! Pretendo fervê-la juntamente com raiz de Bardana, para evitar uma possível inflamação de tendões e claro, preparar um cataplasma mais eficiente com Menta, calêndula e raiz de alcaçuz. – Você pareceu pensar por um instante. – E esse cataplasma deve ser aquecido! – Olhei para Manu e pude ver que ela estava com uma expressão de surpresa, assim como as demais mulheres.
Poucos minutos depois, a cozinha foi tomada pelo cheiro característico da menta, de outras ervas e você estava diante de mim, refazendo a minha bandagem com todo o cuidado, pois a mistura estava quente. Após o incomodo inicial logo senti um alivio imediato das dores.
- E agora beba sem reclamar! – Você me entregou a xícara de um dos chás mais terríveis de que provei. – E nem pense em deixar uma gota. É para o seu bem! – Dessa vez todas as mulheres da Ordem presentes ali, estavam boquiabertas.
- Isso é horrível! – Eu me arrepiava a cada gole.
- Mas essas misturas evitarão que tenhas qualquer inflação e amanhã certamente estará desinchado. – Você me disse suavemente. – E sim mamãe, ao contrário do que pensavas, eu prestava atenção em suas aulas de herbologia. – Pegou uma maçã da cesta. – E Srta. Verger, cuidado para não bater mais essa mão! – Saiu da cozinha.
A mistura bombástica que você fez me fez dormir a tarde toda e quando acordei percebi que o silêncio imperava, indicando que já deveria ser tarde. Olhei para minha mão e o que você havia dito realmente aconteceu. Eu estava sentindo bem menos dor em meu pulso e então decidi tirar a faixa para verificar e o inchaço havia praticamente desaparecido.
- Ela sabe o que faz! – Falei sozinha. Olhei para o lado e percebi que uma vela pela metade estava acesa ao lado de um pequeno bilhete. De imediato eu reconheci a sua caligrafia.
“Srta Verger, peço que troque a bandagem de seu pulso para que estejas melhor amanhã.”
Não havia assinatura, mas não era necessário. Peguei o bilhete e percebi que o seu cheiro estava nele. Decidi obedecer suas “ordens” e troquei minha bandagem sem tanta habilidade. Logo a fome começou a se fazer presente e então decidi ir até a cozinha para preparar algo. Mas ainda no corredor eu via que um traço de luz dançava sob a porta de seu quarto.
Parei diante de sua porta hesitante. Ergui a mão pata bater e anunciar minha presença, mas talvez você estivesse dormindo. Instintivamente encostei a lateral do rosto contra a madeira e pude ouvir sua voz lá dentro. Parecia que lias algo. Minha dúvida agora era se eu deveria ou não entrar e lhe interromper, contudo a vontade de apreciar a sua presença era maior do que qualquer receio.
Bati. Inicialmente sem muita convicção, ainda tomada pelo receio e, aparentemente você não havia ouvido. Busquei uma nova coragem e ergui meu punho novamente. Dessa vez bati com mais certeza de que o que eu mais queria estava atrás daquela porta. Após alguns instantes de silêncio ouvi seus passos e você abriu a porta com um expressão surpresa, mas que logo deu lugar a um doce sorriso.
- Problemas para dormir Srta. Verger? – Abriu passagem para que eu entrasse.
- Vejo que não sou a única. – Indiquei a sua cama desfeita e todos os livros espalhados sobre sua mesa. – E... Podes me chamar de Melanie.
- Tudo bem Melanie... Como está o pulso? – Você me observava atentamente enquanto eu fingia interesse nos livros.
- Está bem melhor! Obrigada. O cataplasma que você fez realmente foi fantástico.
- Nas plantas repousam as respostas para quase todos os males! – Você começou a falar e eu concluíjuntamente as palavras que a Manu sempre repetia. Rimos ao final da frase. – Mas o pior é que eu concordo com ela. Mas não diga que eu disse isso. – Você fingiu seriedade.
- Tentarei! Mas... – Hesitei se eu deveria ou não entrar naquela questão, era delicada demais. – Eu confesso que gostaria de entender porque você e a Manu não conseguem se entender? – Fui me arrependendo da pergunta a medida que a sua expressão leve foi se modificando. – Desculpa! Eu não deveria me meter nisso. Acho melhor voltar para o meu quarto.
- Somos parecidas demais! – Você me disse e me pegou de surpresa. – E ao mesmo tempo completamente diferentes. – Se recostou na mesa ao meu lado e ficou com o olhar fixo em algum ponto da parede diante de você. Decidi ficar em silêncio e deixa-la falar. – Eu sei que não sou uma pessoa fácil de lidar e me esforço muito para manter essa aparência. – Olhastes para as próprias mãos. – Mas... Ninguém pode se quer fazer ideia do que é ser eu. – Seu olhar me alcançou e pude ver dor em seus olhos que estavam escuros, devido a pouca luz do quarto. – Melanie... – Meu amor, preciso confessar-lhe que eu precisava me esforçar para manter o raciocínio fixo após ouvir meu nome em sua voz – Existe algo dentro de mim... Uma força, um... Poder que... – Você fechou os olhos com intensidade e cerrou seus punhos. – Me assusta. E, na mesma intensidade me atrai. – Me olhaste com um misto de receio e cobiça, dando-me uma pequena mostra do que se referias.
- Isso sempre esteve em você? – Me arrisquei a questionar-lhe.
- Desde que me lembro! Uma agonia gelada, me arranhando de dentro para fora que, por vezes, dá lugar à chamas infernais. – Eram palavras assustadoras e ao mesmo tempo comoventes. – E sou profundamente grata a Manu e as demais por terem me ajudado a controlar “isso”! – Referiu-se a si mesma, apontando para sua imagem no espelho.
- Ei! Não se refira a você como ‘isso’! – Ousei portar-me diante de você. – És uma pessoa de carne e osso, com sentimentos, dores, temores defeitos, mas também és amada da forma mais intensa possível. – Me referia ao amor de Manu, mas também poderia me referir ao sentimento crescente em mim. Você riu com desdém.
- Você se refere a minha mãe? Talvez ela tenha me amado algum dia. Mas sei que a decepcionei definitivamente.
- Como podes ter tanta certeza? Já se permitiu conversar com ela ultimamente? Aliás, quando foi a ultima vez que ambas tiveram uma boa conversa de mãe e filha?
- Nós não conversamos! Simples assim. Eu não correspondi com as expectativas dela. Não posso nem muito menos desejo ser a ‘sucessora’ dela. – Gesticulasse a ênfase nesse adjetivo. Olhei para você como um todo, para além da sua belíssima figura exterior e tentei penetrar em sua armadura de indiferença. Voltei-me para a mesa repleta de seu material de leitura.
- Tudo bem... Acredito que não sejas obrigada a isso. Mas... Então porque estudas tudo isso? – Lhe provoquei segurando um lindíssimo e assustador exemplar do Martelo das Bruxas. – Qual o seu objetivo com isso? – Você me olhou com dureza e jamais esquecerei da resposta que me destes.
- Para me tornar uma assassina melhor! – E tomaste o livro de minha mão. Com esse gesto, uma folha de pergaminho caiu de dentro daquele livro, mas você não percebeu, pois estava concentrada em fechar todos os demais livros abertos sobre sua mesa. Abaixei-me para pegá-la.
- La Liste des Damnés[2]- Li em voz alta. E antes que você pudesse toma-la de minha mão, pude ler os primeiros dois nomes daquela lista. – Armand Verger e o Duque de Lorraine. – O que significa isso? – Você me olhou com firmeza e retirou aquela lista de minhas mãos.
- Acredito que sejas inteligente o suficiente para tirar suas próprias conclusões. – O clima mudou completamente.
- Então pretendes matar o meu pai e o homem a quem estou prometida? – Me olhastes preocupada. Vi receio em seus olhos e em sua postura.
- Srta Verger... Acho que já está na hora de retornares para o seu quarto. – Você se afastou bruscamente e caminhou até a porta para abri-la para mim. Caminhei com certa frustração, pois não pretendia sair de perto de você, mas eu certamente havia tocado numa questão complicada e eu mesma estava em plena confusão com aquela informação que acabara de descobrir.
Manu havia me dito que eras uma espécie de perseguidora de ‘monstros’ e que era eficientíssima nisso, mas ler aqueles nomes no topo de sua lista me causou um turbilhão de sensações. Afinal de contas era o meu pai... Contudo, eu, mais do que ninguém sabia que ele cabia perfeitamente na definição de monstro.
- Eu não me importo! – Fechei a porta de seu quarto, mas permaneci dentro dele. Parei bem próxima a você e precisei erguer meu rosto para lhe olhar nos olhos. Vi sua boca entreabrir e seus grandes olhos me encararem com surpresa. Fechei os meus e sem muito certeza se estava fazendo de maneira correta, a convidei a minha mente e lhe permiti ter um vislumbre de algumas dolorosas memórias.
Mostrei-lhe o dia em que apanhei por mais de uma hora tão somente porque vesti um dos vestidos de minha mãe. Também lhe permiti ver o hábito que ela tinha de deixar que seus nojentos amigos me vissem, ainda uma criança, banhando-me. Ou quando esfaqueei o Duque na virilha, na ocasião em que ele veio com o seu membro em riste para me mostrar e, como castigo, passei a noite ao relento em pleno inverno, o que me causou uma pneumonia que quase me custou a vida.
Inevitavelmente tais lembranças me fizeram chorar e assim que abrir os olhos vi que também possuías lágrimas nos seus, embora seus lábios estivessem crispados e seu maxilar travado, indicando o ódio que estavas experimentando.
Ambas tremíamos, só que eu um pouco mais que você e como sempre falhei em controlar ou esconder meus sentimentos, soltei meu primeiro soluço. Instintivamente você relaxou e me puxou para seus braços e me acolheu no mais terno dos abraços. E então você me fez aquela promessa.
- Jamais deixarei que a machuquem novamente Melanie. Nem que para isso custe a minha vida!
*****
Cosima, a exemplo da autora daquelas memorias, estava aos prantos, profundamente tocada pela emoção que transbordava daquelas palavras. Sempre fora emotiva, mas ler tudo aquilo e saber que fora real, potencializava o que sentia. E a conexão que vivenciava com as protagonistas daquela história parecia algo latente.
- Cos... Você está bem? – A loura acariciava seus braços e a sentia soluçar contra seu peito.
- Sim Del... É que essa história é poderosa demais. E não sei bem explicar o porque dela mexer tanto comigo. – Delphine recostou a cabeça na cadeira e pensou que aquele seria um bom momento para dar inicio a explicação.
- Meu amor... – A empurrou gentilmente para que ela se erguesse e virasse para encará-la. – Peço que continues a leitura desse diário com a mente aberta. Não com a mente da cientista metódica e racional.
- Mas... – Cosima foi interrompida.
- Por favor Cos, ao final da leitura terás respostas para suas indagações e... Para o motivo de estarmos aqui hoje. Eu e você, juntas! – Delphine falava com cautela e firmeza, impedindo que Cosima pudesse duvidar dela.
- Você quer dizer que essa história tem a ver com... – A ideia absurda que já há algum tempo se avultava nas profundezas de sua mente, parecia ganhar força. – Como nós duas? – Gesticulou entre elas. Contudo, antes de Delphine responder o seu celular tocou. Pensou em ignorá-lo, mas viu com o canto dos olhos o nome de Helena na tela. Sabia que sua Protetora e amiga só lhe ligaria em uma situação extrema e então sentiu um uma sensação desconfortável de medo.
- Desculpe, eu preciso atender. – Cosima não pareceu ficar muito contente com aquilo, ainda mais porque se tratava de Helena ligando, mas quando viu a expressão de terror no rosto da amada, assustou-se.
- Você tem certeza disso Helena? – Delphine estava de pé, com o celular no ouvido e a outra mão subindo por sua testa, fincando os dedos nos cachos dourados. – Certo... Obrigada por isso... Me mantenha informada a todo instante. – Desligou o aparelho e ainda ficou encarando-o por alguns instante com a expressão assustada e distante.
- Aconteceu alguma coisa? – Cosima a tocou no braço, para chamar-lhe a atenção. Delphine voltou sua atenção para ela e pareceu retornar de alguma lugar muito longe dali.
- Cosima... Precisamos voltar imediatamente para Paris!
******
[1] Atalanta, na mitologia grega é uma das Abantíades, ora ligada aos mitos da Arcádia ora às lendas da Beócia. Sua filiação é controvertida; é tida como filha de Íaso, ou de Mênalo, ou ainda de Esqueneu. Como seu pai queria apenas filhos homens, Atalanta foi abandonada no monte Partênio logo após o nascimento, tendo sido alimentada por uma ursa e depois recolhida e criada por caçadores. Tornou-se também caçadora, protegida por Ártemis. Muito ágil, era tão rápida "que poderia competir com os deuses Hermes e Íris" os deuses mais rápidos.
[2] A Lista dos Malditos em francês.
Fim do capítulo
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Flor de Liz
Em: 30/04/2018
Nooossa! A cada capítulo o meu fôlego diminui.... Ansiosa pelo próximo.
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